Trump, entre prepotência e fragilidade

Deportações em massa, ataques aos direitos humanos e arroubos contra Canadá, México e Groenlândia sugerem um presidente disposto a se impor pela força. Mas capacidade de efetivar as medidas não foi testada e é preciso considerar a hipótese de um “hiper imperialismo decadente”

Foto: AP Photo/Alex Brandon
.

Uma análise de Sônia Fleury, para o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz

Ameaças à democracia no mundo

O início do governo Trump já deixou claras suas posições e ações de desrespeito aos direitos humanos e às instituições democráticas, como no caso da negação do direito de cidadania às crianças nascidas em território dos Estados Unidos, o que fere a Emenda 14 da Constituição e está sendo objeto de disputa judicial. Ademais, centrando seu discurso na força e na virilidade, tomou medidas contrárias aos direitos reprodutivos e eliminou medidas progressistas como a identificação não binária. Tornando-se símbolo do autoritarismo no mundo, foi sufragado pelo voto popular, conseguindo apoio inusitado nas comunidades de latinos e negros. Isso decorre de uma conjuntura na qual a falta de perspectivas e a insegurança econômica e social tornam as classes médias baixas presas fáceis dos discursos de líderes que pretendem resgatar valores tradicionais e lhes oferecem promessas de retorno a uma situação idealizada.

Trump representa uma séria ameaça em relação ao aquecimento global, ao retirar o país do Acordo de Paris – o tratado internacional sobre mudanças climáticas de 2015 – e decretar emergência energética visando impulsionar o setor de  petróleo e eliminar as medidas do New Green Deal, como a obrigação de produção de carros elétricos. Além de aumentar os riscos dos eventos climáticos extremos, no país cuja produção de CO2 per capita já é a maior do mundo, certamente terá um impacto negativo na COP-30, a ser realizada em Belém, sob a presidência do Brasil, dificultando a construção dos acordos necessários para o avanço de ações de combate às mudanças do clima.

O anúncio da saída dos EUA da OMS terá consequências no financiamento da organização já que são o maior doador individual (18% do orçamento) além de financiar outros programas, por exemplo, 75% para HIV e doenças sexualmente transmissíveis e mais da metade das contribuições para o combate à tuberculose. Mais do que o impacto financeiro, que certamente será muito mais sentido pelos países mais pobres e que dependem desses programas, a saída dos EUA da OMS terá consequências que afetarão a saúde global, com grande impacto também dentro do próprio país. Como membro fundador da OMS, sua retirada significa minar o prestígio do sistema das Nações Unidas, acentuando a tendência a sua desimportância como mecanismo de construção de consenso e implementação de programas e ações para solução de problemas para benefício de toda humanidade.

Trump escolheu para comandar o Department of Health and Human Services (HHS), o equivalente ao nosso Ministério da Saúde, tendo como missão supervisionar as principais agências de saúde do país, Robert F. Kenedy Jr, um negacionista que segue defendendo que vacinas provocam autismo, em um país onde a cobertura vacinal já é baixa, atendendo a pressões empresariais. Também pretende recomendar às autoridades públicas locais acabar com a fluoretação da água. Ambas as posições, terão impactos severos na deterioração das condições de saúde da população estadunidense. Segundo Paulo Capel “o negacionismo, em suas diferentes expressões, das vacinas às mudanças climáticas, não é, portanto, desinteressado. Não é apenas produto de notável ignorância. É negócio”[1].

A retirada da participação dos EUA na OMS, que ainda deve ser aprovada pelo Parlamento, representará um grande impacto para o desenvolvimento da ciência e tecnologia em saúde, já que importantes instituições americanas estiveram na liderança de pesquisas médicas e participam, através da OMS, de redes que articulam a produção de informações sobre doenças e a difusão do desenvolvimento científico. Mas já se faz sentir o peso das decisões no setor saúde, com o cancelamento de vários eventos científicos e proibição da divulgação de comunicações externas, como relatórios científicos regulares e avisos de saúde, pelas agências federais de saúde. Sem falar no temor que se espalha, pelo fato de que agências dos EUA e Rússia são as únicas detentoras do vírus da varíola, enfermidade erradicada do mundo.

Além da demissão intempestiva e, para muitos, fora dos trâmites legais, de inspetores gerais das grandes agências federais, ligados a programas de diversidade, equidade, inclusão, acessibilidade e meio ambiente, consolida-se a estratégia de desmonte das políticas e da inteligência estatal em áreas diretamente vinculadas à promoção do bem-estar dos cidadãos e preservação do bem comum ambiental.  Ao designar Elon Musk para dirigir o novo Departamento de Eficiência Governamental, mesmo gerando questões éticas pelo fato de suas empresas prestarem serviços ao governo, o presidente mostra a direção adotada, ao pretender reduzir o tamanho do Estado em áreas que beneficiam a cidadania e impulsionar a indústria de ativos digitais. O desmantelamento das burocracias pode ser entendido como uma mudança na natureza política do Estado, enfraquecendo seus componentes democráticos e robustecendo os processos que envolvem o poder militar e empresarial, inclusive do próprio presidente, que faturou US$ 25 bilhões em um único dia com a moeda digital que leva o seu nome.

