Doenças negligenciadas: como agir em plena crise climática
Diretor do Ministério da Saúde relata como Brasil está prestes a eliminar algumas das enfermidades causadas por fatores estruturais, que afetam em especial os mais pobres. Entre novas medidas, um programa de transferência de renda para o tratamento
Publicado 29/01/2025 às 10:30 - Atualizado 29/01/2025 às 15:40
Draurio Barreira em entrevista a Gabriel Brito
Lançado há quase um ano, um silencioso programa do governo federal começa a trazer resultados importantes para a saúde pública na busca pela eliminação das chamadas doenças negligenciadas. Consideradas doenças socialmente determinadas, afetam em geral as fatias mais vulneráveis da população e também estão diretamente relacionadas a problemas estruturais, a exemplo do saneamento.
Como explica Draurio Barreira, médico sanitarista e infectologista que ocupa a Diretoria do Departamento de HIV/AIDS, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis do ministério da Saúde, o Programa Brasil Saudável já se aproxima de tais objetivos menos de um ano após seu lançamento.
“A filariose linfática já foi eliminada e recebemos o certificado de eliminação da OPAS e da OMS no ano passado. Conhecida popularmente como elefantíase, não existe mais no Brasil. São sete doenças no caminho da eliminação. E há cinco infecções que necessariamente não são doenças, são transmitidas de mãe para filho, seja na gestação, seja no parto, seja na amamentação (chagas, hepatite B, HIV, HTLV e sífilis), que queremos eliminar”, contou em entrevista ao Outra Saúde.
De acordo com dados oficiais, foram cerca de 600 mil infecções e 40 mil mortes para o conjunto das Doenças Tropicais Negligenciadas entre 2016 e 2020. São enfermidades evitáveis e cujo controle poderia liberar todo este contingente invisibilizado da população para uma vida melhor, o que também causaria impactos econômicos diretos e indiretos.
Neste sentido, o governo deve lançar ainda hoje, 29/1, um novo programa de transferência de renda para incentivar portadores de tais doenças a seguirem o tratamento prescrito pelo SUS. Para isso, Draurio destaca que há estudos suficientes para corroborar a validade de tal investimento do Estado.
“É uma ideia simples. A malária, a sífilis, as geo-helmintíases, a esquistossomose são algumas doenças que se tratam com injeções de uma, duas ou três doses. A ideia é criar um cartão de adesão que dê um determinado valor para a pessoa quando concluído o tratamento. Para as doenças de tratamento longo, tipo tuberculose ou hanseníase, que leva seis meses, até mais, ou a aids, cujo tratamento é para a vida toda, vamos discutir uma outra proposta”, explicou.
Em termos práticos, atacar as doenças negligenciadas exige ações estrategicamente organizadas para cada território, de acordo com suas características epidemiológicas. Além disso, são ações que devem se coordenar com outras políticas – em especial saneamento, em muitos casos ainda responsável pela sua disseminação. Agora, chegou a hora de agir diretamente nas áreas vulnerabilizadas.
Em sua concepção, o Brasil Saudável destaca a importância da questão ambiental na viabilização de metas, de maneira que o governo deve apresentar nas próximas semanas dois programas complementares, todos eles com vistas a coordenar ações entre mais de uma dezena de pastas do poder executivo.
“O Ministério da Saúde tem pelo menos três programas muito sinérgicos para a eliminação das doenças, especialmente das doenças tropicais, negligenciadas e determinadas socialmente: o Programa Brasil Saudável, O Mais Saúde Amazônia, programa em fase final de elaboração, direcionado à região norte com uma pegada muito mais ligada à questão ambiental e um terceiro, ainda não batizado, que aborda justamente as questões de mudanças climáticas”, revelou.
Confira a entrevista completa com Draurio Barreira.
O que pode contar sobre o andamento do Programa Brasil Saudável, iniciativa lançada pelo governo para controlar doenças negligenciadas, quase um ano após seu lançamento?
