Fake news? Não… É a ideologia, estúpido!
Provocação sobre o combate à mentira. A esquerda esfalta-se em combatê-la, mas esquece o essencial. As maiorias buscam a legitimação de suas crenças. Para apontar o novo, é preciso construir vínculos solidários na realidade palpável?
Publicado 12/11/2024 às 17:39 - Atualizado 13/11/2024 às 14:14
Há alguns anos questões como desinformação e “fake news” ocupam os holofotes dos analistas e das manchetes, também de políticos e gestores, bem como de algumas prosas de almoço ou churrasco de domingo. Da primeira vitória do Trump, do Brexit à ascensão da extrema direita e o ódio às minorias políticas, tudo passou a ser explicado dando-se um peso de destaque às dinâmicas de funcionamento das novas mídias, as chamadas “redes sociais”.
Com razão, pouca atenção ao tema me pareceria um erro; e subestimar o poder que hoje os algoritmos corporativos tem sobre às pessoas me pareceria um erro duplo. Seja as taxas de vacinação, seja o poder eleitoral que um Marçal possa ter, atualmente poucos acontecimentos na polis passam incólumes dos “conteúdos” reproduzidos/distribuídos em grandes escalas na internet sob o crivo das plataformas e suas proprietárias, as Big Techs.
Mas será que não estamos dedicando um excesso de atenção, ou melhor, supervalorizando a dita “desinformação” e seus suportes técnicos? Será que dar tanto peso a elas para explicar o cenário de crises em que vivemos não seria um equívoco? Não estaremos atribuindo muita importância ao papel das “redes” para entendermos à contemporaneidade e seus dramas?
Em um filme de 2017, baseado no conto Hazatérés de Gábor T. Szántó, 1945, o diretor Ferenc Török acompanha a chegada de dois homens judeus a um pequeno vilarejo na Hungria. O cenário é fim da II Guerra Mundial. Nos primeiros minutos do filme um trem para na estação do vilarejo e os dois judeus descem, em silêncio, com um carregamento de caixas misteriosas. O chefe de estação então lhes pergunta “É para retirar um pacote ou fazer uma entrega?” E tão logo ele se encaminha à central de telefone para avisar o “coronel” da vila – um misto de autoridade econômica, jurídica, contábil e cultural – sobre a chegada dos mesmos.
A hora e meia de filme em diante se dá em torno dos efeitos da notícia da chegada dos dois. Os judeus passam o filme todo – misteriosamente – em silêncio e em caminhada lenta a um destino que não sabemos qual – nem nós espectadores e nem a população do vilarejo – até o desfecho final. Mas a notícia – a qual, por sinal, me parece ser a protagonista do filme – percorre, mais ou menos, no nível da fofoca os mais distintos vínculos sociais, interpelando a todas/os; produzindo um conjunto de tensões e afetos, discursos e práticas, ocasionando medos, ansiedades, neuras, paranoias, pavores… Dos quais, por sinal, desdobram-se inúmeras consequências práticas na ordem estabelecida: casamentos são desfeitos, brigas entre pais e filhos explodem, traições são consumadas, propriedades comerciais são destruídas, um suicídio acontece…
Não demora, o filme nos deixa claro que tudo acontece porque a chegada dos dois judeus é, na verdade, recebida como um retorno. A notícia discursada e corrente no boca a boca é “os judeus voltaram”. Voltaram porque “os judeus” – não exatamente aqueles dois personagens, mas esse grande Outro europeu da época representado por eles – lá residiam antes da Guerra, convivendo com os demais. E agora os moradores não-judeus temiam que esse Outro estivesse retornando para reivindicar o que lhes havia sido espoliado pelos nazistas e por eles como cúmplices. Na sequência cinematográfica vemos então que os efeitos disruptivos da notícia – do retorno do perigoso e maldito Outro – se dava em razão de ela estar conectada às entranhas sociais que sustentavam a nova ordem simbólica instituída; a qual por sinal passara a garantir e dar sentido ideológico aos novos vínculos sociais, as suas hierarquias (micro)políticas e as suas relações de produção e reprodução material.
