VAT: Quem é contra a redução da jornada?

Não são pequenos negócios, sempre em risco de quebra. Mas grandes cadeias de supermercados e farmácias, desejosas de mais lucros para os acionistas. Para vencê-las, é preciso um programa que empolgue e mobilize os trabalhadores. Apresentamos um esboço

Foto: Authenticlog/Reprodução
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Esta é a segunda e última parte do texto VAT: Uma centelha no mundo do trabalho, publicado por Outras Palavras.

Os pequenos negócios

A realidade dos pequenos empreendimentos no país é penosa independentemente das possibilidades de jornada de trabalho. De acordo com levantamento do Sebrae a partir dos dados da Receita Federal do Brasil entre 2018 e 2021, 21,6% das microempresas encerraram seus negócios após cinco anos de atividade, sendo essa taxa de mortalidade ligeiramente menor para as empresas de pequeno porte (17%)1. Tais dados estão considerando somente os empreendimentos formalizados. Segundo o Sebrae, aponta-se como justificativa o pouco preparo pessoal, dado que é pequeno o número de pessoas que passaram por algum tipo de capacitação; o planejamento deficiente do negócio, dado que 17% dizem não ter feito nenhum planejamento e 59% dizem ter feito para no máximo 6 meses; assim como uma gestão deficiente. Esses fatores se associam à baixa produtividade que caracteriza a dinâmica dos pequenos negócios no país, que operam com reduzida intensidade de capital (tecnologia, máquinas e equipamentos). Alterações nas possibilidades de jornada de trabalho dos empregados não seriam determinantes para modificar a realidade dos pequenos negócios.

Caso um negócio dependa integralmente da jornada 6×1 para se manter lucrativo, ou seja, necessite superexplorar seus trabalhadores para sobreviver, não é exatamente um negócio virtuoso. Cabe pensarmos se desejamos uma sociedade que ratifique nos termos da lei os negócios que impõem jornadas exaustivas aos seus trabalhadores para se manter operante. Mas esse não é o caso predominante. Em geral, ou o pequeno negócio já está na informalidade – isto é, não tem a totalidade de seus empregados com carteira assinada –, ou ele conseguiria reorganizar sua força de trabalho em torno de outros regimes de jornada. Assim, para os negócios que operam na informalidade (com escala 6×1, 7×0, sem direitos trabalhistas etc.), pouco mudaria com o fim da jornada legal 6×1 – eles continuariam superexplorando sua força de trabalho à revelia da lei.

Modificar a jornada de trabalho não é solução econômica para os problemas dos pequenos negócios, mas um avanço em torno de condições mais humanas de trabalho e de possibilidade de uma sociedade mais organizada, além de poder abrir novas oportunidades. Para enfrentar o problema econômico, o fundamental é construirmos um projeto político de desenvolvimento socioeconômico que ofereça melhores condições para aqueles que desejam empreender. Caberia, portanto, elaborar e aprofundar as políticas de democratização do acesso ao crédito, suporte e capacitação para a gestão de negócios, ampliação de programas de compras públicas no âmbito das prefeituras e, sobretudo, um projeto mais amplo de desenvolvimento econômico que coloque a estrutura produtiva do país em melhores condições de geração de postos de trabalho de qualidade, o que por sua vez reverberaria positivamente sobre os pequenos negócios. Os pequenos negócios dependem do nível de renda da sociedade, ou seja, de uma dinâmica econômica com crescimento, visto que salário é renda e esta se converte em consumo.

Médias e grandes empresas: o capital preocupado

Em momentos de questionamentos da exploração, os especialistas e representantes das grandes empresas buscam justificar a manutenção do status quo sob um argumento de perda de competitividade e uma posição oportunista de defesa dos pequenos negócios. Esse fato chama a atenção, pois é sempre em torno da defesa dos “vulneráveis” (pequenos negócios, trabalhadores e consumidores pobres, etc.) que mobilizam os principais discursos do grande capital. No momento da competição econômica de mercado, os grandes negócios não se importam em quebrar os menores, mas quando os direitos trabalhistas são postos na mesa o que ocorre é uma manipulação oportunística na defesa dos mais vulneráveis.

Os grandes negócios operam com escala elevada, possuem estrutura de custos enxuta, têm poder de negociação com fornecedores, gozam de amplo acesso ao crédito (a despeito da elevadíssima taxa de juros no país), departamentos de contabilidade, marketing, tributos etc. que superam sobremaneira qualquer capacidade de competição dos pequenos negócios. Nos bairros, os pequenos mercadinhos, mercearias, frutarias, farmácias etc. não conseguem competir no preço com as grandes redes. Os que sobrevivem o fazem a duras penas, amparados por uma combinação de elementos que vão desde a clientela fiel ou o serviço diferenciado, até a sonegação de impostos e o não cumprimento das leis trabalhistas. Portanto, o fim da escala 6×1 não é o problema e a dinâmica da concorrência permaneceria a mesma. Melhorar a condição dos pequenos negócios está em outra esfera que não a da redução de direitos trabalhistas, como enfatizamos anteriormente.

