O assassinato do CEO e o brutal negócio da saúde

Crime cometido contra presidente do UnitedHealth Group expõe as entranhas de um sistema essencialmente financeirizado, que trata cidadãos dos EUA como mercadoria. Brasil precisa distanciar-se desse modelo, e desenvolver uma indústria voltada ao interesse público

Créditos: Victoria Sunday/The Daily Beast/Getty Images
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Título original: Deny, defend, depose: o negócio da saúde e a saúde do negócio

Por Reinaldo Guimarães, autor convidado

“No UnitedHealth Group, nossa missão é ajudar as pessoas a terem vidas mais saudáveis e ajudar a fazer com que o sistema de saúde funcione melhor para todos”
(Missão da empresa, em tradução livre)

As palavras arranhadas nos cartuchos das balas que mataram Brian Thompson, presidente-executivo (CEO) de um dos braços da empresa UnitedHealth Group, em 4 de dezembro de 2024 em Nova York, são o oposto exato do enunciado na epígrafe acima. Deny, Defend, Depose, na verdade, significam: negue o atendimento da demanda para cobertura de serviço, defenda-se no tribunal se o demandante o acionar e derrube o demandante contando com a morosidade da justiça, quando ele já pode ter morrido.

Dentre as inúmeras seguradoras de saúde nos EUA, todas elas apresentando taxas de recusas a solicitações de reembolso de despesas muito significativas, o UnitedHealth Group detém a maior delas, chegando a 32% das demandas em 2024. Em outras palavras, quase uma em cada três demandas foram recusadas (1). Mais ainda, a taxa de recusas cresceu de 10,9% em 2019 para 22,7% em 2022 (durante a pandemia!), havendo ainda a suspeita de uso de algoritmos para tomadas de decisão sobre demandas (2).

Dentre os grandes países ricos do Norte Global, os Estados Unidos são o único que não possui um sistema de saúde de corte público e universal. Seus gastos nacionais, que incluem despesas públicas e privadas com cuidados de saúde, alcançaram 17,6% do produto interno bruto em 2023 e devem chegar a quase 20% em 2032 (3). No conjunto dos países da OCDE, a média está em torno de 10% do PIB.

Em contrapartida, o impacto desse sistema sobre o estado de saúde de sua população não corresponde ao tamanho daquelas despesas. Tomando o indicador mais básico – a expectativa de vida ao nascer – em 2023 ela estava abaixo da média desses países mais ricos. Levando em conta todos os países, segundo os dados das Nações Unidas, os EUA ocupam a 55ª posição, com 79,3 anos no agregado entre homens e mulheres. Entre os países europeus, a média da expectativa é de 81,5 anos (4).

A organização das atividades de proteção à saúde humana nos EUA, o seu ‘complexo econômico-industrial da saúde’, com a exceção de alguns órgãos no campo da saúde pública como o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), gira em torno a uma lógica integralmente privada e financeirizada, cuja orientação estratégica (e muitas vezes operacional) é dominada por grandes fundos de investimentos, numa estrutura em que cada fundo é acionista institucional de mais de uma empresa e cada empresa tem como acionistas institucionais esses mesmos fundos.

Recentemente, aqui no Outra Saúde, assinei um texto sobre a financeirização nas empresas da Big Pharma norte-americana, onde são elencados os principais fundos de investimentos envolvidos (5). Naquele texto, sugeri o termo rizoma a esse modelo de organização empresarial financeirizada no qual concorrentes em um mesmo segmento industrial e comercial sejam coproprietários das empresas que supostamente não deveriam sê-lo em um ambiente de concorrência saudável. Essa copropriedade ocorre em instâncias superiores às direções executivas das empresas, exatamente nos conselhos de administração dos fundos de investimento que são seus acionistas institucionais. São estes que capturam fatias crescentes de dividendos oriundos da dinâmica industrial e comercial das farmacêuticas, crescentes em ritmo maior do que os investimentos em pesquisa, desenvolvimento, produção e distribuição de medicamentos. Essa é a principal razão do lançamento de produtos com preços insustentáveis para pacientes e sistemas de saúde, como observado atualmente.

A UnitedHealth Group Incorporated, criada em 1974, é uma empresa multinacional de seguros e prestação de serviços e produtos de saúde de matriz norte-americana. Vende seguros sob a marca UnitedHealthcare e serviços de saúde sob a marca Optum. Sua operação se orienta integralmente pela dinâmica do mercado, em oposição ao modelo dos sistemas universais de saúde. A empresa está classificada em 8º lugar na Fortune Global 500 de 2024. O UnitedHealth Group tinha um valor de mercado de US$ 474,3 bilhões em 15 de julho de 2024. Seu braço de seguros de saúde a coloca como a maior companhia do mundo nesse setor.

A expansão do grupo desde 1994, quando adquiriu o formato empresarial que ostenta hoje, foi notável. Nos 30 anos seguintes envolveu-se em aquisições (e algumas poucas fusões) de 26 empresas do campo de seguros de saúde e de vendas de produtos no varejo. Durante esse período enfrentou inúmeras batalhas judiciais com clientes, concorrentes e com órgãos antitruste do governo dos EUA. É a maior lobista desse setor junto ao Congresso norte americano (6). Esse processo de consolidação oligopolista não é estranho aos brasileiros, seja no aspecto de vincular o negócio de seguros ao negócio da prestação de serviços, seja no aspecto da oligopolização. Entre nós, a UnitedHealth Group comprou a seguradora AMIL e a prestadora de serviços Américas Serviços Médicos. Ambas foram vendidas em 2023 a um grupo brasileiro.

