Reforma totalitária e tecnicista na Educação de SP
Análise de como avança o desmonte do ensino no estado, sob o fetiche da tecnologia. Mudanças curriculares voltadas ao mercado impõem a entrada massiva de plataformas. Ameaçam a autonomia pedagógica e precarizam ainda mais o trabalho docente
Publicado 21/01/2025 às 18:35
A maneira pela qual é reorganizada anualmente as matrizes curriculares no estado de São Paulo têm gerado incômodos com relação a carga horária de cada disciplina, em uma espécie de disputa por mais aulas de cada componente, por outro lado fica explícito o esvaziamento dos conteúdos das diferentes ciências, com destaque para as humanidades. No Ensino Médio, as disciplinas de Sociologia e Filosofia praticamente foram extintas do currículo, o mesmo ocorrerá com Geografia e História, em 2025, no Ensino Fundamental Anos Finais. O enxugamento das disciplinas do que atualmente intitula-se como formação geral básica, vem acompanhada do aumento da parte diversificada do currículo com a inserção volumosa de plataformas digitais na mediação do trabalho docente e um amplo e profundo processo de privatização da educação estatal. Diante desse cenário é necessário refletir sobre as articulações que promovem a subordinação da forma e conteúdo escolar, aos interesses em disputa nessas constantes e permanentes alterações curriculares.
A rede estadual paulista, já em 2020, instituiu uma matriz curricular flexível, a partir da implementação do Programa Inova Educação em todos os níveis de ensino. Foi nesse momento que se inaugurou a chamada parte diversificada do currículo, inicialmente com três componentes: o Projeto de Vida, Tecnologia e Inovação e uma disciplina Eletiva. Dessa maneira, a gestão de João Dória com Rossieli Soares à frente da Secretaria de Educação em conjunto com fundações empresariais, em especial o Instituto Ayrton Senna, anteciparam a Reforma do Ensino Médio no estado e foram além, produziram uma reorganização da matriz curricular desde o Ensino Infantil, passando pelo Ensino Fundamental e desaguando no Ensino Médio.
A gestão de extrema direita de Tarcísio de Freitas e seu secretário, Renato Feder – que não esconde suas pretensões de reproduzir um modelo de ensino focado na reprodução do assédio moral e na possibilidade de lucros – manteve a essência do Programa Inova Educação, apesar de descontinuar a nomenclatura, aprofundando ainda mais a parte diversificada do currículo.
Os dispositivos legais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e da Reforma do Ensino Médio (em qualquer uma das suas versões) referendaram as alterações da matriz curricular de maneira permanente, em uma articulação entre a padronização e a flexibilização (Goulart; Alencar, 2021), que expressam os interesses de um amplo mercado educacional, calcado em um movimento duplo: de um lado, o profundamente das privatização e da financeirização da educação estatal (Catini; Mello, 2024), expressos nos recentes “leilões às avessas” (já que leva quem paga menos), por outro lado, a continuidade da subordinação da forma escola à dinâmica empresarial, com setores do capital organizando os currículos, os tempos, as metodologias e agora, a entrada massiva das plataformas digitais.
Flexibilização permanente e esvaziamento dos conteúdos
A intensificação da flexibilização curricular, a partir da agenda da gestão de Renato Feder, segue com modificações anuais, adicionando novos componentes e alterando a quantidade de aulas de disciplinas “clássicas” que compõem a formação geral básica. O próprio Currículo Paulista, aprovado em 2019, de alguma forma foi alterado através da imposição dos Materiais Digitais, atrelando-os às avaliações externas bimestrais – Prova Paulista. As aulas prontas em slides inicialmente foram elaboradas por pessoas contratadas por produtos como Pessoa Jurídica, através de diversos editais em parceria com a UNESCO e a Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, Ciência e Cultura (OEI)1 e depois passaram a ser realizados por ChatGPT com monitoramento de professores da rede (Palhares, 2024).