São cinco diretrizes. A primeira é o enfrentamento da fome e da pobreza. A segunda é a redução das iniquidades, proteção social e avaliação de direitos humanos, com foco em algumas populações mais vulnerabilizadas. A terceira é a qualificação da comunicação que envolve trabalhadores, movimentos sociais, organizações de sociedade civil, profissionais de saúde, porque não podemos pensar em eliminar doenças se elas não são conhecidas e se não há comunicação com a mensagem focada, precisa, correta. O quarto é o incentivo à ciência, tecnologia e inovação. E o quinto tem a ver com a infraestrutura, saneamento básico, meio ambiente e mudanças climáticas.
Um esclarecimento importante é que não vamos erradicar as doenças. Este era o conceito entre 2000 e 2015, dentro do plano Objetivos do Milênio da ONU. Mas a Agenda 2030 trouxe uma mudança de paradigma: não falamos mais em controle ou erradicação, mas em eliminação. Tem uma diferença fundamental entre erradicação e eliminação, enquanto problema de saúde pública. Na história da humanidade, só uma doença foi erradicada, a varíola. Dentro do Programa Brasil Saudável, que visa atacar 11 doenças, não poderemos erradicar nenhuma. Só uma vacina que tenha 100% de eficácia com cobertura vacinal de 100% da população poderia fazer isso.
Portanto, falamos em eliminação de um problema de saúde pública, uma tarefa que se divide em duas partes. De um lado, são doenças cuja transmissão queremos eliminar. Porque se em qualquer lugar do mundo houver um caso, não se pode falar em erradicação, menos ainda num mundo com as atuais conexões de transporte, comércio, turismo etc. No momento, temos medo de uma epidemia do mpox, que é prevalente na África, ainda que não tenhamos casos e óbitos há dois anos no Brasil.
A meta é fazer com que doenças como chagas, a esquistossomose, a oncocercose, a geo-helmintíases e o tracoma deixem de ser problemas de saúde pública.
Quais os objetivos para este ano? Há possibilidade de se conseguir eliminar algumas das doenças incluídas no plano de ação a curto prazo?
A filariose linfática já foi eliminada e recebemos o certificado de eliminação da OPAS e da OMS no ano passado. Conhecida popularmente como “elefantíase”, não existe mais no Brasil. Queremos eliminar doenças no Brasil até o ano de 2030, em termos de deixarem de ser um problema de saúde pública.
São sete doenças no caminho da eliminação. Já as outras quatro – tuberculose, hepatite, aids e hanseníase – não conesguiremos para eliminar a transmissão. Em relação a tais doenças, que têm alta capilaridade, inclusive no mundo rico, queremos atingir as metas pactuadas com a OMS.
Na tuberculose, a meta é ter menos de 10 casos por 100 mil (hoje são 38). Na aids, é atingir a meta “95, 95, 95”. Ou seja, detectar 95% das pessoas que se estima ter HIV, o que no Brasil é algo como 1 milhão de pessoas (nós detectamos 960 mil); colocar 95% dessas pessoas em tratamento antirretroviral, hoje em torno de 82%, infelizmente, porque há muita gente que não sabe ter a doença e outros que por razões de estigma e preconceitos não se tratam; e, por fim, fazer com que 95% tenham seu quadro viral indetectável. Assim, no dia em que atingir o objetivo “95, 95, 95”, poderemos dizer que a aids está eliminada do Brasil como um problema de saúde pública. Continuaria existindo, mas controlada dentro dessas metas internacionais.
Além dessas 11 doenças, 7 para eliminar a transmissão e 4 para atingir as metas pactuadas, há 5 infecções que não necessariamente são doenças, pois são transmitidas de mãe para filho, seja na gestação, seja no parto, seja na amamentação. Essas infecções são chagas, hepatite B, HIV, HTLV e sífilis. A meta é eliminar sua transmissão vertical, ou seja, de mãe para filho.
E para tal objetivo ser atingido será necessário um trabalho de território?
Sim. Nesse sentido passamos seis ou sete meses em articulação com 14 ministérios, a sociedade civil e principalmente movimentos sociais de pessoas afetadas por essas doenças. Há movimentos fortes formados por pessoas afetadas por aids, tuberculose, hanseníase, chagas e as doenças chamadas negligenciadas, a exemplo de oncocercose, tracoma, filariose… Também trabalhamos em conjunto com a academia, a Fiocruz, organismos internacionais, foi um período de muita articulação e planejamento, com dezenas de mãos, apoio de Banco Mundial e BID.
