A lente capta o que o coração sente
Em livro de fotografias, autora periférica aborda o caos urbano e os gritantes contrastes entre o centro e quebradas. Registra a cena cultural com o olhar de quem é “parte do rolê”. E, “tradutora de agonias coletivas”, desvela dramas e lutas dos despossuídos da cidade
Publicado 13/12/2024 às 13:14
Compartilho neste texto a experiência visual que tive ao fruir o livro de fotografias O que guardo no olhar, da escritora e fotógrafa Sonia Bischain. A obra foi lançada no último sábado, dia 6 de dezembro no Sarau da Brasa, na Brasilândia, periferia da Zona Norte de São Paulo, território da autora. Para publicar o livro, Sonia criou seu próprio selo editorial: SB Edições. Ela também é responsável pelo projeto gráfico, diagramação e capa. Mas, a escrita está presente no livro. Os capítulos são intercalados com textos de Michel Yakini Iman e poemas da autora. O prefácio foi assinado por mim.
Sonia Bischain fotografa como escreve, ou escreve como fotografa. As duas possibilidades são válidas. Uma é decorrente da outra e se retroalimentam. A maioria das fotos de O que guardo no olhar, o segundo livro dedicado à fotografia1, é do período em que a autora começou a publicar seus textos, ou seja, nos últimos 15 anos. Em 2009 ela lançou Rua de Trás, uma obra de poesia. De lá para cá, foram sete livros de texto; um a cada dois anos. Fora a participação em dezenas de antologias publicadas no Brasil e no exterior.
Nessa prodigiosa bibliografia, ela desfila com habilidade em todos os gêneros da literatura: romance, poesia, contos e crônicas. E joga bem em todas as posições essa talentosa escritora que tem obsessão pelo registro do seu tempo. Ela nos conduz por meio de sua literatura para seu universo de interesse, revelado pela sensível observação da realidade que lhe cerca. O mesmo efeito ela consegue ao nos confrontar com suas imagens materializadas em mais de 200 fotografias aqui publicadas.
A periferia resiste!
O conjunto das fotos do livro foi dividido em quatro capítulos e evidencia a trajetória da autora. No primeiro, ela mapeia o sentimento de pertencimento por seu território (Brasilândia) e sua cidade (São Paulo); no segundo, expressa sua visão de mundo ao registrar o mundo que não é seu. Já no terceiro, ela muda o diapasão fotografando os fazedores de cultura nas periferias, campo de atuação no qual ela estabelece seu pacto com a irmandade. No quarto e derradeiro, ela assume um radical posicionamento político em favor dos que sofrem, registrando as lutas de um povo que não cessa de lutar. E, em meio às imagens, ela captura textos que legendam as fotografias.
No capitulo Meu Lugar, Sonia produz imagens da cidade que revelam o caos urbano e seus contrastes: centro e periferia; opulência e pobreza; multidão e solidão; construção e ruína. Mas capta também o improvável: a delicadeza da estátua da mãe preta, afrescos de prédios pré-modernistas no Centro; o emaranhado de fios nas periferias e os fios da ponte estaiada; a serra que impõe limite a expansão da cidade. Na paisagem urbana, ela descobre as pessoas: meninos jogando bola; trabalhadores que descansam na calçada; um homem velho sentado numa escadaria sonhando acordado; outro homem não tão velho que amansa o cavalo arredio na Estrada do Sabão na velha Brasilândia. E no tapume da avenida o pixo sintetiza: “ A periferia resiste!”.
Diferenças e semelhanças
Pé na estrada é o nome do capítulo em que Sonia visita outros territórios. E são muitos. Contei mais de vinte que cobrem todas as regiões do Brasil com especial destaque para o Norte e Nordeste, interior de São Paulo e sul de Minas. Ela percorre os países andinos, especialmente Peru e Chile. Passa pela Argentina, Paraguai e Cuba. Há também registros na Irlanda e França. A fotógrafa faz um mosaico com as fotos pareando Europa e América Latina, explorando contrastes de paisagens e contextos sociais. Consegue fazer um álbum de viagem muito eclético onde, talvez, a narrativa que ela constrói seja mesmo as analogias que se complementam ou que se opõe entre si.
Nesse sentido me chamou muito a atenção o paralelo que ela faz da alva concha da Câmara dos Deputados em Brasília, registrada numa foto que está na mesma página de outra que mostra uma vasilha igualmente branca. A singela louça está aberta para alto sobre um tamborete ao lado de um balde em cuja alça há uma corda denotando se tratar de uma peça para retirar água de poço. Desse modo, temos uma imagem de pauperismo que estabelece um acentuado contraste com a suntuosidade do palácio que abriga um dos três poderes da República, justo aquele que deveria cuidar dos anseios do povo, razão pela qual sua concha está voltada para cima. Sonia aqui não fez literatura com as imagens, fez um ensaio de sociologia.
Sem poesia não existe cidade
A terceira parte do livro traz registros da cena cultural periférica da qual Sonia é uma dedicada protagonista. Em Nossa Arte, o olhar da autora não é distante; é parte do rolê. Ela procura contemplar todas as linguagens: circo, música, dança, cortejos, capoeira, blocos de carnaval. Mas é a literatura seu foco principal. Nesse campo ela destaca os saraus. Dentre os quais, o da Brasa, na Brasilândia do qual faz parte desde o início e o Elo da Corrente que é co-irmão na vizinha Pirituba. Mas os clássicos Sarau da Cooperifa e do Binho, ambos na Zona Sul, têm seu lugar nas imagens da poeta. Três grandes fazedores de cultura falecidos recentemente são lembrados por ela: Marco Pezão, José Soró e Tula Pilar. Com esses registros, Sonia percorre a cidade pelas bordas e mais uma vez capta a síntese numa foto na qual está grafado na parede de uma casa popular: “sem poesia não existe cidade”.
Para não perder o futuro foi o nome que a autora deu para o conjunto de fotos no qual ela documenta a luta do povo periférico, entre os quais os indígenas, em imagens de protesto. São inúmeras as causas que foram defendidas nas ruas: combate à violência, racismo, a fome, preço da passagem de ônibus, homofobia, contra a reforma da Previdência, em defesa das terras indígenas do Jaraguá. Em meio a tantas faixas, cartazes, estampas de camiseta, uma sintetiza as imagens do capítulo quatro: “penso, logo incomodo”.
A escritora Helena Silvestre disse no prefácio de um dos livros de Sônia Bischaim que ela é “tradutora de agonias coletivas”. Muitas das fotos deste livro corroboram tal percepção. Mas Sonia também traduz a esperança coletiva e particular. O indivíduo e os sonhos que carrega são captados pela lente dessa sensível fotógrafa-escritora, assim como as lutas e conquistas do povo. Os bichos também têm um lugar especial nos registros dela. No livro há pássaros, macacos, cachorros e cavalos. E isso me leva à conclusão: Sonia guarda no olhar o que carrega no coração.
Nota:
1 O primeiro foi Cultura daqui, olhares da Brasa, de 2015 em coautoria com Avelino Regicida e Enver Padovezzi
Sonia vê com os olhos de poeta e a lente da sua máquina capta seu olhar com fidelidade.