A Resolução SEDUC – 85, de 31 de outubro de 2024, promove novamente um redesenho dos currículos, sobretudo para os Anos Finais do Ensino Fundamental, nas escolas de tempo parcial, aprofundando a divisão entre os componentes da BNCC e a parte diversificada, reduzindo brutalmente as disciplinas das humanidades, e aumentando os componentes diversificados. Na etapa do Ensino Fundamental Anos Finais, percorrendo um breve histórico, de 2020 a 2023 foram inseridos três componentes, que compunham o Programa Inova Educação, em 2024 foi incluído o componente de Orientações de Estudos, e para 2025 os componentes da parte diversificada somam: Orientação de Estudos de Português, Orientação de Estudos de Matemática, Redação e Leitura, além do Projeto de Vida, Educação Financeira e Tecnologia e Inovação, totalizando sete aulas semanais nessa etapa “flexível” do currículo, em detrimento de outras disciplinas.
Além dos componentes que versam sobre condutas e comportamentos como Projeto de Vida e Educação Financeira, a substituição das disciplinas que sistematizam os diferentes conhecimentos científicos, pode aparecer como um reforço, conforme sugere os nomes “Orientação de Estudos” em Português e Matemática e “Redação e Leitura”. Mas seria ingênuo acreditar que a alteração na matriz curricular é sobre recuperar os estudantes que não aprenderam essas disciplinas essenciais, uma vez que pela resolução em questão reduz-se duas aulas de Português para todos os anos/séries do ensino fundamental, de seis para quatro aulas, assim como a disciplina de Matemática que também perde uma aula semanal no 8 e no 9° ano, de seis para cinco (em comparação a matriz curricular anterior, organizada pela Resolução SEDUC – 53, de 16-11-2023). Ou seja, o marketing alardeado pela Secretaria de Educação de SP, publicizado em sua rede social dia 29 de dezembro de 2024, como “ampliação da carga horária de português e matemática” não se sustenta, já que são reduzidas aulas dessas disciplinas. O que justificaria, portanto, a redução dos conteúdos das diferentes disciplinas, prejudicando significativamente a formação dos estudantes, para ampliar os componentes diversificados? Por que não manter a quantidade de aulas dessas disciplinas ao invés de criar novos componentes? Algo tem cheiro de propaganda enganosa.
Plataformas digitais e o controle do trabalho
Ao mesmo tempo em que cresce a parte diversificada do currículo, implementa-se arbitrariamente as plataformas digitais na mediação do trabalho docente e na gestão do trabalho. Em 2023, a Secretaria de Educação de São Paulo implantou um conjunto de plataformas digitais de forma autoritária alterando radicalmente o trabalho docente, os processos pedagógicos e as práticas escolares, intensificando o controle sobre os estudantes e os professores, restringindo ainda mais a já limitada autonomia docente.
O primeiro componente a ter uma plataforma de uso obrigatório foi Tecnologia e Inovação, que deveria utilizar a plataforma de programação Alura. Posteriormente chegou o Matific e o Khan Academy para Matemática no Ensino Fundamental Anos Finais e no Ensino Médio respectivamente; Redação SP e Leia SP para disciplina de Português, Tarefa SP para todas as disciplinas, com obrigatoriedade de acesso no componente de Orientação de Estudos em 2024. Para o 3° ano do Ensino Médio em 2023, veio a plataforma Prepara SP, um codinome para o cursinho online da empresa Me Salva!, comprada em 2021 pelo grupo Arco Educação, um oligopólio da área da educação (Seki, 2023). Assim, fez-se uma espécie de teste em 2023 e na sequência, em 2024, implementaram componentes curriculares que tinham obrigatoriedade de utilização das plataformas digitais, como é o caso do componente Aceleração para Vestibular, que abrigou a plataforma Me Salva! e “Orientações de estudos”.
A questão que se coloca sobre as alterações constantes no currículo parece não ser respondida apenas como uma perseguição às disciplinas de humanidades, que poderiam fomentar uma interpretação (e ação) crítica sobre o mundo, embora a agenda de extrema direita do atual governo de São Paulo corrobore com essa percepção e, muito provavelmente, estejam relacionados. Os componente inseridos na matriz curricular para 2025 sugerem a continuidade do projeto de inserção das plataformas digitais em detrimento das aulas organizadas, planejadas e ministradas por professores, indicando a consolidação de espaços e tempos para abrigar o uso obrigatório e exclusivo das plataformas, como é o caso dos componentes de “Orientação de Estudos” e “Redação e Leitura”, cujas diretrizes curriculares inexistem e as orientações para os docentes resume-se a aplicação das plataformas.