Culturalmente, o retrocesso do governo Trump é incomensurável, e já começa a ser sentido ao opor, de forma desonesta, a meritocracia à inclusão social, não só eliminando políticas inclusivas, como gerando um efeito multiplicador que já começa a impactar as empresas privadas, com a extinção de programas de emprego para grupos minoritários. Ignorando os importantes resultados sociais e econômicos dessas políticas de inclusão, a propagação da noção de mérito como um atributo individual, descontextualizado das condições sociais e institucionais geradoras das capacidades, tem o efeito de legitimar a dominação de grupos de elite com o impedimento da ascensão social de outros setores populacionais.

Já o alinhamento do governo Trump a um movimento global de articulação da direita, em países de vários continentes, tendo como lideranças seus assessores Steve Bannon e Elon Musk – que fizeram saudações nazistas durante a cerimônia de posse – representa um perigo global para a democracia. Está gerando expectativas da extrema-direita, inclusive aqui no Brasil, onde o perdão dado aos invasores do Capitólio alimenta esperanças de que, algum dia, Bolsonaro seja anistiado. Apesar de o mandato atual do governo de Trump contar com a maioria conservadora no Congresso, no Senado e na Corte Suprema, facilitando a aprovação de sua agenda nacional, não é provável que tente exercer sua influência de forma violenta em países que estejam fora do seu raio de interesse econômico e político, como o Brasil.

No entanto, a influência ideológica em torno da disputa acerca do significado da democracia tende a se intensificar e desbordar para outros contextos nacionais. Enquanto os liberais defendem a democracia como a garantia da lei e dos direitos, os democratas adicionam a esses princípios a necessidade de promoção de oportunidades e medidas políticas que assegurem a igualdade e a justiça social. Já a extrema-direita atual defende a liberdade negativa, como ausência da intervenção estatal e a desregulação, atribuindo primazia ao individualismo possessivo e competitivo sobre todos os demais valores na organização das relações econômicas e sociais.

Além de promover o desmonte do Estado, a identificação do líder populista autoritário com o povo que o elegeu, sem a intermediação das instituições, ameaça a distinção entre Estado e Sociedade, invisibilizando as linhas demarcatórias que separam o poder político do poder administrativo. Trata-se da denegação de todo aspecto normativo da ordem administrativa, particularmente, de toda garantia universalista da representação de direitos, como expusemos na coletânea Cidadania em Perigo – Desmonte das Políticas Sociais e Desdemocratização no Brasil[2].

A associação entre o governo e os donos das big techs, teatralmente manifestada na presença dos seus proprietários bilionários na cerimônia de posse, teve a intenção de deixar clara a fase atual de um capitalismo de negócios, no qual nem mesmo a aparência de distanciamento entre o governo, como representante do interesse geral, do capital, com seu interesse particular, parece ser útil e precisa ser mantida. Antecedida pela subserviência pragmática do dono da Meta, Mark Zuckerberg, e sucedida pelo anúncio de um pacote de US$ 500 bilhões em investimentos em inteligência artificial, com a criação da Stargate, vão se consolidando os laços e a interpenetração dos interesses na área de IA. Cada vez mais desregulada, a IA é uma ameaça à democracia e à liberdade de todos os cidadãos no mundo, aumentando o controle, espalhando desinformação e desestabilizando os adversários.

No entanto, as contradições entre o apoio popular recebido nas eleições e os interesses egoístas daqueles que já se vêem na perspectiva de se tornarem trilionários às custas do aumento da miséria e da desigualdade no mundo (relatório da Oxfam), devem se manifestar ao longo do termo do governo Trump. Da mesma forma, contradições entre uma visão empresarial e outra ideológica, representadas por Musk e Bannon, provavelmente poderão se acirrar, por exemplo, em relação à China.

No que concerne à geopolítica, as ameaças de anexação do Canadá, compra da Groelândia, intervenção no canal de Panamá, aumento da taxação de produtos importados da China, do México e dos BRICS, mudança do nome do golfo do México, soaram, inicialmente, como bravatas de uma retórica imperial, para, em seguida, serem consideradas como lances iniciais de um jogo que inaugura um processo de negociação, no qual a barganha pode favorecer os interesses dos EUA. Mais que mera retórica, há interesses econômicos em disputa e o discurso inicial teve o efeito de colocá-los na agenda política global, embora, como diz a sabedoria popular, “o jogo só termina quando acaba”. Confirmando nossa análise, já se abriu um canal de negociação com a China, mas se espera uma posição mais dura em relação ao Brics, no caso de persistir na linha de não utilização do dólar nas relações comerciais.