O setor de seguros e de prestação de serviços de saúde nos EUA é cada vez mais verticalizado e apresenta exatamente o mesmo padrão de financeirização da Big Pharma. O mecanismo é o mesmo: o deslocamento de receitas da missão precípua das empresas para os grandes acionistas institucionais que as comandam em última instância, principalmente mediante recompra de ações e pagamento de dividendos (7). Posto em outros termos, resulta que um declarado negócio sobre a saúde das pessoas é governado essencialmente pela saúde financeira desse negócio. No caso dos medicamentos, resulta em preços insustentáveis; no caso das seguradoras e prestadoras, em negativa de demandas por cobertura de despesas. Quanto a essa identidade no modelo de negócios, há ainda uma evidência curiosa. Desde 2021, o presidente-executivo (CEO) da UnitedHealth Group é um cidadão britânico detentor de um título de ‘Sir’, cujo nome é Andrew Witty. A curiosidade é que entre 2008 e 2017 ele foi o CEO da então principal farmacêutica britânica – a GSK. Sobreviverá no cargo após o episódio de Manhattan?

Com variações muito pequenas na quantidade de ações de cada fundo de investimento, são rigorosamente os mesmos que dominam esse complexo econômico-industrial nos dois setores. No caso da Big Pharma a Black Rock, Vanguard, State Street e Fidelity estão entre os principais acionistas institucionais. E esses mesmos fundos estão entre os cinco maiores acionistas da United HealthGroup (8). Suas principais seguradoras concorrentes (Elevance Health, CVS Health) têm os mesmos investidores institucionais, com destaque para a Black Rock, State Street e Vanguard, o que completa o quadro do rizoma financeiro. Dentre as grandes seguradoras de saúde nos EUA, há apenas uma exceção, que é a Kaiser Foundation, cujos investidores são os médicos a ela associados, a quem são conferidas ações da seguradora (uma espécie de cooperativa médica).

Esses fundos de investimento que funcionam como um rizoma empresarial estão espalhados na economia norte-americana, muito além do complexo econômico-industrial da saúde. E uma noção da extensão e, por conseguinte, do poder dos mesmos ficam claros quando se estima que a BlackRock, o maior deles, em 2017, era acionista institucional de 20% da totalidade das empresas que negociavam publicamente suas ações nos Estados Unidos e quando a ele eram somados os outros dois fundos aqui mencionados, o Street State e o Vanguard, essa participação chegava a 40% do total de empresas (9).

Boa parte da bibliografia que analisa esse processo de financeirização, não apenas no campo da saúde, debate quase exclusivamente o seu impacto dentro e entre as empresas financeirizadas. Em outros termos, analisam os benefícios e malefícios que a verticalização, a oligopolização e o rizoma financeiro provocam nas mesmas. Entretanto, no caso do complexo econômico-industrial da saúde – prestação de serviços e indústria farmacêutica – nossas considerações devem ir muito além das análises econométricas nas empresas das quais os fundos são acionistas, posto que aqui se trata de um complexo cuja missão declarada é a proteção à saúde das pessoas.

No meu ponto de vista, isso deve agregar uma nova e muito importante vertente analítica que diz respeito ao impacto que essa financeirização provoca nos humanos, os sujeitos finais de suas declaradas missões: quem vai morrer ou sobreviver em função de suas atuações. Mais além de seus impactos econômicos, uma análise do complexo econômico-industrial da saúde deve incluir, necessariamente, uma essencial dimensão ética.

Quanto ao crime que abalou os EUA, entendo que, em princípio, assassinatos são sempre inaceitáveis, sejam os que ocorrem sob a proteção de leis, sejam os demais. Alguns desses últimos, no entanto, fazem a mente do observador procurar saber os porquês, mesmo que os considerem inaceitáveis e, no caso do assassinato em Manhattan, inconsequentes. Encerro este texto citando Jorge Luis Borges, que no final de um notável conto policial narra as circunstâncias e o desfecho de um crime — a vingança de uma filha sobre o responsável pela morte de seu pai. “A história era incrível, com efeito, mas se impôs a todos, pois substancialmente era certa. Verdadeiro era o tom, … verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também o ultraje que sofrera…” (10).


Referências:

  1. https://www.forbes.com/sites/amyfeldman/2024/12/05/unitedhealthcare-denies-more-claims-than-other-insurers—angering-patients-and-health-systems
  1. https://www.foxbusiness.com/markets/unitedhealthcare-accused-relying-ai-algorithms-deny-medicare-advantage-claims
  1. https://www.pgpf.org/article/healthcare-spending-will-be-one-fifth-of-the-economy-within-a-decade/
  1. https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_life_expectancy
  1. Guimarães, R. – A Big Pharma: Uma Invenção Norte Americana. Outra Saúde. Publicado 22/11/2024 às 12:10 – Atualizado 23/12/2024. https://outraspalavras.net/outrasaude/a-big-pharma-uma-invencao-norte-americana/
  1. https://en.wikipedia.org/wiki/UnitedHealth_Group
  1. https://jacobin.com/2024/12/health-insurance-unitedhealth-shareholders-buybacks
  1. https://www.marketscreener.com/quote/stock/UNITEDHEALTH-GROUP-INC-14750/company/
  1. IESE Business School of Navarra. Why the presence of common shareholders in rival companies looms as a threat? IESE INSIGHT. June 22, 2018. https://www.iese.edu/insight/articles/common-shareholders-rival-companies-threat/
  2. Borges, J.L. (Tradução F.J.Cardoso)– Emma Zunz, in O Aleph, Editora Globo, Rio de Janeiro, 5ª Edição, 1985, pp 45-50.
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