Cuidado: o desafio de remunerar os trabalhos invisíveis

Pesquisador analisa impactos e limites da nova Política Nacional de Cuidados. Iniciativa pode ter grande impacto social. Mas há brechas a serem preenchidas, como a urgência da ampliação do cuidado domiciliar, com a expansão da população de idosos

Arte: Linoca Souza, Revista Fapesp
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Jorge Félix em entrevista a Gabriel Brito

O governo Lula encerrou seu segundo ano com a sanção de um projeto que, se for realmente implementado, poderia tocar nas seculares estruturas sociais e trabalhistas do país. Trata-se da Política Nacional de Cuidados (PNC), criada após quase dois anos de discussões entre representantes de 20 ministérios, com o intuito de reconhecer o cuidado em variadas dimensões como uma esfera fundamental da vida social.

“Política Nacional de Cuidados é bastante importante porque, ao contrário dos projetos de lei que tramitavam no Congresso Nacional, foi o primeiro a reconhecer o cuidado como trabalho. O grande desafio é tornar o cuidado um trabalho visível e, portanto, remunerável”, resume o economista Jorge Félix, autor do livro Economia da Longevidade e estudioso da economia dos cuidados.

No entanto, como alerta Félix, o pais ainda está longe de criar as condições para a efetivação de uma política de cuidados que altere o atual estado de invisibilidade de milhões de pessoas, em especial mulheres, que acabam tendo anuladas suas vidas social e econômica. Tal contexto se agrava no caso brasileiro, onde persiste uma cultura escravocrata e de superexploração do trabalho.

“A Política Nacional do Cuidado terá impacto semelhante à PEC das domésticas. E embora a gente precise destacar que apenas 25% dos domicílios brasileiros contratam este trabalho, de babá ou cuidadora, vai ter um impacto nessas relações sociais”, explicou.

Nesse sentido, Félix, também pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), onde se desenvolve toda uma linha de pesquisas relativas aos cuidados, alerta que a PNC, ainda que parta das melhores premissas e intenções, está longe de equacionar o problema do reconhecimento desta ocupação como trabalho formal. Sem tergiversações, o grande obstáculo é o modo capitalista de reprodução socioeconômica, que sempre se serviu da exploração do trabalho de cuidado não remunerado.

“Não faz sentido ter uma Política Nacional de Cuidado e não regulamentar a principal profissional que atua nessa área [a cuidadora]. É completamente paradoxal e vai ter de voltar à tona. E não sabemos se o Brasil vai remunerar ou não o cuidador informal, isso é extremamente polêmico. A outra questão é se vai se criar um serviço de cuidado domiciliar, porque essa é a grande necessidade das pessoas de baixa renda, que não conseguem comprar cuidado no mercado.”

Na entrevista, Jorge Félix destaca que se trata de um desafio global, não só brasileiro, mas outros países ao menos já avançaram no reconhecimento do cuidador como um profissional. Quanto ao Brasil, ainda será necessário avançar na criação de um sistema público de cuidados, ou ao menos a preparação do SUS – e também do Sistema Único de Assistência Social – para a absorção desta demanda que ganhará novos contornos com a mudança demográfica da população. Caso contrário, o cuidado será apenas mais um serviço ofertado pelo mercado e adquirido por quem pode pagar. Neste caso, praticamente os mesmos 25% da população que possuem acesso a seguros privados de saúde.

“Qual é o grande desafio e a grande necessidade hoje da população? É o cuidado domiciliar. O SUS não tem como cuidar dessas pessoas, ou hospitalizá-las. O país passa por uma transição epidemiológica, o que trará um aumento das doenças crônicas, que em grande parte não serão hospitalizáveis, eles têm de viver em casa, seja com Alzheimer, com Parkinson, sequelas de AVC. Todas essas condições que aumentam na população se refletirão em mais necessidades de cuidado domiciliar”, contextualiza.

Fique com a entrevista completa

Como estudioso de profundidade da área de cuidados, sua economia e relações sociais, como avalia a sanção da Política Nacional de Cuidados, após a realização de todo um estudo de preparação que envolveu 20 ministérios? 