As permanentes alterações das matrizes curriculares reorientam a forma escola no sentido de eliminar paulatinamente os conhecimento científico, enquanto incorpora conteúdos e práticas escolares voltados para um mundo do trabalho precarizado e informal, onde mobiliza-se comportamentos direcionados ao empreendedorismo de subsistência, focado na responsabilização dos jovens através da educação financeira, conformando mecanismos de gestão e consenso em um cenário de futuro catastrófico. Por outro lado, cria-se momentos para utilização das plataformas digitais, procurando garantir acessos, gerando mais dados para alimentar um sistema baseado em metas e resultados centralizados, aumentando o controle do trabalho educativo enquanto movimenta-se uma cadeia produtiva voltada para inserção de tecnologias.
As plataformas vendidas como recursos didáticos apresentam-se no processo de ensino-aprendizagem como instrumentos ensimesmados e não mobilizam os estudantes, ao contrário do discurso proferido. Dessa forma, exercem a função de controle de todo o ambiente escolar, incorporando a lógica da responsabilização pelos resultados desde muito cedo para os estudantes, espraiando para todos os trabalhadores da educação.
Ao mesmo tempo, a função do docente é estreitada, perdendo o pouco controle que ainda dispunha sobre o conteúdo do seu trabalho, uma vez que as matrizes curriculares, a quantidade de aula e o currículo se modificam anualmente. Projeta-se para os docentes a função de tutor da plataforma. É importante dizer que algumas dessas plataformas, como a SPeak utilizada na disciplina de inglês e o Me Salva! utilizado no componente Aceleração para o Vestibular possuem aulas gravadas assíncronas com exercícios prontos, já organizados pela empresa da plataforma, nesses casos a tarefa dos professores é apenas garantir que os estudantes acessem as plataformas.
O processo educativo ganha mais uma camada de controle, sob o discurso de modernização do ensino, coletando e gerando dados de acessos de milhões de estudantes. Dessa forma, atrela-se novas mercadorias no cotidiano da escola com a intensificação do controle sobre o trabalho docente e sobre a ação dos estudantes, promovendo uma institucionalização do assédio moral, com a centralização e metrificação dos dados de acesso e acertos gerados nas diferentes plataformas no Painel Escola Total B.I. da Educação (Business Intelligence), importando dos procedimentos empresariais o gerenciamento de metas e resultados informatizados. A escola opera como uma fábrica de dados e resultados, que em nada se relaciona ao que é ensinado ou aprendido, reproduzindo a antiga lógica do apertar o botão, agora com ares de indústria 4.0.
As metas de cada plataforma são enviadas para as gestões e repassadas para os professores, os resultados são categorizados por cores, quando atingem-se as metas de acessos e exercícios, representa-se pela cor verde, quando não atingem, acende a cor vermelha e o meio termo fica no amarelo, gerando um “rankeamento” em escala: começando pelos estudantes, incidindo em cobranças para os professores até chegar na gestão, com a classificação geral das escolas.
Os resultados gerados incidem na continuidade de gestões (Resolução 04, de 19 de janeiro de 2024 e Resolução 38, de 03 de junho de 2024) e resvala na atribuição de aulas dos docentes. Embora não haja nenhuma resolução sobre isso, a premissa da escolha ser do diretor (como na Resolução 77 e a falta de transparência na classificação dos professores) contribui para pressionar no sentido de não atribuir aulas de componentes “plataformizados” para quem não corresponder às metas.
Aparentemente a Secretaria de Educação está elaborando um novo currículo sob demanda, analogamente a um modelo just in time2curricular, que atende aos interesses dos capitais relacionados às plataformas digitais e a cadeia produtiva acessória, reorganizando os conteúdos e os ritmos da escola. O trabalho pedagógico é alterado em todas as suas instâncias, na relação pedagógica, no caráter útil do seu trabalho, na formação esvaziada dos estudantes e na instabilidade dos vínculos de trabalho, tornando-o um tutor subordinado ao ritmo da máquina, para garantir que os estudantes atinjam a meta, tal qual um gerente de produção em relação aos operários.
As consequências nefastas da flexibilização dos currículos foram muito debatidas na perspectiva da formação dos estudantes, em especial na crítica à Reforma do Ensino Médio, entretanto a reforma é totalitária e foi incorporada para todas as etapas de ensino, sem a máscara da escolha do itinerário formativo.