Trata-se de um projeto que envolve medidas protecionistas, com aumento de tarifas para importação, em uma tentativa de reindustrialização dos Estados Unidos, por meio de redução de impostos para que as indústrias se instalem em seu território. Uma estratégia arriscada, face ao possível aumento da inflação, que já é um dos principais problemas para a população, em especial para as classes médias.

José Fiori pondera que há diferenças para o governo Trump, entre os graus de liberdade no âmbito nacional e no internacional: “As políticas internas de Donald Trump envolvem decisões soberanas e autônomas, e poderão ser tomadas sem maiores consultas a outros países e governos. Mas, no caso da agenda internacional do novo governo, o problema é muito mais complexo, porque envolve acordos passados dos EUA, e se enfrenta com a vontade soberana de outros países, e de outras grandes potências, como no caso da China, do Irã, da Rússia, ou mesmo dos seus aliados da Otan”[3].

A perspectiva imperial adotada por Trump não se coaduna com um mundo multipolar, no qual a China vem ocupando papel crescente no desenvolvimento tecnológico e nas relações econômicas com outras nações, estreitando suas relações com a Rússia e intensificando sua presença econômica com investimentos em diferentes países na Rota da Seda. Assim, o vazio deixado pela política de Trump em relação à OMS e à liderança no desenvolvimento científico e tecnológico em saúde abre espaço para que a China busque ocupar esse lugar; efeito não considerado no cálculo político trumpista.

Os Estados Unidos seguem sendo uma potência em termos tecnológicos, científicos e militares, mas a postura imperial de Trump parece ser mais uma tentativa desesperada de parar um processo de decadência em curso do que uma análise consequente das possibilidades de a MAGA[4] restaurar a hegemonia do império norte-americano. Dados do Instituto Tricontinental[5] mostram o deslocamento global da base econômica para o Sul. Enquanto os países do Norte Global enfrentam um declínio prolongado no crescimento, os países do Sul Global, sobretudo da Ásia, apresentam a trajetória de crescimento mais alta nos últimos trinta anos[6].

A situação é ainda mais dramática quando comparados dados sobre a participação dos Estados Unidos no PIB mundial versus 43 países do Sul Global.

A análise da fase atual do capitalismo que o Instituto Tricontinental chamou de um hiper imperialismo decadente, alerta para os perigos da estratégia dos Estados Unidos para conter e derrotar a China como um inimigo estratégico central, simbolizada no slogan “a paz através da força”. Atualizando o clima de guerra fria, tal estratégia tem propiciado o crescimento de tensões e conflitos bélicos no mundo.

A expansão da presença chinesa na América Latina é monumental, sendo que o fluxo comercial entre América do Sul e China cresceu de US$ 15 bilhões, em 2001, para cerca de US$ 300 bilhões, em 2019, aponta José Fiori.

“Dividida em blocos, e com a maior parte dos países separados ou distantes do Brasil, por conta do contencioso venezuelano, a América do Sul deverá se manter na sua condição tradicional de periferia econômica do sistema internacional, mesmo diversificando e ampliando seus mercados na direção da Ásia. Para não ser assim, o Brasil terá que assumir a liderança material do continente, construindo uma estrutura produtiva que combine indústrias de alto valor agregado e tecnologias de ponta, com a produção de alimentos e commodities de alta produtividade, mantendo sua condição de grande produtor de energia tradicional e energia limpa”. Para tanto, deverá enfrentar uma concorrência acirrada e um boicote explícito de Donald Trump[7].

Mas, vamos tratar da conjuntura nacional no próximo artigo.


Referências:

[1]https://outraspalavras.net/outrasmidias/eua-os-arautos-do-negacionismo-de-negocio/

[2] Fleury, Sonia (org). Cidadania em Perigo – Desmonte das Políticas Sociais e Desdemocratização no Brasil. Edições Livres, Cebes. Rio de Janeiro, 2024.

[3] https://aterraeredonda.com.br/donald-trump-e-o-sistema-mundial/

[4] MAGA – Make America Great Again

[5] Instituto Tricontinental – Hiperimperialismo: um novo estágio decadente perigoso

[6] https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/trump-ea-doenca-do-colonizador-ressentido/

[7] https://outraspalavras.net/descolonizacoes/a-america-do-sul-a-beira-do-futuro/

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *