Como a “austeridade” golpeou a União Europeia 

Após décadas de financeirização, bloco deixou de inovar. Cortes sociais ampliaram a desigualdade. No norte do continente, a indústria é sucateada. No sul, só turismo assegura melhoras. E Alemanha perde espaço no setor automobilístico global

Trabalhadores limpam painel com logo da União Europeia antes de cúpula do bloco em Bruxelas, Bélgica. Foto: Virginia Mayo/REUTERS
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Desde sua criação, a União Europeia (UE) vive uma eterna obsessão por regras fiscais. A introdução de um novo regime de austeridade é sempre tido como a solução definitiva para qualquer crise. Foi assim no pós-crise financeira global e agora se repete no pós-crise pandêmica. Entretanto, as décadas de austeridade acabaram com a capacidade de inovação da economia europeia, a tornando cada ano menos competitiva frente à rivalidade sino-americana.

O envolvimento da UE com as regras fiscais começa desde o nascimento do Euro por meio do Tratado de Maastricht de 1992. Para que a união monetária fosse possível, seria necessária a convergência das condições macroeconômicas dos países membros. Os candidatos deveriam estabilizar suas taxas de câmbio, inflação e déficits do setor público a um patamar comum. No caso dos déficits, a meta prevista era de 3% anual e de dívida pública 60% em relação ao PIB. Após a convergência dos indicadores, a nova moeda entraria em circulação e o Banco Central Europeu (BCE) seria responsável pela estabilidade monetária. Essa estabilidade seria adquirida por meio de um regime de meta de inflação, abaixo dos 2%, como sua prioridade.

O que se seguiu na UE após o Tratado foi o surgimento de diversas regras fiscais tanto nacionais quanto supranacionais. A obsessão pela contração fiscal na UE, no entanto, não remonta apenas à criação do Euro, mas também a importantes mudanças históricas e institucionais ocorridas a partir da década de 1970. Com o fim do crescimento econômico do pós-guerra, as economias ricas da Europa começaram a experienciar um crescente aumento nos gastos públicos face a uma estagnação das receitas tributárias. A estagnação das receitas foi uma consequência direta da internacionalização e financeirização da economia, potencializando a mobilidade do capital e, assim, a evasão fiscal.

A teoria da economia do gotejamento, ou trickle down economics, pavimentada nos EUA na administração Reagan e na Inglaterra durante os anos Thatcher, também contribuiu para a erosão da base tributária. Essa teoria política e econômica argumenta que os benefícios advindos de cortes tributários para os ricos e as grandes empresas acabariam por “transbordar” para toda a economia. No Brasil, a teoria da economia do gotejamento se traduziu para o que Delfim Netto, ministro da Fazenda durante a ditadura, cunhou de “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”. Na prática, a perda estrutural de receita tributária se traduz em pressão permanente sobre a despesa pública.

No lado dos gastos, o envelhecimento da população, juntamente com a maturação do Estado de bem-estar social e o crescimento das despesas obrigatórias, contribuíram para gastos cada vez maiores. Essas mudanças catalisaram o que o sociólogo Wolfgang Streeck chamou de Estado de Consolidação. Frente ao crescente aumento da dívida pública e dos gastos obrigatórios, o corte de investimento público se tornou a principal via de ajustes orçamentários.

A crise financeira global de 2007 marca a primeira crise do modelo de regras fiscais da União Europeia. Quando a crise chega aos bancos europeus, sobretudo britânicos, alemães e franceses, os países-membros da UE injetaram trilhões de euros no sistema financeiro a fim de evitar o colapso do setor bancário e, consequentemente, da economia. A fragilização do setor bancário resultou em uma “seca” no crédito. Essa escassez de crédito contribuiu para a queda da produção, aumento do desemprego e, consequentemente, uma diminuição nas receitas governamentais. Como se não bastasse, os chamados estabilizadores automáticos, isto é, pagamentos de transferência que aumentam em recessões, como o seguro-desemprego, também contribuíram para o aumento do déficit. Essa resposta levou ao crescimento exorbitante da dívida pública nos países-membros, que combinada com endividamento externo nos países da periferia da Zona Euro, colocou países como Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha em risco de falência.

