Apesar dos escombros, a poesia de Gaza
Um documento literário do genocídio: quatro jovens poetas palestinas tecem testemunhos sobre o terror cotidiano. Uma tenta contar a um tolo “onde o deus se meteu”. Outra, quer saber se é “possível comprar uma língua/ e um coração tranquilo?”
Publicado 22/11/2024 às 18:15 - Atualizado 25/11/2024 às 12:34
Curadoria, seleção e introdução: Tercio Redondo
Em 2021, saiu por uma editora de Beirute uma coleção de poemas compostos em Gaza por diversas autoras e autores, em sua maioria jovens. Michel Sleiman e Safa Jubran, ambos professores do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo, organizaram a sua edição brasileira, tendo coordenado o trabalho de um grupo igualmente jovem de tradutoras e tradutores. O livro daí resultante, Gaza: terra da poesia, foi publicado pela editora Tabla, em 2022. Reproduzimos aqui quatro desses poemas, todos de autoria feminina, eloquente testemunho da catástrofe que se abate sobre o povo palestino, documento literário do genocídio iniciado muito antes do terrível 7 de outubro do ano passado.
Os poemas são precedidos por uma breve nota biográfica das autoras, informação também constante dessa edição.
Muna Almassdar
(Escritora e poeta, bacharel em Literatura de Língua Inglesa pela Universidade de Alaqsa, na cidade de Gaza. Trabalha como tradutora e escreve artigos em árabe e inglês. Publicou as coletâneas poéticas Devolva meus passos e Porque eu temo a memória e uma coletânea de textos em prosa intitulada Horário. Muna diz que não se cansa de pesquisar sobre o sentido e a verdade.)
Joguinho
Quem apaga a guerra dentro de mim
e me empresta um pouco de esquecimento?
Quem redefine minha noite
e a dos rebeldes mais eminentes embaixo dos destroços?
Quem devolve nossos passos às calçadas
e devolve a elas seus nomes?
Há alguém que se atreva a beliscar minha bochecha
diante da falta de sono e da fúria do bombardeio?
Alguém aqui corajoso o bastante
para amaldiçoar a guerra escondida em nosso pão?
Alguma janela onde eu reúna as nuvens do fim do dia
e impeça a noite de dar os primeiros passos?
É possível comprar uma língua
e um coração tranquilo?
Quem sabe assim eu possa falar da carnificina
ou apagar, talvez,
o fogo da guerra dentro de mim.
Tradução de Alexandre Facuri Chareti
Fatima Ahmad
(Fatima, hoje uma senhora palestina da Faixa de Gaza, escapou várias vezes da morte. A primeira vez em que se salvou foi quando conseguiu fechar todas as suas portas para as sujeiras do mundo. A segunda foi quando o projétil atingiu suas costas e ali ficou alojado, enquanto outro arrancou um olho de seu filho e destruiu a casa em que moravam durante o ataque israelense ao campo de refugiados de Bureij, no final de 2008. [Este poema foi escrito] por Fatima logo após esses episódios […].)
O calor da lua
Muitos se afogam nas profundezas do pensamento e exageram
a ponto de pularem de todas as janelas da razão
e se estabelecerem no limite do irracional
onde a vida assume outro rosto que alguns supõem ser
total loucura! E completamente do lado oposto
está a calma… a contemplação, a aproximação de si,
longe das perseguições da modernidade.
Saia de seu mundo e imagine
imagine… uma paisagem com mar,
Asas de gaivota seguindo a onda…
procure um espaço no qual você toca a linha do horizonte,
um quadro onde a lua esconde a timidez com um véu fino
tecido por mãos angelicais e sonhadoras que dizem:
dê-me um coração caloroso e tome uma mão calorosa.
Experimente quebrar seu celular tentando encontrar o orgulho do amor,
Experimente gritar com o mesmo ímpeto para sentir se ainda é humano,
experimente cantar para a terra e deixar o céu para o céu,
lembre sempre que você viveria numa terra que aperta
não fossem a paixão, a guerra e a loucura,
não fosse Gaza.
***
Aqui as ideias nascem livres em torno das flores de romã
e nas celas a ideia é enterrada viva.