É muito importante. Antes, tínhamos iniciativas do Legislativo, mas o Executivo nunca tomou a frente. É relevante porque tem o envelhecimento como um dos principais públicos alvo, o que é inédito. A questão sempre esteve muito pulverizada entre muitos ministérios. Vejo um lado positivo e outro negativo. Primeiro, é muito difícil orquestrar tal desafio quando não se tem, como em outros países, uma secretaria ou até um ministério diretamente destinado a tratar de cuidado.

De todo modo, foi um trabalho executado num tempo muito razoável, desde a implantação do grupo de trabalho até a sanção presidencial (um ano e sete meses). É louvável. Em termos do conteúdo, a Política Nacional do Cuidado também é bastante importante porque, ao contrário dos projetos de lei que tramitavam no Congresso Nacional, foi o primeiro a reconhecer o cuidado como trabalho. Ao reconhecer o cuidado como um trabalho, tem-se uma série de desdobramentos normativos muito importantes para romper com a lógica histórica, oriunda da escravidão aqui no Brasil, de que o cuidado pode ser não remunerado.

O grande desafio é tornar o cuidado um trabalho visível e, portanto, remunerável. Porque isso está na origem do campo de estudo da economia do cuidado pelas economistas feministas da década de 1960.

Uma política ampla de cuidados não afeta diretamente as relações sociais ditadas pela lógica capitalista? Não estaríamos falando da valorização de atividades não rentáveis, largamente invisibilizadas?

Quando há um cuidado não remunerado, e estamos falando do cuidado doméstico, o cuidado familiar, o cuidado com as crianças, o cuidado com os idosos, obrigatoriamente há uma maior exploração do trabalho porque essas pessoas estão cuidando de alguém que vai ser mão de obra para o capital. Aquela velha história: a roupa suja não sai do cesto sozinha e vai para a gaveta. Quem faz a comida, quem lava a louça tudo isso está relacionado à reprodução da vida, a chamada reprodução social e, portanto, alguém ganha com isso.

Quando se tem uma sociedade que está construída num trabalho de cuidado gratuito, não remunerado, baseado nas relações afetivas e emocionais, está se tendo uma maior exploração, e essa maior exploração, evidentemente, cai nas costas dos trabalhadores mais pobres. Tem um recorte de classe, um viés racial, étnico (negros) e de gênero (mulheres).

Até hoje, quem cuida no Brasil é a mulher pobre e negra, que está sendo explorada por esse cuidado, ou gratuito ou mal remunerado. É nisso que implica o reconhecimento no texto da Lei da Política Nacional do Cuidado, e é o aspecto que considero mais relevante.

A Política Nacional do Cuidado terá impacto semelhante à PEC das domésticas, a regulamentação da profissão de trabalhadora doméstica, que também sempre teve essa mesma lógica escravocrata. Depois, a sociedade teve que partir para outros arranjos. E embora a gente precise destacar que apenas 25% dos domicílios brasileiros contratam trabalho (isso é um dado que está lá na nossa pesquisa do Cebrap), de babá ou cuidadora, vai ter um impacto nessas relações sociais. E isso vai depender ainda de como evoluir a discussão da aplicação do plano.

Por exemplo, uma das discussões mais polêmicas e que divide opiniões é a remuneração para o cuidador familiar. Porque outros países remuneram alguns tipos de benefícios para pessoas que precisam sair do mercado de trabalho para cuidar. Com o envelhecimento da população, isso começa a atingir um maior número de pessoas a ponto de, nos países mais envelhecidos, gerar um abalo na oferta de trabalho, o que implica numa inflação de salários.

É toda uma relação econômica e social que se modifica a partir do reconhecimento do cuidado como um trabalho.

Portanto, a PNC tem tudo pra se chocar com o que podemos chamar de ideologia neoliberal que predomina na administração pública, com seus dogmas de austeridade, corte de despesas sociais, controle fiscal, precarização trabalhista etc? Como você mesmo afirmou em entrevista no ano passado, é fundamental a participação do Ministério da Fazenda na implementação desta política?