Quando terminamos o processo, era final de setembro, época pré-eleitoral, o que nos impediu de ir para os territórios orientar as ações, até porque em muitos casos haveria troca de gestores. Agora, começa o trabalho de campo e vamos fazer a primeira atividade em nível local em Roraima, na capital Boa Vista, na semana de 3 a 7 de fevereiro, onde iremos iniciar ações de combate ao tracoma, uma IST praticamente restrita à região norte e até mais especificamente ao estado de Roraima.
Também iniciaremos um trabalho de campo focalizado em algumas doenças sobre as quais talvez exista um sobredimensionamento a respeito de sua incidência. Há dúvidas se não teríamos já eliminado hepatites B e C. Baseamo-nos no modelo da OMS e dos Estados Unidos, mas é possível que os números sejam superestimados. É o que iremos descobrir ao fazer o trabalho nos territórios, através de estudos de prevalência, para saber qual é o número real de pessoas vivendo com hepatites B e C. Eu não posso garantir que vamos eliminá-la como problema de saúde pública. Mas, a partir de um estudo para conhecer a real prevalência, talvez tenhamos surpresas agradáveis, de estar perto ou já ter eliminado.
A filariose já foi eliminada. Tracoma deve ser neste ano. A transmissão vertical do HIV também já está eliminada, resta o país receber o certificado. A oncocercose deve ser eliminada até o ano que vem. E tem a aids, para a qual nosso projeto é alcançar o “95, 95, 95”.
Além do trabalho no território, tem projetos estratégicos que visam justamente eliminar ou contribuir para isso por meio de alguma coisa específica. Usarei dois exemplos bem rápidos e simples: um é o tracoma. Queremos financiar projetos que acabem com o tracoma nos poucos municípios em que ele ainda existe. É muito provável que consigamos financiar projetos em 10 municípios e o eliminemos definitivamente, um exemplo de projeto estratégico.
O segundo exemplo é a aids. Já atingimos o primeiro e terceiro indicador 95, falta o item de pessoas em tratamento. Estamos fazendo um projeto estratégico de aumentar a adesão e a retenção das pessoas em tratamento. Com isso, a aids seria eliminada como problema de saúde pública. O cenário é bastante positivo.
Fala-se também na criação de um programa de transferência de renda para quem fizer os tratamentos de tais doenças.
Sim, é uma ação entre os ministérios. Já tivemos uma reunião com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e nesta semana faremos uma reunião entre a ministra Nísia Trindade e o ministro Wellington Dias, com as secretarias executivas da Saúde e do Desenvolvimento Social, para criar este mecanismo.
É uma ideia simples. A malária, a sífilis, a geo-helmintíases, a esquistossomose são algumas doenças que se tratam com injeções de uma, duas ou três doses. A ideia é criar um cartão de adesão que pague um determinado valor para a pessoa quando concluído o tratamento. Para as doenças de tratamento longo, tipo tuberculose ou hanseníase, que leva seis meses, até mais, ou a aids, cujo tratamento é para a vida toda, vamos discutir uma outra proposta, com um cartão de prazo mais esticado, talvez um ano, que vise só a adesão ao tratamento.
Com isso, talvez possamos atingir o segundo 95 da aids e dizer que a eliminamos como problema de saúde pública.
Existem estudos e histórico de impactos sociais e econômicos de programas de renda para tratamentos de doenças?
Nós aqui no Ministério, em 2016, publicamos em revistas internacionais um estudo junto com parceiros da Universidade Federal da Bahia e da Universidade de Londres mostrando que beneficiários de Bolsa Família tinham uma taxa de cura 11% maior em relação às pessoas do mesmo nível socioeconômico, raça, cor, idade, que não o recebiam. A cura é muito maior em quem tem assistência social. No dia 5, foram publicados em periódico internacional dois trabalhos mostrando que a incidência da tuberculose caiu 41% entre os beneficiários do Bolsa Família e a mortalidade caiu 31%.