Apesar da crise ser essencialmente financeira, a dívida pública dos países do sul caiu na mira das lideranças da UE, que apontavam a irresponsabilidade fiscal desses países como causa da crise. Diante deste cenário, a chamada troika, articulação entre a Comissão Europeia, o BCE e o Fundo Monetário Internacional, impuseram a austeridade e a desvalorização interna (cortes de salários e aposentadorias) como única saída para o problema do endividamento público e externo. As regras fiscais foram reformuladas para serem mais punitivas e severas, com a inscrição inédita de muitas delas na Constituição de vários países europeus, nomeadamente da Alemanha

Agora, após a “gastança” feita durante a pandemia, as instituições da UE clamam novamente por cortes de gastos e redução de déficits. As novas regras, aprovadas este ano, assim como todas anteriores, clamam ser amigáveis ao investimento e ao desenvolvimento econômico. Na realidade, de acordo com o Instituto Bruegel1, as novas regras fiscais irão impor elevados cortes orçamentários. Apenas quatro países-membros não deverão passar por ajuste fiscal de curto prazo. O nível médio de ajustes fiscais para os países da zona do euro é de 1.9% do PIB entre o período de 2025-20282.

A princípio, a volta das regras lembra muito o ocorrido no pós-crise financeira. No entanto, as similaridades acabam por aí. Uma das diferenças notáveis é a mudança de posição entre os países-membros no que toca ao crescimento econômico. Os países do sul, como Portugal ou Espanha, se beneficiaram pela recuperação internacional do turismo pós-pandemia. Por ser um setor intensivo em trabalho, estes países atualmente registram baixo desemprego e mostram resultados fiscais surpreendentes. Por outro lado, as maiores economias do bloco, ao norte do continente, não tiveram a mesma sorte, vítimas da crise que assolou os seus setores industriais. No mês passado, o rendimento do título público de 10 anos do governo francês ultrapassou o seu homólogo espanhol pela primeira vez desde 2008. Para os investidores, investir na dívida francesa se tornou mais arriscado do que na espanhola.

A Alemanha é o exemplo paradigmático para a atual situação econômica da UE. A maior potência do bloco, cuja economia se sustenta nas exportações, vem consistentemente perdendo espaço no mercado internacional. Esse fenômeno ocorre principalmente na indústria química por conta do aumento do preço da energia após a guerra na Ucrânia, e na automobilística, devido à ascensão das montadoras chinesas. Como consequência, a Volkswagen, maior grupo industrial do país e símbolo do slogan “Made in Germany”, planeja fechar três plantas no país, deixando dezenas de milhares de trabalhadores desempregados. No campo orçamentário as coisas também não vão bem. Por mais que o ajuste orçamentário requerido por conta das novas regras seja relativamente menor que para os demais, o país passa por problemas no que tange à possibilidade gastos para investimento. No ano passado, a suprema corte do país julgou inconstitucional o plano do governo de se utilizar de fundos emergenciais da covid para financiar o projeto de modernização da indústria nacional.

As décadas de cortes no investimento europeu resultaram em uma economia cada vez menos competitiva e dinâmica. Diante desse cenário, não é surpresa que no mês passado, Mario Draghi, ex-presidente do BCE e ex-premier italiano, tenha entregue um relatório ameaçador à presidente da Comissão Europeia. Conforme o relatório, a estagnação econômica que o bloco experienciou nas últimas décadas frente aos EUA, China e demais potências configura um “desafio existencial” para o futuro da UE. Tão longo quanto os líderes europeus continuarem a enxergar o orçamento público como um estorvo e não uma ferramenta para sair da crise, o bloco continuará estagnado.


Referências:

1 Jeromin, Zettelmeyer, «Assessing the Ecofin compromisse on fiscal rules reform»,

Instituto Bruegel, Bruxelas, 21 de Dezembro de 2023, disponível em www.bruegel.org/first-

glance/assessing-ecofin-compromise-fiscal-rules-reform

2 Heimberger, Philipp, “Fiscal consolidation and its growth effects in euro area countries: Past, present and future outlook”, Outubro de 2024, disponível em: https://wiiw.ac.at/fiscal-consolidation-and-its-growth-effects-in-euro-area-countries-past-present-and-future-outlook-dlp-7016.pdf

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