Sim, colocamos isso desde o início do grupo de trabalho que elaborou a política, quando a Fazenda ainda não estava, e isso aconteceu em países que conseguiram minimamente apresentar alguma solução. Devemos destacar que não tem país que tenha solucionado a questão do envelhecimento populacional. Há alguns países com algumas coisas melhores, outras piores, mas o mundo inteiro está diante desse desafio e algumas boas práticas tiveram a participação dos ministérios econômicos desses outros países.

Tais discussões implicam um investimento público, porque como perguntado temos hoje a maior oferta de cuidado pelo mercado, que é a construção das grandes redes, por exemplo, de instituições de longa permanência para idosos, uma série de serviços domiciliares que são privados. E essa oferta do mercado, aqui também falando no campo da saúde, se refere aos 25% da população que têm condições de adquirir. Coincidentemente, são os mesmos 25% que têm plano de saúde. Para essa parte da população, pode ter até uma redução de gastos devido à concorrência. Seja o trabalho domiciliar, de cuidado, seja a institucionalização ou mesmo a creche ou os cuidados para pessoa com deficiência. Mas como os outros 75% da população vão equacionar o aumento da demanda por cuidado? Porque também vai ter um envelhecimento proporcional dessa parcela da população, mesmo que ela não atinja os níveis de longevidade, de expectativa de vida daquelas pessoas dos estratos sociais de maior renda, mesmo com as desigualdades de classe, regionais, territoriais, de expectativa de vida etc.

Hoje, ainda existe pressão sobre o cuidado infantil, demandas por creches, de mães que deixam de trabalhar porque precisam cuidar e não têm onde colocar as crianças. Isso tende a ser reduzido com a crônica queda da taxa de fecundidade que nós assistimos. Na outra ponta, tende a ser ampliado o cuidado com pessoas idosas. Dessa forma, aparecem grandes desafios na saúde: o aspecto econômico de redução da oferta de trabalho, de quem vai cuidar e a remuneração desse cuidador familiar que chamamos de cuidador informal.

A PNC apresenta avanços objetivos ao SUS? Como o SUS pode ser parte ativa dessa iniciativa?

Há uma questão discutida no GT, mas não contemplada na política nacional do cuidado: não se tocou na construção de um sistema integrado de cuidado. Isso foi feito por outros países, inclusive da América Latina, e fica como desafio ao SUS e também ao SUAS (Sistema Único de Assistência Social), pois o projeto cria uma política, mas não um sistema.

Qual é o grande desafio e a grande necessidade hoje da população? É o cuidado domiciliar. O SUS não tem como cuidar dessas pessoas, ou hospitalizá-las, pois o ponto aqui é a transição epidemiológica que nós vivemos com o envelhecimento da população. O país passa por uma transição epidemiológica, o que trará um aumento das doenças crônicas, que em grande parte não serão hospitalizáveis, pois os pacientes não são hospitalizáveis, eles têm de viver em casa, seja com Alzheimer, com Parkinson, com outros tipos de demência, sequelas de AVC. Todas essas condições que aumentam na população se refletirão em mais necessidades de cuidado domiciliar.

As famílias precisam ser apoiadas no cuidado familiar, seja por escassez de pessoas para cuidar, seja porque a mulher está no mercado de trabalho, porque hoje as famílias não têm uma grande quantidade de filhos, há uma maior mobilidade territorial da mão de obra… Esse será o grande desafio da política e do plano.

Recentemente, o país também criou uma Política de Cuidados Paliativos e reconheceu essa forma de cuidado como especialidade profissional em saúde, inclusive a se inserir dentro da integralidade do SUS. Tal política, a seu ver, poderia passar por uma ampliação do reconhecimento de serviços invisibilizados e preparação de novas carreiras nas instituições de ensino, mas também dentro da esfera familiar, onde a fronteira entre afeto e trabalho tenderia a uma dissipação?

O que deveria ser rediscutido é a regulamentação da profissão de cuidador/cuidadora, onde a maioria é mulher, discussão vetada durante o governo Bolsonaro e à tona agora de novo. Não faz sentido ter uma Política Nacional de Cuidado e não regulamentar a principal profissional que atua nessa área. É completamente paradoxal e vai ter de voltar à tona. E não sabemos se o Brasil vai remunerar ou não o cuidador informal, isso é extremamente polêmico. A outra questão é se vai se criar um serviço de cuidado domiciliar, porque essa é a grande necessidade das pessoas de baixa renda, que não conseguem comprar cuidado no mercado.

