No tabuleiro político, quem são as peças?
Lançamento do Selo Manjuba mistura política e xadrez para revelar como um jogo pode refletir as grandes lutas ideológicas e pessoais do século XX. Obra também reflete sobre o papel de cada indivíduo nas batalhas coletivas. Leia trechos. Sorteamos um exemplar
Publicado 28/02/2025 às 18:37 - Atualizado 28/02/2025 às 18:50
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Quando, em 1962, em Estocolmo, o espanhol Arturo Pomar enfrentou o então jovem prodígio norte-americano Bobby Fischer, uma luta intensa era travada para além do tabuleiro de xadrez.
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A obra O Peão, do espanhol Paco Cerdà, costura um paralelismo entre esse confronto e as intensas lutas políticas da época. Recém-lançado pelo Selo Manjuba, selo de não ficção da Editora Mundaréu, o livro busca esclarecer as dinâmicas políticas e sociais de uma época marcada pela Guerra Fria; além de demonstrar como o xadrez foi um instrumento político durante o período.
Outras Palavras e Selo Manjuba irão sortear um exemplar de O Peão, de Paco Cerdà entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 17/3, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
Com uma narrativa envolvente, dessas de tirar o fôlego, e sua prosa poética – que ganhou um potente eco pela tradução de Marina Waquil –, o autor nos leva a questionar o lugar desses que seriam os “peões” na História e a importância do sacrifício individual nas lutas coletivas que moldaram o nosso mundo.
Pomar, um talentoso enxadrista que já havia sido considerado um “menino prodígio” na Espanha franquista, e Fischer, um americano excêntrico prestes a se tornar o único estadunidense a vencer o mundial de xadrez, representam antagonismos em um um mundo extremamente polarizado.
Por meio dos 77 lances dessa partida, Cerdà entrelaça a trajetória de diversas figuras políticas que se sacrificaram em nome de suas causas, seja em regimes autoritários ou no contexto do capitalismo americano.
A obra não se limita a um relato sobre xadrez, mas se utiliza do jogo como uma metáfora para os grandes conflitos da história. O Peão é uma colagem de histórias de indivíduos que se opuseram às opressões de suas épocas — desde os resistentes antifranquistas na Espanha até os ativistas contra o capitalismo nos Estados Unidos.
Tais figuras, muitas vezes esquecidas pela História, são representadas no escrito como peões sacrificados em batalhas maiores. Cerdá explora a complexidade das lutas políticas, o sacrifício pessoal e a maneira como esses movimentos podem ser apagados ou distorcidos pela História oficial.
Leia, logo abaixo, alguns trechos da obra. Boa leitura!
1. e4 c5
Um peão nunca é apenas um peão. Confinado a um tabuleiro e com os movimentos limitados à sua condição gregária, integra um bando, serve a um rei, obedece a uma mão.
O peão branco que avança duas casas para começar o jogo — um peão que sonha em chegar à oitava fileira e se transformar em dama,[1] que sonha em ser ele mesmo e não outra peça o responsável por aplicar xeque-mate, que sonha em romper seu destino esculpido de peão — tem atrás de si um jovem esguio de dezoito anos criado no Brooklyn, com aparência e ares do Brooklyn. Sua fama o precede: arrogante, genial, imprevisível. Obsessivo, excêntrico. Ambicioso. Ao seu lado, junto ao tabuleiro, uma pequena bandeira com listras e estrelas coroa uma placa de identificação com sete letras maiúsculas: Fischer.