A permanente modificação dos currículos aumenta a instabilidade e tende a reduzir o número total de docentes na rede, incidindo em demissões especialmente entre os professores de contratos temporários (como os que integram a chamada categoria O e V e as novas letras criadas para designar esses trabalhadores), precarizando ainda mais as condições de trabalho. Mesmo para os professores efetivos não há garantia de estabilidade na mesma unidade escolar, a redução das aulas obriga os professores a atribuírem mais aulas de componentes sem formação específica e em mais escolas. Esse parece ser um resultado pensado e organizado do modus operandi das novas políticas educacionais.
A inserção de novas tecnologias que tende a aparecer como solução mágica para qualquer problema, em sua essência é a manifestação do trabalho morto, já realizado em outro processo produtivo, e que agora pode atuar “gratuitamente em larga escala, como uma força da natureza” (2013, p. 461), conforme apontou Marx em sua análise sobre a Maquinaria e a Grande Indústria. O imperativo do fetiche reveste a introdução das plataformas digitais, onde o trabalho realizado anteriormente fica oculto e a simplificação e a degradação do trabalho vivo ganham forma, esvaziando os conteúdos tanto do trabalho docente como da formação dos estudantes.
A educação estatal transmuta-se em mercadoria, operacionalizada através de uma constante reorganização escolar, agora sob nova direção, incorporada na figura da extrema direita com seu martelinho privatizante, que não esconde suas reais intenções: transformar tudo que toca em possibilidade de lucros enquanto aprofunda a exploração do trabalho e a violência. Nesse cenário, que integra uma articulação sinistra entre controle e precarização do trabalho, com escassa infraestrutura, assenta-se a modernização da educação estatal.
Referências
CATINI, C.; MELLO, G. Escolas leiloadas na bolsa de valores. Que educação é essa? Boitempo. São Paulo, 2024. Disponível em: https://www.boitempoeditorial.com.br/blog/2024/11/11/escolas-leiloadas-na-bolsa-de-valores-que-educacao-e-essa/ Acesso em 18 dez. 2024
GOULART, D; ALENCAR, F. Inova Educação na rede estadual paulista: programa empresarial para formação do novo trabalhador. Revista Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v.13, n.1, p.337-366, abr. 2021. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/43759. Acesso em: 14 jul. 2021
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro 1: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
PALHARES, I. Gestão Tarcísio vai usar ChatGPT para produzir aulas digitais no lugar de professores. Folha de São Paulo. São Paulo, 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2024/04/gestao-tarcisio-vai-usar-chatgpt-para-produzir-aulas-digitais-no-lugar-de-professores.shtml.
SÃO PAULO. Resolução SEDUC 04 de 19 de janeiro de 2024. Disponível em: https://sedsee.blob.core.windows.net/ficha/Anexo/legislacao23012024101947RESOLUÇÃO%204.pdf?Time=11:35 Acesso 22 jun. 2024.
SÃO PAULO. Resolução SEDUC 38 de 03 de junho de 2024. Disponível em: https://sedsee.blob.core.windows.net/ficha/Anexo/legislacao04062024093528RESOLU%C3%87%C3%83O%20SEDUC%20-%20N%C2%B0%2038,%20DE%2003%20DE%20JUNHO%20DE%202024.pdf?Time=11:51 Acesso 24 jun. 2024.
SÃO PAULO. Resolução Seduc 77, de 24 de outubro de 2024. Disponível em: https://midiasstoragesec.blob.core.windows.net/001/2024/10/63f3af7c_b217_4d79_8f58_3e23bbc529bb-2.pdf. Acesso em 24 jun. 2024.
SÃO PAULO. Resolução Seduc – 85, de 31 de outubro de 2024. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1eibfZ6JEF3PYSFP1wnC4MMWYt_cbTW0v/view Acesso em: 16 dez. 2024.
SEKI, Allan Kenji. Relações entre capitais de ensino, monetários e tecnologias educacionais digitais: um estudo de caso da Arco Educação. Revista Cocar, [S. l.], n. 20, 2023. Disponível em: <https://periodicos.uepa.br/index.php/cocar/article/view/7499>. Acesso em: 15 jul. 2024
1 No âmbito do Prodoc 914BRZ1077 e OEI-BRA019/001.
2 Em referência ao modelo fabril toyotista, sem estoque, sob demanda.