Quem está verdadeiramente preocupado com a mudança são as grandes empresas, que operam na legalidade e teriam de se adequar imediatamente aos novos parâmetros de definição da jornada de trabalho. Para essas, todo avanço na legislação trabalhista que possa implicar em redução da lucratividade e de poder sobre a gestão da força de trabalho é um problema.

Apenas três grandes grupos de redes de farmácias detêm 40% do mercado no Brasil2: Grupo RD (Raia e Drogasil), Grupo Pague Menos (Pague Menos e Extrafarma) e Grupo DPSP (Pacheco e São Paulo). Em 2023, o faturamento do setor cresceu 13,5%, atingindo R$ 91,3 bilhões3, liderados pelas grandes redes. Resta pouca dúvida sobre a capacidade financeira dos grandes grupos em absorverem eventuais elevações dos custos com o trabalho decorrentes do fim da exploração ao nível percebido na jornada com escala 6×1. Não obstante, embora o lucro das grandes redes de farmácia possa absorver tais custos, a disputa com o capital nunca é fácil – somente com muita pressão e mobilização social este avanço poderá ser atingido.

O caso das grandes redes de supermercado não é muito diferente. De acordo com a Associação Brasileira de Supermercados, os quinze maiores supermercados faturaram mais de 348 bilhões de reais em 20234. A liderança do ranking é do Carrefour, que faturou R$115,4 bilhões (33% do total), seguido pelo Assaí Atacadista (R$72,7 bilhões) e Mateus Supermercados (R$30,2 bilhões). Juntos, as três redes foram responsáveis por 62,6% do faturamento das grandes redes, o que revela uma certa concentração de mercado no segmento econômico. Novamente, pergunta-se: o fim da escala 6×1 é inviável para esses grupos?

E o trabalhador?

Como visto, não há razões para crer que, por si só, o fim da jornada 6×1 reduziria os empregos, ao contrário, abre-se espaço para eventuais novas contratações que compensam o tempo de trabalho liberado em determinados negócios em que a conta da lucratividade faça sentido econômico e que tem funcionamento nos finais de semana.

Ora, no âmbito individual, caso a escala 6×1 seja abolida, pode haver uma parcela dos trabalhadores cuja renda variável sofreria uma eventual redução – o caso dos trabalhos que incluem comissões por vendas ou recebimento de gorjetas. É verdade que parte dos trabalhadores nessa situação buscaria compensar a redução do rendimento em outros postos de trabalho, sobretudo realizando bicos ou freelancers. Nesse caso, seu rendimento poderia ser preservado ou até mesmo elevado, a depender do trabalho eventual que o trabalhador encontrar.

No entanto, para outra parte dos trabalhadores migrar para uma jornada convencional 5×2 ou até 4×3 pode ser um alívio no sentido de devolver algum controle sobre seu próprio tempo de vida. As pessoas estão exaustas e não querem escolher entre trabalhar muito e não viver, ou trabalhar pouco e não receber o suficiente para gozar de uma vida digna. Elas querem exercer atividades que façam sentido para si e para a comunidade, com alguma autonomia sobre seu tempo, com remunerações compatíveis que lhes permitam uma vida que valha a pena viver. Certamente a existência da jornada 6×1 não contribui em nada nessa direção.

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Em relação à dinâmica prática do consumo, a redução na jornada de trabalho não significa que bares, farmácias e supermercados terão necessariamente seu horário de funcionamento diminuído. E, caso isso ocorra pontualmente em determinados segmentos e localidades, observamos que diversos países operam com horários muito mais restritos de funcionamento de mercados e farmácias aos finais de semana, por exemplo, quando comparados com o Brasil. As pessoas deixam de consumir por isso? Não, simplesmente assumem essa condição como um dado – inclusive muito saudável para a estruturação dos tempos de trabalho e de não trabalho da sociedade – e se organizam da mesma forma que o fazem para levar os filhos de segunda à sexta na escola, frequentar cultos e igrejas aos sábados e domingos, entre outras tantas definições do tempo da vida social que organizam a vida dos indivíduos e da coletividade.

Insistimos que não se trata somente da questão econômica. Exagerando no argumento, o que seria mais lucrativo para os negócios do que reduzir a jornada 6×1? Aumentar para 7×0! Então por que isso não ocorre, já que seria mais lucrativo? Porque há limites físicos (capacidade do ser humano aguentar) e éticos (o quanto a sociedade tolera certos parâmetros de exploração). Acontece que a escala 6×1 está adoecendo os trabalhadores de forma mais acelerada que a jornada convencional 5×2, inclusive contribuindo para o aumento. O limite físico já está sendo rompido, porém os trabalhadores adoecidos pelo excesso de trabalho são, via de regra, rapidamente descartados e substituídos por outros, e assim a roda continua a girar.

O que tem sustentado até então a existência da escala 6×1 é o silenciamento da pauta e do sofrimento associado, amparado pela força do empresariado do comércio e de algumas atividades de serviço, que impuseram esse modelo de jornada em seu próprio proveito. Agora estamos assistindo a uma onda de contestação social da 6×1 – sua razoabilidade está sendo questionada pela sociedade. O resultado pode ser um grande marco para a renovação da agenda da classe trabalhadora em torno de pautas poderosas como a da redução da jornada de trabalho.

A necessidade de uma agenda a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras

As mobilizações pelo fim da jornada 6×1 podem significar o início de um processo que aprofunde a realidade complexa e penosa do mundo do trabalho em que nos encontramos. Não só aprofundar como apresentar mudanças significativas na realidade de milhões de trabalhadores e trabalhadoras, apresentando uma agenda do trabalho que redefina as condições laborais, que abarque todos os trabalhadores sob o leque dos direitos trabalhistas e que ressignifique o que é trabalhar. Por isso, a luta pela redução da jornada 6×1 é só um dos desafios que estão colocados, fazendo-se necessário também considerar ao menos dez pontos essenciais para a construção de uma agenda a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras:

  • primeiro, que o trabalho possui centralidade na vida das pessoas, ainda que ele tenha passado por reconfigurações e ressignificações profundas;
  • segundo, que as perspectivas neoliberais para resolver o problema do emprego e do trabalho fracassaram. A diminuição e retirada dos direitos do trabalho, a exemplo da Reforma Trabalhista de 2017, e o incentivo ao empreendedorismo comprovadamente acentuaram a precariedade do trabalho;
  • terceiro, que o crescimento econômico é necessário para geração de empregos. Contudo ele, por si só, não resolve o problema do trabalho;
  • quarto, que os postos de trabalho sejam repensados, considerando sua articulação e existência a partir de demandas reais e concretas para atender as necessidades sociais e ambientais contemporâneas;
  • quinto, que o Estado também seja fomentador e garantidor da geração de empregos, dado o problema estrutural tanto da falta de trabalho quanto da falta de trabalhos dignos;
  • sexto, que a luta pelos direitos trabalhistas precisa vir articulada à luta de demais formas formas de discriminação, exclusão e opressão, considerando gênero e raça;
  • sétimo, que a proteção social e a proteção trabalhista abranja todos os trabalhadores, independente da relação de trabalho estabelecida;
  • oitavo, que as instituições públicas responsáveis pela regulação do trabalho sejam fortalecidas e não solapadas, como vem ocorrendo;
  • nono, que a diminuição da jornada de trabalho venha acompanhada de condições mais dignas para os trabalhadores, garantindo tempo para o desenvolvimento de outras dimensões da vida fora do trabalho, fazendo com que o trabalho tenha real sentido e significado, assim como garantia salarial;
  • décimo, que os ganhos de produtividade acumulados ao longo do tempo, fruto de inovações produzidas pelo conjunto dos atores sociais, seja melhor distribuído entre trabalhadores e capitalistas.

Por fim, que se possa viver além do trabalho. Como disse Antonio Candido, “a luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: eu quero aproveitar meu tempo de forma que eu me humanize”. A necessidade de uma agenda humanizadora a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras há muito já está colocada.


Notas:

1 Os microempreendedores individuais (MEIs) são os que possuem a maior alta taxa de mortalidade empresarial, com 29% encerrando suas atividades em até cinco anos.

2 https://medicinasa.com.br/redes-farmacias/

3 https://gironews.com/farma-cosmeticos/principais-redes-de-farmacias-faturaram-r-913-bilhoes-em-2023-rd-segue-no-topo-do-ranking/

4 https://exame.com/negocios/quais-sao-os-15-maiores-supermercados-no-brasil-e-quanto-eles-faturam-veja-a-lista/

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3 comentários para "VAT: Quem é contra a redução da jornada?"

  1. Johnny Keiji Nishimura disse:

    E a agricultura como fica, falou muito em farmácia, supermercado. E quem sustenta toda essa cadeia, a primária, a planta não trabalha na escala 6×1, nem 5×2, muito menos 4×3. Ela trabalha(desenvolve) na escala7x0 com o agricultor acompanhando, seja ela vegetal ou animal. E essencial para que todas as outras cadeias de empregos trabalhem. Pois saco vazio não para em pé. IMPOSSIVEL TRABALHAR NESSA ESCALA NA AGRICULTURA, e já não se acha mais mão obra para agricultura para trabalho no sol, que suja a roupa, que sua o corpo. É uma verdadeira academia ao ar livre durante 8 horas. E sinceramente para trabalhador trabalhar na escala 4×3. Ele teria que ganhar no mínimo um salário de 5000,00 para mais, para usufruir esse tempo livre. Lembrando que o filhos de todos iriam 4 dias na escola. Pois os professores também são trabalhadores.

  2. Charlie Brown disse:

    Critica a esquerda e cita a China como referência, uma esquerda de fachada.

    E se esquece de Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia, com governos social-democratas.

    País onde a direita avançou: Argentina. Quem quer ir pra lá?

  3. MANOEL disse:

    É a esquerda vem acabando com a economia devagarinho como se estivesse do lado do trabalhador, mais ao contrário tem destruído a economia, é só ver hoje as pessoas querem procurar países onde a esquerda não conseguiu avançar suas pautas.
    Um exemplo nos anos 90 o PIB brasileiro era 5 vezes o da China, a esquerda assumiu o poder veja a comparação.

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