Teria a Petrobrás virado estrangeira?

No primeiro diálogo do Projeto Resgate sobre empresa, o geólogo Guilherme Estrella narra a saga política e tecnológica que levou à descoberta do Pré-Sal. Surge polêmica sobre o controle acionário da companhia. Nesta terça (3/5), Gilberto Bercovici mostra: novo governo pode torná-la pública

A voz do geólogo Guilherme Estrella segue firme aos 80 anos, mas trai certa emoção quando ele chega ao ponto crítico de sua narrativa sobre a descoberta do Pré-Sal, que liderou há pouco menos de duas décadas. “O Centro de Estudos da Petrobrás havia identificado com clareza a rocha que concentra o petróleo brasileiro, nas jazidas sob o fundo do mar. Na Bacia de Santos, estes depósitos estão selados sob uma camada de 2 mil metros de sal, a 200 quilômetros da costa. Não havia tecnologia para perfurá-los. A Shell, que os explorava, parou a mil metros e deixou para trás uma reserva de 10 bilhões de barris. No governo Lula, voltamos a buscá-la. Tínhamos um conhecimento único no mundo. Mas tínhamos em especial a noção de que se tratava de uma riqueza necessária para mudar o rumo do país”.

A história que Guilherme compartilhou em 26/4, na primeira sessão da série do Projeto Resgate sobre a Petrobrás, poderia ser contada nos livros escolares, como sinal das possibilidades de descolonizar o país. O Pré-Sal segue em sua maior parte inexplorado, mas calcula-se que o valor do óleo já inventariado equivalha a 20 trilhões de dólares – duas vezes o PIB do Japão e Alemanha somados, ou quinze vezes o do Brasil. Porém são quase inexistentes, na própria mídia, as reportagens sobre esta riqueza; sobre como ela poderia ser empregada para a reindustrialização seletiva do país, e para financiar a conversão da matriz energética para fontes limpas. Também não se fala de como parte do Pré-Sal foi concedida a empresas estrangeiras, ou sobre a queda abrupta, nos últimos anos, dos investimentos da própria Petrobrás. A frente pela privatização compra silêncios.

Outras Palavras busca rompê-los. A sessão de 26/4 contou também com a presença do senador Roberto Requião (PT-PR). “Ou o Brasil recupera a Petrobrás, ou o país não será mais nosso”, alertou ele, que condena as hesitações de economistas próximos a Lula em assumir posições mais nítidas em favor da empresa. No diálogo com Estrella, Requião referiu-se, em especial, à ofertas de ações da Petrobras nas bolsas de valores do Brasil e de Nova York, que terminou colocando a maior parte do capital da empresa em mãos de grandes fundos estrangeiros.

A questão é complexa e também ignorada pelo jornalismo de mercado. O Estado brasileiro continua obrigado, por lei, a manter o controle das ações com direito a voto (“ordinárias”) da Petrobrás. A União detém 50,26%, nomeia a maior parte dos membros do Conselho de Administração e compõe diretoria da estatal. Por isso, são patéticas as falas de Bolsonaro segundo as quais o governo “não manda” na empresa.

Mas este mesmo Estado empenha-se em “mercantilizar” a estatal, para usar um termo de Requião. Os acionistas privados são amplamente majoritários, na posse das ações “preferenciais”, que não votam. O Estado tem apenas 18,48%. De modo que, no cômputo geral, considerados todos os tipos de ações, os entes estatais (BNDES incluído) controlam 36,6% das ações, ficando 53,4% em mãos privadas. Destas, 71,2% são controladas por estrangeiros (em sua grande maioria, megafundos, como o BlackRock) e apenas 28,8% por brasileiros. Os lucros da empresa são distribuídos (na forma de “dividendos”) tanto entre os acionistas “ordinários” como entre os “preferenciais”. Por isso, quando a direção da Petrobrás extorque a população brasileira e cobra preços abusivos pelos combustíveis, quem ganha são, principalmente, os grandes barões das finanças internacionais.

Como reverter este processo? Ainda mais importante: como restituir à Petrobrás as subsidiárias e operações que são essenciais à sua existência e estratégicas ao país – mas têm sido desmembradas e entregues a capitais de rapina? Incluem-se aqui a BR Distribuidora, vendida em condições obscuras e a preço aviltado, a Liquigás, as refinarias, os braços petroquímico e de fertilizantes. Enquanto todas as petroleiras internacionais diversificam-se, e buscam converter-se em empresas de energia, a estatal brasileira foi levada pelos governos Temer e Bolsonaro a seguir estratégia inversa – e suicida.

O advogado Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP falará sobre a possível recuperação nesta terça-feira, 3/5. Bercovici é um destruidor de mitos neoliberais. Seus estudos sobre a Constituição e as leis brasileiras demonstram: nada está perdido; tudo o que foi concedido pode ser reincorporado à Petrobrás.

O ordenamento jurídico brasileiro atribui caráter especial às empresas estatais. Seu papel principal, segundo as leis, não é gerar lucros aos acionistas, mas cumprir os papeis estratégicos para os quais foram criadas. Elas podem, por exemplo, preferir empresas nacionais, em suas aquisições de equipamentos; lançar-se a iniciativas inovadoras, necessárias à reindustrialização do país; liderar o projeto de conversão para energias limpas. E ao fazê-lo não são obrigadas a obter resultados financeiros imediatos, pois não existem para isso – e os interesses e direitos da maioria da população são superiores.

Não há alternativa, sustentou, por quatro décadas o credo do Consenso de Washington. As sociedades e Estados, pregava-se, precisam submeter-se à disciplina fiscal dos mercados, às privatizações, ao desmonte dos direitos e da Previdência Social. Este pensamento está em crise, em todo o mundo. No Brasil, há chances reais de virada – derrota do bolsonarismo e pressão sobre as políticas neoliberais. Bercovici mostrará que há bases jurídicas para o resgate da Petrobrás e do petróleo. Conhecê-las ajudará a ampliar os horizontes políticos, em tempos de crise.

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