Os programas de sucesso são muito pequenos, vamos dizer de boutique, em relação ao tamanho do Brasil. É o exemplo do Programa de Atendimento a Idosos, um grande sucesso, mas tem uma grande restrição, atende uma maioria de funcionários dos serviços públicos e é sediado no Hospital dos Servidores Públicos, com uma clientela muito pequena. E há um programa de Belo Horizonte que praticamente espelha o PAI. No meu ponto de vista, o grande desafio de uma política nacional do cuidado é transformar o PAI num programa nacional.

Sua pesquisa é bastante crítica da financeirização da velhice, e dessa forma do próprio acesso a cuidados, dentro de uma dinâmica na qual o estado aparece muito mais como um ente validador das lógicas de mercado também neste âmbito, e não tanto um provedor direto do cuidado. A PNC visaria alterar essa orientação, haverá recursos financeiros efetivos para isso?

É a pergunta que está no ar. Já fiz muitas coisas visitando pessoas que são atendidas pelo PAI, quando se constata a necessidade da pessoa. Tem uma pessoa idosa em casa, ela precisa de uma pessoa ali para ajudar a dar banho. No filme Alzheimer na Periferia, disponível na internet, vemos a necessidade de famílias que contam com apoio estritamente de si mesmas, salvo episódios de algumas pessoas que iam para o hospital por algum evento de saúde ou no final da vida.

Mas o grande desafio, a grande questão hoje no Brasil em relação ao cuidado é essa: nós vamos ter recursos para isso? Isso foi uma promessa de campanha do presidente Lula, de investimento em atendimento domiciliar. Isso vai ser feito por meio do SUS ou não?

Além disso, tem a questão de gênero. A mulher precisa ser reconhecida e libertada dessa exploração do cuidado. É uma questão mundial, histórica, mas se agrava nas sociedades que tiveram escravidão. Como isso vai ser feito, no cuidado doméstico, do casal, do marido, da mulher, com a criança? É toda uma questão histórica e cultural, que fica mais aguda com a transição demográfica, onde aparece o cuidado de longa duração.

Há ainda a pessoa com deficiência, que a violência urbana está fazendo crescer, com aumento do número de cadeirantes e de pessoas com várias deficiências provocadas pela violência urbana, enquanto o cuidado com as crianças tende a ter uma demanda decrescente porque a taxa de fecundidade está em queda.

Dentro de uma visão otimista, como tal política poderia incidir na saúde coletiva?

Eu acho que a saúde coletiva é extremamente relevante para o bem-estar das pessoas idosas e impacta toda a família, principalmente na saúde mental e na questão financeira, possibilitando que se dirija o orçamento familiar para outras necessidades, inclusive a educação, porque ao cuidar de uma pessoa a família assume todos esses gastos, o que incide, em diferentes medidas, tanto nas famílias que podem pagar plano de saúde como nas que dependem do SUS.

Tem ainda impacto na saúde mental, nos relacionamentos de casais, entre irmãos, porque aparece a discussão sobre quem deve cuidar. Assim, eu diria que, em termos de saúde coletiva, pode ter um ganho imenso, porque muitas pessoas estão se privando das suas realizações pessoais, de sonhos. Em termos sociais e econômicos, o cuidado hoje é apontado por estudos como um investimento em infraestrutura. Investimento em infraestrutura sempre é pensado como o transporte público, a ponte, a estrada, a telecomunicação, a energia etc. E o cuidado é colocado hoje em estudos bastante considerados por vários economistas como um investimento também em infraestrutura.

Mas, infelizmente, o Brasil ainda não vê o cuidado como uma questão estratégica. A tendência na maioria dos gestores públicos é delegar o cuidado a uma assistência social, “aqueles velhinhos, coitadinhos que precisam de cuidado”. E poucos gestores estão cientes da transformação societal que nós estamos passando no mundo em relação ao cuidado.

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