Aqui em todo canto há um carcereiro
que come os ossos dos jovens e suas vidas
e até as tranças de suas amadas!
Que valor tem a palavra…
se tudo aqui está debaixo dos sapatos do algoz?
Levante-se, Handala,
não vire as costas, não cruze as mãos atrás,
seja nosso rosto novo.
***
Com seus dedos ensanguentados, toque suas últimas melodias e nos leve
até o começo,
atravesse seu olhar seus olhos covardes e faça tremer neles as almas vacilantes.
Você é a única verdade entre as paredes desgastadas…
Eles são ilusão do tempo, que se infiltra escondida nas rachaduras da terra,
linhas ilusórias que se dissolverão e desaparecerão com a espuma do mar…
Mas você permanecerá,
permanecerá entre nós como terra e chuva para as ervas do campo,
como gaivota para o mar, como vela para os barcos.
Tradução de Maria Carolina Gonçalves
Hiba Sabri
(Poeta nascida na cidade de Dair Albalah. É bacharel em análises médicas pela Universidade de Alaqsa, em Gaza. Colabora com instituições culturais e participa da cena cultural emergente.)
Várias vidas na minha cabeça
Na vida anterior,
foi uma estátua magnífica
de um deus que desapareceu de súbito
sem avisar ninguém.
Disseram: tem de estar aqui em algum lugar.
Procuraram muito por ele,
mas ninguém o encontrou
e até hoje o procuram
Na próxima vida,
serei uma boa madrinha
para um poeta que não sabe como esconder as noites frias no bolso,
que desde as cinco da manhã trabalha moldando cimento
e forrando as rachaduras das mãos –
e pão quentinho
para as bocas que deixou para trás.
Muitas vezes
ele encontra a poesia enquanto chora
e se embriaga até o fim
e muitas vezes ele pensa:
O que faz um algoz agora?!
Entre a minha vida anterior e a próxima,
eu me sento aqui,
mulher em plena consciência,
apoiada em seus vinte anos,
que conhece o significado de ser deixada sozinha no meio da noite
sem saber como escrever textos longos –
ela conta ao psicólogo sempre.
Como era penosa a vida da estátua – permanecer calada o tempo todo –
e como será terrível a vida da madrinha,
tentando contar a um poeta tolo
“onde o deus se meteu”.
Mas no fim o psicólogo lhe prescreve
alguns calmantes e que pare de ler livros.
Tradução de Maria Carolina Gonçalves
Rawan Hussain
(Meu nascimento foi uma mera e longa espera por um dia em que eu me perguntaria por mim mesma sem obter uma resposta, na esperança de que um dia me ame como o amei. Sou Rawan Uthman Hussain, 24 anos, formada em Letras, com especialização em Literaturas de Língua Inglesa. Nasci em Rafah, cidade quente no sul da Faixa de Gaza)
Não fossem as máscaras das palavras
Temerosas,
as palavras saem de minha boca,
ocultando um significado retraído,
e suspendem o ser atrás do entendimento presumido;
violam o espírito de meus pensamentos,
turvam a transparência do cenário
e aproveitam a derrota do significado.
Mas as palavras enferrujadas permanecem soltas,
livres, covardes,
trêmulas, mentirosas.
E seu eu tivesse uma língua,
mastigaria a verdade
e a diria diante da timidez confusa.
Tomando com as mãos o que esperei
jogando para dentro de mim as criaturas que seriam,
não fossem as máscaras das palavras gastas;
eu sentada diante de minhas letras,
atônita,
muda.
Tradução de Maria Carolina Gonçalves
Sem comentários…..
Somente indignação….
Por tal impotência dentro das potentes e belicosas mentes capitalistas…
Fracas, infortúnias…
Alguém avisa para os homens que matam inocentes que eles morreram logo após a destruição….
Melancólico de viver, sem fazer nada, pra mudar o rumo dessas história infame…
Poemas de alta sensibilidade de quem vive impactado com pelos horrores das guerras mas inspiradas na Esperança de um novo amanhã.
Oremos pela PAZ 🕊️ no OM.