A vida em tal sociedade havia se alterado com a captura dos judeus feita com a colaboração dos não-judeus. Alteração que, desde então, como num recalque social compartilhado, instituíra uma nova ordem que passou a ser desfrutada – hierarquicamente – pelos moradores que ali ficaram. Com os judeus nos campos de concentração, tanto as propriedades comerciais, como o lugar de autoridade para legislar e para executar, o monopólio da fé e da cura, as trocas libidinais… Tudo passara às mãos dos moradores não-judeus e eram com eles e a partir deles que a nova ordem social do vilarejo seguia seu rumo.
Há muitos elementos do filme de Török que merecem ser explorados para refletirmos sobre as “notícias” ou “conteúdos” que circulam e os sistemas de crenças que ordenam as relações e os vínculos sociais de um determinado vilarejo ou sociedade. Um que me parece urgente é que podemos olhar para relação entre o fato (a chegada dos judeus), a notícia produzida (“Os judeus voltaram”) e os efeito sobre os moradores do vilarejo, como uma defesa da primazia dos sistemas de crenças frente aos “fatos” e suas “notícias”. Como uma defesa do poder da ideologia.
A chegada dos judeus significa para vila algo cujo valor não está em seu conteúdo expresso, factual, mas em sua função simbólica dentro de uma rede de relações, laços e vínculos sociais constituídos por necessidades, poderes e libidos. Dito de outro modo, o fato da chegada logo se converter ideologicamente em “os judeus voltaram” marca o peso do seu significado como um fantasma – do retorno desse Outro que outrora foi expulso. É por isso que a notícia como “retorno” tem sentido e força material na vida dos moradores, porque ela expressa como um meme toda a ordem simbólica instituída. Afinal, com os judeus expulsos, os moradores ocuparam novos lugares e novas dinâmicas de poder, constituiriam novos privilegiados e dominantes. Então, ver/ouvir que os judeus estão voltando cria uma tensão no vínculos instituídos: a ordem parece estar ameaçada. A notícia se torna um gatilho de temor para quem quer manter tudo do jeito que está; um pavor de que as mudanças que constituíram a nova ordem possam ser abaladas ou comprometidas.
Vejam vocês, já há inúmeros achados empíricos sobre a “desinformação”, que nos convoca a uma tese antiga: os sistemas de crenças precedem e orientam a busca de “noticias” e “conteúdos”, ou seja, quando há o contraditório as pessoas tendem a buscar informações que confirmem suas crenças e valores preexistentes. E não só isso, nós não apenas buscamos conteúdos em razão de nossas ideologias, como também são elas que fazem com que estejamos dispostos ou não a darmos maior ou menor atenção a esse ou aquele meme, notícia, manchete, videozinho etc; e não o contrário. (E podemos ficar com FoMO, ansiosos, dependentes… com os conteúdos “lixos” ou “excelentes”; isso pouco ou nada tem a ver com o sistema de crenças!)
É verdade que a exposição aos conteúdos falsos ou verdadeiros podem alterar os sistemas de crenças ao longo do tempo, sobretudo a depender do assunto ou do tema em questão. Mudarmos de juízo acerca do “criacionismo vs. evolucionismo” não é exatamente igual a rever o posicionamento sobre o “kit covid vs. vacina”; como sabemos as raízes das crenças são diferentes na força com que estão presas ao solo. Contudo, além disso ser residual no todo, outros achados empíricos tem nos colocado frente a frente ao fato de que as ações de letramento científico-midiático com frequência “saem pela culatra”, ou seja, as ideologias “negacionistas” se fortalecem ao tomarem conhecimento das verdades factuais, não se arrefecem. Do tipo: as pessoas preferem acreditar no que já acreditam, elas racionalizam o que chegam a elas da melhor maneira que lhes cabem para fortalecerem suas crenças previamente existentes. E rever tais crenças com novas “notícias” e “conteúdos” apresentados pelos algoritmos não é algo que propriamente esteja na ordem do dia das “redes”.
“É a economia, estúpido!”, esse foi o mote político que se tornou popular na campanha presidencial norte-americana de 1992, produzida pelo marqueteiro James Carville para Bill Clinton. O tom grosseiro da frase não pode nos afastar do que ela nos interpela indiretamente: uma ordem de prioridade – tática e estratégica – quanto aos desafios e batalhas colocados na conjuntura.