Existe muita evidência científica da importância do suporte social para essas doenças negligenciadas ou de determinação social. E por que eu digo isso? Além das evidências, tais doenças não existem no Hemisfério Norte. Não existem essas doenças em nenhum país rico. São doenças determinadas socialmente mesmo.
Foi publicado pelo Banco Mundial que para cada dólar investido na cura da tuberculose há uma economia de 54 dólares pelo fato de a pessoa não adoecer, não passar 6 meses em tratamento, não onerar o sistema de saúde. A tuberculose é considerada uma doença de custos catastróficos, porque além do tratamento — que no Brasil, felizmente, é de graça — a pessoa se afasta do trabalho, infecta outras pessoas. Enfim, tem um impacto social e econômico muito grande.
A eliminação de tais doenças não está diretamente relacionada a avanços na gestão ambiental das cidades e preservação dos ecossistemas?
Exatamente. Por isso políticas de manejo ambiental são parte das diretrizes deste plano, além do enfrentamento da fome e da pobreza, por isso uma necessidade de alinhar vários ministérios.
Por exemplo, eu acabei de falar do MDS e de um cartão adesão. É um exemplo de transferência de renda e de assistência social. Com o Ministério das Cidades, estamos pactuando que toda pessoa em situação de rua portadora de uma dessas doenças abarcadas pelo Brasil Saudável, especialmente tuberculose, hanseníase, HIV e hepatite, tenha um acesso acelerado ao Minha Casa Minha Vida. Queremos garantir que as pessoas que têm essas doenças tenham acesso à moradia. Não tem como passar meses tratando essas doenças morando na rua. É necessária uma habitação decente.
Já o tracoma e a oncocercose são fruto de água infectada, de falta de saneamento básico. Estamos falando com o Ministério dos Povos Indígenas, a FUNASA e o Ministério de Desenvolvimento e Integração Regional, para garantir água de qualidade e tratamento básico nos territórios indígenas. Para eliminar a esquistossomose, a doença do caramujo, que só dá em água suja. E isso vai ser priorizado pelo Ministério das Cidades em todas as cidades que tenham esquistossomose como problema de saúde pública.
O Ministério da Ciência e Tecnologia, por exemplo, que aparentemente não tem nada a ver com questões sociais, abriu um edital de quase 1 R$ bilhão para pesquisa em doenças negligenciadas. O Ministério da Educação tem um papel fundamental na educação dos profissionais de saúde, com foco nas questões sociais. Portanto, para cada um dos 14 ministérios, há ações específicas que vão contribuir com a eliminação dessas doenças. E é exatamente isso que fizemos ao longo do ano passado na articulação entre os ministérios e agora começou a se consolidar.
Há projeções de doenças tidas como evitáveis se ampliarem em razão da emergência climática?
Sim, daí a necessidade da integração de diferentes programas. O ministério tem pelo menos três programas que são muito sinérgicos na questão da eliminação das doenças, especialmente das doenças tropicais, negligenciadas e determinadas socialmente: o Programa Brasil Saudável, O Mais Saúde Amazônia, programa em fase final de elaboração, direcionado à região norte com uma pegada muito mais ligada à questão ambiental e um terceiro, ainda não batizado, que aborda justamente as questões de mudanças climáticas.
Por exemplo, a questão das inundações do Rio Grande do Sul, que fazem crescer todas as doenças de transmissão hídrica, inclusive essas priorizadas pelo Brasil Saudável. As mudanças climáticas determinam o agravamento de algumas dessas doenças. Tratar uma doença crônica como aids ou tuberculose é extremamente prejudicado quando se tem um alagamento, como foi no Sul, que exige toda uma reconstrução de infraestrutura. Assim como na seca, na região norte, os rios secos impedem as pessoas de chegar a uma unidade de saúde.
São infinitos exemplos de doenças que são agravadas ou ressurgem por questões climáticas. E isso é um foco, especialmente na questão da infraestrutura e do saneamento básico. É um programa realmente muito holístico, que abarca desde a questão da fome, da pobreza, da proteção social, até a ciência e tecnologia e questões elementares como infraestrutura e saneamento básico.