O contraste impressiona. Sentado à sua frente está um espanhol de baixa estatura, com calvície pronunciada e dentes do pós-guerra. Seu olhar às vezes se perde, a boca fica entreaberta. Sua atitude parece impassível, por vezes quase apática. É seu temperamento, seja diante do tabuleiro preto e branco, seja diante da correspondência que classifica todos os dias na cinzenta agência dos correios de Ciempozuelos. Na verdade ele tem apenas 31 anos, mas já parece velho. A época de sua fama ficou para trás e o tempo, implacável, dissolveu-a. Dissipou-a até que ficasse reduzida a um halo, a uma sombra, a um eco. Sem compaixão. A etiqueta que aparece sob a bandeirinha vermelha e amarela com a sinistra águia preta estampada no centro tem cinco letras: Pomar. Mas há um nome, com tantas letras quantos peões pretos que ele tem antes de escolher o terceiro da direita para executar seu primeiro e ousado movimento — uma defesa siciliana contra o mestre das sicilianas —, que o perseguirá até o túmulo: Arturito.
É 10 de fevereiro de 1962 e a nona rodada do Torneio Interzonal de Estocolmo começou, com seus vinte e três enxadristas abrigando-se do inverno sueco neste salão aconchegante do restaurante Tre Kronor. A partida de Fischer contra Pomar parece só mais uma. Só mais uma das 258 que acontecerão neste torneio classificatório para o campeonato mundial. No entanto, uma partida nunca é só uma partida.
[…]
6. exf6 dxc3
A pobreza fede. Libera um odor viscoso que penetra na amígdala através do bulbo olfatório e nunca mais sai do cérebro; memória olfativa protegida do Alzheimer.
O cheiro de miséria envolve o albergue de Chicago para mães solteiras sem recursos. Robert James Fischer passa seus primeiros dias de vida ali. O inverno de 1943, época de guerra nos Estados Unidos, acelera suas últimas friagens. O rádio não para de tocar “I Had The Craziest Dream”, com a voz de Helen Forrest, embalada pelo fantástico trompete de Harry James. Enquanto isso, os peões estadunidenses preparam-se para desembarcar na Normandia e cavar vinte mil sepulturas americanas em dois meses: fileiras de cruzes brancas com um nome e um número, já que é a isso que se resume tudo, junto às flores e à bandeira.
Regina Wender Fischer, a mãe, que já tem uma filha de cinco anos, Joan, não tem marido, nem emprego, nem residência fixa. Ela ainda sonha o sonho maluco de estudar e exercer a profissão de enfermeira depois de não ter concluído medicina quando, há uma década, cheia de ideais, trabalhou em um hospital de Moscou para servir ao proletariado russo. Isso já passou, embora o FBI não pare de espioná-la. Agora, Regina vagueia sozinha com seus filhos de um lado a outro dos Estados Unidos. Antes de completar seis anos, Bobby mora em Chicago, Pullman (Washington), Moscow (Idaho), Los Angeles (Califórnia) e Mobile (um ponto remoto e completamente desabitado no deserto do Arizona) antes de se mudar para Nova York e se instalar em diferentes apartamentos minúsculos de Manhattan e do Brooklyn; dez mudanças em seis anos com a foice do aluguel sempre na mala. Sua mãe trabalha como soldadora, professora, rebitadora, agricultora, auxiliar de toxicologista, taquígrafa. A miséria é uma constante. O tempo fixo no metrônomo. O som invariável do diapasão. O cheiro que o cérebro de Bobby não conseguirá esquecer.
Numa tarde de março, Joan volta da loja de doces e traz um jogo para seu irmão de seis anos. É um xadrez de plástico de um dólar, com um tabuleiro vermelho e preto de papelão dobrável e peças de apenas três centímetros. Joan e Bobby leem as instruções: o passo curto do peão, a cavalgada em L do cavalo, as diagonais assassinas do bispo, o movimento cartesiano da torre, a dama onipotente, o rei frágil cuja defesa é obrigatória, o xeque-mate como objetivo. As partidas começam. Joan se cansa. Bobby continua. Bobby sempre continua. Sua mente não descansa, nunca, jamais. Superdotado, como é reducionista um rótulo. Asperger, como é simples classificar o que não tem diagnóstico. No quarto ano já ingressou e saiu de seis escolas. Sua mente não se adapta a nenhuma. À solidão, sim. Acostumou-se a ela. Às longas horas sem ninguém em casa pelo trabalho constante de Regina ou suas aulas de enfermagem, pela flagrante ausência de um pai — quem é seu pai, Bobby, quem é ele, a pergunta sem resposta que atormenta.