Sem dúvidas as novas mídias jogam um papel importante atualmente. A quantidade e a velocidade com que informações falsas são distribuídas é algo inédito para humanidade, além da importância estratégica neste cenário das chamadas “câmaras de eco” e da “economia da atenção”. Sem descontar disto, o brutal reforço da fusão entre arte e publicidade, política e publicidade, religião e publicidade… em tempo real, capilarizado e customizado na tela do nosso smartphone. Tudo intensificando as tendências de uma civilização que caminhou nos últimos 50 anos para um arquipélago de sociedades individualistas de massa pautada na soberania do consumidor e no empreendedorismo. Portanto, nos dedicar a entender profundamente essas mídias, seja para utilizar a melhores táticas de luta em suas trincheiras, seja para batalhar pela regulação, tornou-se uma pauta e agenda epistêmica, jurídica, política e ética que merece atenção e celeridade.
Entretanto, penso que seja urgente sobrepesarmos o lado da balança para o “básico”, isto é, para as ideologias que são inculcadas nos vilarejos, nas atividades cotidianas de carne e osso das pessoas, em seus laços e vínculos sociais ordinários – para que não fetichizemos as “redes”.
Os moradores do 1945 reconstruiram suas vidas através da expulsão dos judeus, e para isso estabeleceram novas relações e vínculos sociais – econômico, amoroso, político ou religioso – dos quais o sistema de crenças é o seu momento ideal, o momento de internalização dessas mesmas relações na forma de valores, juízos e disposições de condutas. Já nos disse um velho barbudo: os sistemas de crenças são as relações existentes na forma de ideias, relações tornadas conscientes. Trata-se das experiências concretas de vínculos e laços sociais internalizados como valores; são elas as raízes mais ou menos enrijecidas das nossas crenças. Por isso que duvidar das próprias crenças é, ao fim e ao cabo, duvidar dos vínculos e laços nos quais estamos imersos da hora que acordamos até a hora em que vamos dormir – e que com frequência aparece em nosso sonhos. Mudar de ideologia implica mudar esses mesmos vínculos e laços que nos sustentam na corda bamba da realidade, e que nos dá real guarida, amparo, pertencimento, reconhecimento…
O que fazem as “notícias” e “conteúdos” é reforçarem (e, consequentemente, ampliarem) o que já está vivo nos laços sociais ordinários da nossa vida cotidiana; é conformarem (e, também, direcionarem) em/por signos o que é vivido diuturnamente nos automatismo das relações em nossas famílias, trabalhos, igrejas, escolas, academias, ruas, bares, hospitais e clínicas…
Papo reto: estou convencido, portanto, que a luta é tão nova quanto a velha luta ideológica. Se considerarmos as nossas batalhas nos centrando na distribuição, difusão e atenção as “notícias” e “conteúdos” terminaremos achando que se trata apenas, ou sobretudo, de uma luta por colocarmos –algoritmicamente – “os pingos nos is”. Se assim se seguir, continuaremos sendo derrotados. Com razão, “Na luta de classes, todas as armas são boas: pedras, noite e poemas.”. Todavia, não há ou haverá vitória sem as lutas travadas no interior das relações cotidianas, nos vínculos que são construídos não apenas discursivamente, mas na carne e no osso dos laços sociais ordinários… Como disse L. Vygotsky, “A consciência é a experiência vivida de experiências vividas.”
Marçais e companhia são encenações das crenças que atuam na própria realidade social. Por isso, nem hesitações vacinais, nem kits covids, nem terraplanismos, nem Marçais, nem Bolsonaros, nem negacionismos climático, nem… nem… serão contrapostos e vencidos nas “redes” e com os algoritmos. Dito de outro modo, não há vitória possível nas redes sem uma vitória – primária – lá onde repetidamente nos vinculamos ao outros para nascermos, aprendermos, louvarmos, trabalharmos, gozarmos… vivermos. A cabeça crê onde os pés pisam, e ninguém pisa – propriamente – nas “redes”.
Ao fim, nos últimos cinco minutos do filme, tomamos conta de que os dois judeus só chegaram na vila porque queriam enterrar alguns pertences junto aos corpos de seus familiares que lá jaziam.