O sol se põe atrás da janela e Bobby continua contemplando o tabuleiro e movendo as peças. As de plástico com seis anos. As de madeira com sete. Bobby joga contra Bobby, e o que é a vida senão essa partida. Sua obsessão pelo xadrez cresce, foge do controle e preocupa a mãe. Ela consulta dois psiquiatras. Senhora, há coisas piores do que xadrez com as quais ficar obcecado. A mãe quer companhia para o filho, que ele conviva com outros meninos de sua idade. Envia um anúncio para um jornal local: Procura-se menino de sete anos para jogar xadrez. É assim que um entusiasta colunista de xadrez do Brooklyn Eagle, onde o estranho aviso não é publicado, recomenda-lhe por carta que leve Bobby a uma biblioteca pública o que receberá, quatro dias depois, uma exibição simultânea oferecida pelo grande mestre Max Pavey.
É quarta-feira e ali está Bobby sentado diante do tabuleiro, com quase oito anos, jogando sua primeira partida séria. Na frente dele está um radiologista de 32 anos que foi campeão da Escócia, campeão do estado de Nova York e campeão de xadrez rápido dos Estados Unidos. Não importa a derrota, nem os quinze minutos de jogo, nem a dama capturada no final. Importa ver Bobby chorando sem consolo, chorando o sal da derrota: outro sabor que ficará gravado em seu cérebro como mecanismo de autodefesa e que invocará. Mas, acima de tudo, importa ver Carmine Nigro como uma testemunha da partida: observando o menino concentrado, analisando seus movimentos pensados, admirando sua raiva final. Ele é o presidente do clube de xadrez do Brooklyn e no final da partida se aproxima de Bobby e de Regina para convidar o menino para o clube. Sem taxas. Assim começam para Bobby as partidas no clube nas noites de sexta-feira, as aulas aos sábados na casa de Nigro, os livros de xadrez que devora na biblioteca, as revistas especializadas de segunda mão, as partidas ao ar livre no Washington Square Park entre boêmios e amadores, faça frio ou calor, a modalidade relâmpago de blitz (mova! mova!), o jogo às cegas andando pela rua e relembrando cada movimento sem tabuleiro, como uma constelação evanescente que brilha com a força da lógica.
O mundo de Bobby vai delineando seus contornos pretos e brancos e limitando-se a 64 casas, 32 peças, dois lados e um sabor a evitar. Um mundo confinado a um tabuleiro que, por sua vez, expande-se de forma diabólica: após o primeiro movimento das brancas e das pretas, surgem quatrocentas posições possíveis em uma partida. Depois de dois movimentos de cada lado, as possibilidades chegam a 197.281. Após três movimentos das brancas e das pretas, as combinações possíveis ultrapassam 119 milhões. E quando se supera o limiar do quarto movimento, as posições possíveis aproximam-se dos 85 bilhões. O matemático Claude Shannon calculou o número de partidas possíveis de xadrez, utilizando apenas jogadas legais, em 10120. Ou seja, um 1 seguido de 123 zeros. Assim: 1.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 de partidas possíveis. Mais que a quantidade de átomos que o Universo tem.
A partida de Bobby, um pobre átomo, começou.
[…]
Toda criança prodígio precisa de um feito, de um marco indelével capaz de suportar o peso da lenda; a viga mestra que atraia trovadores e mitômanos e deslumbre o neófito diante da epopeia compartilhada. Essa encruzilhada chega a Arturito aos doze anos, quando ele se senta de bermuda e enfrenta o russo Alexander Alekhine, então campeão mundial. Dois dias mais tarde, após 71 lances e dois adiamentos numa partida eterna, nada será igual para o Mozart do xadrez espanhol.
Outras Palavras e Selo Manjuba irão sortear um exemplar de O Peão, de Paco Cerdà entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 17/3, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
É verão. Tudo mudou muito rapidamente desde que o NO-DO o mostrou andando de bicicleta e enfrentando mestres. A fama do menino prodígio se espalhou em apenas um ano. Saiu literalmente carregado nos ombros do torneio internacional de Madri, do quarto andar à rua, em meio a um fanatismo e a uma paixão desconhecida neste requintado jogo para minorias. Não se cansa de dar autógrafos para crianças e adultos. Foi escolhido para dar o pontapé inicial em um torneio triangular de futebol. É chamado em todos os cantos do país para partidas simultâneas: o magnetismo de ver uma criança derrubando tantos adultos ao mesmo tempo é enorme, um fascínio que lembra o dos circos. Conquistou o título de campeão das Ilhas Baleares e o cachorro, chamado Alfil, que recebeu de presente, já está latindo. A Delegação Nacional de Esportes, enquadrada na Falange, concedeu-lhe uma bolsa mensal. Mas uma mudança se destaca das demais: seguindo o conselho da Federação Espanhola de Xadrez, toda a sua família deixou Palma e se mudou para Madri para que o menino possa jogar mais e em um nível mais elevado do que na ilha. A nostalgia do Café Born, que dois dias antes de sua partida se despediu dele com uma ovação carinhosa, acompanha Arturito até sua nova casa no bairro operário de Vallecas.
Mas agora é verão e ele encontra os pais em Gijón, no Casino de la Unión. Dos nove enxadristas que disputam o torneio internacional, apenas dois concentram os olhares neste 16 de julho de 1944, dia da terceira rodada.
O menino prodígio enfrenta o campeão mundial. O homem que arrebatou a coroa do lendário Capablanca, que perdeu o título para Max Euwe e depois o recuperou para nunca mais conceder o direito de revanche ao enxadrista cubano. Alekhine é alto, de costas largas e sério. Usa um terno claro e óculos de armação escura que ofuscam um rosto bonito em sua juventude. Aos 51 anos, seu fígado está tão impregnado de álcool que, se o drenassem, daria positivo. O coração e a pressão o mantêm em xeque constante. Poucas pessoas falam bem dele; tem um temperamento azedo, é solitário, obsessivo. Fora isso, leva uma vida novelesca: filho de uma família rica e influente de Moscou cujos bens foram confiscados pela revolução bolchevique; detido pelo regime soviético sob a acusação de espionagem para o exército branco; libertado e exilado na França; antissemita na Alemanha nazista; refugiado na Espanha de Franco; e lutando antes, agora e sempre contra o alcoolismo. Uma vida semelhante às suas composições no tabuleiro: arriscadas, ofensivas e de combinação vertiginosa. Quando Alekhine se senta à mesa de Gijón e olha para Arturito, só lhe restam dois anos antes de morrer, na mais vazia solidão, no quarto 43 de um hotel desértico em Estoril. Morrerá como campeão mundial em posse do título. Mas é mais poderosa, como recordação final de sua figura, a última imagem desse corpo grande, enfiado em um casaco, que enche a poltrona com os olhos fechados de morto e a cabeça sem vida inclinada. É um corpo, inerte como uma peça, junto a um tabuleiro de xadrez.
A partida Alekhine-Pomar se arrasta e várias fileiras de espectadores a acompanham de pé. Alguns concentram sua atenção no tabuleiro. Outros observam com reverência o campeão. Mas a maioria olha para o menino prodígio com um meio sorriso nos lábios e o brilho nos olhos. É o feitiço do mito. Com ousadia e intuição, Arturito resiste aos ataques ousados do campeão mundial e consegue levar o jogo ao empate, que poderia até ter transformado em vitória em duas ocasiões de posição vitoriosa que o menino desperdiçou. É o único meio ponto que Alekhine cede em todo o torneio. Arturito, aos doze anos e com as peças pretas, empatou com o então campeão mundial. Nenhum enxadrista tão jovem havia pontuado antes contra um campeão mundial em uma partida de torneio e com o ritmo de jogo clássico. Setenta e cinco anos depois, ninguém igualou o recorde.
O feito assenta o mito de Arturito na Espanha, que o internacionaliza através dos jornais e revistas, e desencadeia um processo de divinização oficial do menino prodígio: o ícone de um país sem ícones esportivos, a epopeia propagandística de uma sociedade instalada na monótona e medíocre prosa. Logo surge o Clube de Xadrez Arturito Pomar, soa o pasodoble Arturito Pomar, brilha o fallero[2] de honra Arturito Pomar, escreve-se a biografia de Arturito Pomar. Aos poucos vai sendo plantada a semente de uma condenação eterna, uma tragédia pessoal e coletiva, que ninguém além de Julio César Iglesias soube condensar: Arturo Pomar terá que estar à altura de Arturito Pomar. Ou seja, à altura de um menino prodígio.
[…]
39. c5 bxc5
I. O telefone toca. É Henry Kissinger, Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente dos Estados Unidos da América, e está ligando de Washington D.C., capital do império. Aqui o pior enxadrista do mundo para o melhor jogador do mundo, Bobby ouve pelo fone no ouvido. O momento é fischeriano. Depois de uma vida inteira sacrificada no altar do xadrez e atravessada por uma única coordenada — ser campeão mundial —, depois de ganhar o Interzonal e destruir três grandes mestres no caminho para a final, depois de passar sete meses enclausurado em um complexo de treinamento, escondido entre as montanhas do estado de Nova York, para preparar esse combate intelectual com doze horas diárias de estudo, memorizando mais de 14 mil movimentos de Boris Spassky, fortalecendo o físico através de natação, musculação, agachamento, tênis, corda e socos em saco de pancadas, Bobby Fischer decidiu que não. Que não vai a Reykjavik, na Islândia, onde o aguardam há dias seu adversário, um país inteiro e centenas de jornalistas credenciados que assistiram à cerimônia de abertura e ao início da partida do Campeonato Mundial. Ninguém entende nada. O desafiante quer mais dinheiro. Não acha suficiente o prêmio de 125 mil dólares que será distribuído — dois terços para o vencedor e um terço para o perdedor — em um esporte cujo prêmio máximo até a data não excedeu os 12 mil dólares. Fischer quer mais, pede mais. Pensa em Muhammad Ali, se vê como ele e exige mais. In extremis aparece um filantropo britânico, banqueiro enxadrista, que dobra a recompensa: 250 mil dólares. Mas Bobby não sai de Nova York até a ligação de Kissinger, em 3 de julho de 1972, 24 horas antes do término do período de carência concedido pela Federação Internacional de Xadrez antes de desqualificá-lo por não comparecimento. Aqui o pior enxadrista do mundo para o melhor jogador do mundo, começa a voz sombria. Os Estados Unidos querem que você vá e derrote os russos, é o que Kissinger diz segundo a lenda. Soa como uma ordem. Após dez minutos de conversa, Fischer desliga o telefone e anuncia: Decidi que os interesses da minha nação são mais importantes que os meus. O tambor soou. O peão se movimenta.
II. Vocês se olham brevemente, de soslaio. As mãos encaixadas em um aperto fugaz, porque o desafiante chegou atrasado e a abertura branca já está sobre o tabuleiro com o tique-taque do relógio, consumindo segundos, como se algum dia fosse parar. Vocês foram descritos como soldados de exércitos inimigos, sinédoques de um mundo bipolar. No entanto, vocês se olham e talvez se reconheçam um no outro. Você, evacuado de Leningrado num trem ferruginoso e fedorento durante a Segunda Guerra Mundial para acabar num orfanato, numa miséria animalesca e sem rosto, como os manequins suprematistas de Malevich e aquele ar de derrota melancólica que eles exalam; dizem que você é o peão do comunismo, mas você se recusou a entrar no Partido, foi o único russo a cumprimentar os enxadristas tchecoslovacos que usavam uma braçadeira preta após a invasão soviética de seu país, e chegará o dia em que você abandonará o bloco vermelho. E você, você viveu uma infância itinerante e de escassez no pós-guerra na terra do capital; dizem que você é o representante de um mundo livre que não parava de espionar sua mãe por causa de seu passado russo e de seu ativismo, com o FBI coletando dados privados sobre as suas vidas, a vida dos nossos que são os outros. Procuram na política a diferença entre ambos. É um erro. Para entender o oceano que separa vocês, basta uma resposta: O que é o xadrez? Boris Spassky diz: O xadrez é como a vida; Bobby Fischer diz: O xadrez é a vida.
III. George Steiner vaga curioso pelas ruas de Reykjavik, por seu ventoso porto, sob a luz de um sol que nunca se põe no verão. O entusiasmo que o evento de xadrez despertou no editor da revista The New Yorker permite que o professor Steiner viaje à Islândia para cobrir a final. Um prazer intelectual e jornalístico só compreensível com aquelas coordenadas irrepetíveis: Steiner, The New Yorker, 1972; um mundo já extinto e sem algoritmo que o lamenta. O resultado dessa aventura é um livro curto e delicioso: Fields of Force: Fischer and Spassky at Reykjavik. O olhar penetrante e de grande angular do filósofo que lecionou em Princeton, Stanford, Genebra e Cambridge delineia o contorno interno de ambos os oponentes. Para Steiner, Spassky é um cavalheiro de excelentes modos. Sempre tranquilo e calmo. De modéstia escrupulosa e impecável. De grande delicadeza humana. Desapaixonado diante do jogo e propenso a ataques de melancolia ou de passividade introspectiva, algo muito literariamente russo. Acima de tudo, ressalta, falta-lhe o instinto assassino, aquela tensão monomaníaca que faz da vitória algo compulsivo. Fischer, por outro lado, é retratado como um jogador com afã humilhante e uma mentalidade destrutiva em relação ao rival. De genialidade técnica inapelável e vontade irredutível de triunfar. Solitário e mal-educado. Arrogante e rude. Indiferente aos comportamentos sociais habituais e aos sentimentos pessoais. Soberbo e teimoso. Ardente, histriônico, egomaníaco. De baixa maturidade emocional. Com medo do medo. De comportamento oportunista, aberrante, cínico. A meio caminho entre o desagradável e o despótico, capaz de rejeitar treze tipos de cadeiras e oito tipos de tabuleiros e peças para o jogo. Infantil, rude e ganancioso como uma criança. Em seu rastro, o cheiro do dinheiro é mais enjoativo e nauseante que o do peixe. Ambos, Spassky e Fischer, escreve Steiner, vão cativar o mundo inteiro, durante vários meses, com uma atividade esforçada, esotérica, essencialmente trivial, típica de jovens míopes e cheios de acne, de velhinhos mais ou menos cômicos e malucos que brincam nos bancos dos parques.
IV. O jogo começa. Todos se perguntam por que Fischer aceitou aquele peão envenenado na primeira partida da final, cavando assim sua cova quando a investida se encaminhava para o empate. Um inexplicável erro de principiante, para alguns. Uma tentativa contraproducente de desestabilizar Spassky em tempo hábil, sugerem outros. Falta de jeito ou excesso de ousadia, não importa. O fato é que falhou. Bobby põe as mãos sobre a cabeça, horrorizado. Cobre o rosto com os dedos longos, uma foto icônica de Harry Benson, ciente de que perdeu novamente para o único jogador que nunca derrotou. Um a zero. Mas o drama que encarna a épica se contorce no segundo jogo. À mesa estão apenas Spassky e o árbitro, que aciona o relógio de um Fischer ausente. Bobby não apareceu. Havia ameaçado não jogar se não retirassem as câmeras de televisão instaladas no palco porque seu som imperceptível, diz ele, o incomoda. E ele cumpriu a ameaça. Ali está Spassky, sentado, sozinho, esperando por nada e ninguém, olhando para o vazio, o seu vazio, durante os eternos sessenta minutos que a bandeirinha do relógio leva para cair. Dois a zero. O que mais pode acontecer agora? Fischer segue rocado: não vai mais jogar com aquelas câmeras e com aquele som que só ele ouve. Henry Kissinger liga novamente: Você é o nosso homem contra os vermelhos, é o que ele diz segundo a lenda. No último momento, e para que Fischer não pegue um avião de volta aos Estados Unidos, como tantas vezes fez, e encerre abruptamente a Partida do Século, Spassky — que é o campeão, que está vencendo, que não tem por quê, mas a História sempre se esquece desses detalhes — aceita jogar sem público em uma pequena sala localizada atrás do palco e equipada com um circuito interno de televisão. Fischer arrisca, tudo ou nada, com a defesa Benoni, que em hebraico significa filho da tristeza. Um cavalo desenfreado, dois peões dobrados na última coluna, uma partida vertiginosa saboreando o fio da espada, e Fischer vence: é sua primeira vitória em oito partidas disputadas ao longo de sua carreira contra Spassky. Dois a um. Chegou o momento. O jogo ganha vida. O arrogante Bobby-Fischer-sou-o-melhor-jogador-do-mundo começa a demonstrar isso. Alguns empates e um novo triunfo. Empate a dois e meio. A sexta partida é uma obra de arte, um monumento do xadrez: Fischer troca sua abertura clássica por uma abertura inglesa e, pela primeira vez em sua carreira, joga um gambito da dama. Aos poucos, lentamente, jogada a jogada, vai sufocando o russo, que no 41º movimento desiste e faz algo inédito: começa a aplaudir Bobby. O público inteiro aplaude Bobby como se aplaude um violinista ou uma soprano: com admiração e gratidão. Gary Kasparov diz que a submissão com que o soviético perde esta partida ilustra que Fischer e Spassky representam naquele momento diferentes eras do xadrez. Três e meio a dois e meio a favor de Bobby. E é aqui que o campeonato começa a se decidir. Os nervos estão à flor da pele. Os soviéticos suspeitam que Spassky possa estar sendo vítima de emboscadas sombrias da inteligência americana: descargas elétricas no cérebro para desconcentrá-lo, pequenas intoxicações alimentares. A Guerra Fria emerge em seu esplendor macabro. É por isso que os russos exigem a desmontagem completa da cadeira de Fischer para inspecioná-la minuciosamente e realizar uma análise científica da área de jogo: apenas duas moscas mortas — metáfora tétrica — aparecem dentro de uma das lâmpadas que iluminam o palco e, ao que parece, em seguida, voaram para Moscou sob a vigilância de um oficial soviético para serem analisadas. O jogo, apesar de tudo, continua. Empate, Fischer, empate, Fischer. Chega o 11º jogo do melhor de 24 e o estadunidense sai na frente. Seis e meio a três e meio. Spassky envenena Fischer com outro peão e volta a vencer no tabuleiro pela primeira vez desde a partida de abertura, há 26 dias. Seis e meio a quatro e meio. E vai até aí. O soviético não ganha mais nenhuma partida. Oito empates e mais duas vitórias de Fischer fecham o placar da final, com Spassky desistindo no 21º jogo: doze e meio a oito e meio. Fim do campeonato mundial de xadrez: um editorial no The New York Times; apenas um parágrafo no Pravda. Fim do perpétuo domínio soviético. Fim da incapacidade americana sobre o tabuleiro. Fim de uma obsessão doentia. Fim de Bobby Fischer.
[…]
Após nove horas de jogo, a partida de Estocolmo chegou a seu lance final. Começou no sábado, no restaurante Tre Kronor, listras e estrelas, uma pequena águia sinistra. Agora, dois dias depois, no porão sem janelas do Kungshallen, Fischer avança o peão da primeira coluna até a penúltima casa. Pomar reage com um deslocamento lateral do rei. São suas últimas jogadas. Nenhum lado pode desferir o xeque-mate; o equilíbrio parece consolidado. Os dois enxadristas concordam em sair do jogo empatados. Empate contra Fischer com um peão a menos: grande proeza de Pomar.
O encontro termina. Os jogadores se levantam da mesa e Bobby dispensa a Arturo uma frase lendária, mil vezes repetida, andaime que sustenta a face mais trágica do mito Pomar. Uma frase que resume uma partida, um torneio, uma carreira, uma vida: Pobre carteiro espanhol. Do jeito que você joga, terá que voltar a colar selos quando o torneio terminar.
Pobre carteiro espanhol. A frase é de Fischer para Pomar. Mas poderia ser da Casa Branca para Franco, mero emissário do capital, ajoelhado diante de Washington e de suas bases militares em solo espanhol para poder sobreviver com princípios tão diferentes dos do Movimento original.
Pobre carteiro espanhol.
Poderia ser a frase de Franco para cada um de seus inimigos: comunistas, socialistas, maquis, trabalhadores, cristãos de base, republicanos no exílio, estudantes revolucionários, prisioneiros retaliados, democratas-cristãos, mulheres subversivas, membros do ETA, falangistas de linhagem joseantoniana. Peões que, tomados assim, um por um, são como pó, não são nada.
Pobre carteiro espanhol.
Poderia ser, sem a segunda parte, a frase do capitalismo estadunidense para todos aqueles que desafiam os interesses do império do dinheiro como a última e suprema ideologia: afro-americanos combativos, muçulmanos armados, ativistas antinucleares, pacifistas, estudantes universitários rebeldes, povos indígenas, comunistas resistentes, defensores da igualdade. Pessoas minúsculas dispostas ao sacrifício por uma luta coletiva.
Pobres carteiros, pobres peões.
Lentos, pequenos, fracos, insignificantes; tantas vezes manipulados, instrumentalizados. Pobres marionetes do destino que não se entregaram nem se afastaram do caminho, não aguento mais e aqui fico. Todos sabiam que eram peões. Alguns talvez sonhando em ser dama. Mas todos sabendo que um peão nunca é apenas um peão.
NOTAS
[1] Apesar de tanto “rainha” como “dama” serem termos possíveis, optou-se por utilizar o termo mais aceitável do ponto de vista técnico, ou seja, “dama”. Como a anotação do jogo utiliza a letra inicial de cada peça para demarcar os nomes e o rei já começa com a letra “R”, o nome “dama” foi adotado para evitar confusões. [N. E.]
[2] Homenageado das fallas, festa típica em Valência, na Espanha, em que bonecos de papel machê ou madeira representam figuras satíricas que são queimadas em público. [N. t.]
SOBRE O AUTOR
Paco Cerdà (Genovés, Espanha, 1985) é jornalista, editor e escritor. É autor de O peão (Prêmio Cálamo Livro do Ano 2020), Los últimos (2017) e 14 de abril (2022). Fundador da La Caja Books, trabalhou por 10 anos como repórter em Levante EMV e colabora com El País, la Cadena Ser e Cuadernos Hispanoamericanos.
Em parceria com a Selo Manjuba, Outras Palavras irá sortear um exemplar de O Peão, de Paco Cerdà entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 17/3, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
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