Livro: Subvertendo a subalternidade

Em obra da Editora Fósforo, pesquisadora norte-americana faz uma “fábula crítica”, recriando de forma instigante as experiências de jovens negras no pós-escravidão nos EUA – protagonistas de uma revolução comportamental. Sorteamos um exemplar

Retrato de Billie Holiday e seu cão Mister. Por William P. Gottlieb [1947] | Fonte: Library of Congress

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Ao vasculhar o acervo da Biblioteca Pública de Nova York, a pesquisadora Saidiya Hartman se deparou com inúmeros registros de “jovens infratoras” do final do século XIX e início do XX, dentre tantos encontrou um cartão de apreensão de uma adolescente de 14 anos, chamada Eleanora Fagan, detida por prostituição. Eleanora é, na verdade, o nome de nascimento da histórica cantora de jazz conhecida como “Lady Day” ou Billie Holiday.

A pesquisadora tinha um grande objetivo ao resgatar tais arquivos: revelar o mundo visto pelos olhos dessas meninas e mulheres subversivas. O que Hartman levanta é que personagens como Billie Holiday protagonizaram uma verdadeira revolução comportamental em uma época e em lugar profundamente permeados pelo conservadorismo.

O trabalho de Hartman desembocou na obra Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais, lançada no Brasil pela Editora Fósforo.

Outras Palavras e Editora Fósforo irão sortear um exemplar de Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais, de Saidiya Hartman, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 24/3, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

O livro — que garantiu o primeiro lugar no listão dos melhores livros de 2022 da Revista Quatro Cinco Um — revive a trajetória de jovens, famosas e anônimas, nascidas nos cinturões negros da Filadélfia e Nova York que, em meio à misoginia e ao racismo que ditavam os anos de 1890 e 1935 — apenas algumas décadas após a abolição — ousaram buscar seu próprio prazer, seja o sexual, o afetivo ou o intelectual.


“Depois de passar um ano olhando para uma menina de cor posando nua em um velho sofá de crina de cavalo, decidi retraçar seus passos pela cidade e imaginar suas muitas vidas. Seguindo as pegadas dela e de outras jovens negras na cidade, tracei um caminho pelos cinturões negros da Filadélfia e de Nova York, as vizinhanças e quarteirões negros apelidados em homenagem aos seus habitantes, Little Africa e Nigger Heaven, ou, conforme suas aspirações, a Meca e City of Refuge. Desenhei as vias errantes e as linhas de fuga que nas décadas de 1890 a 1935 delimitariam as fronteiras do gueto negro. No fim, isso não se tornou a história de uma única menina, mas uma biografia serial de uma geração, um retrato do coro, um filme da rebeldia.”

– Relato de Hartman


Arquivos de reformatórios, transcrições de julgamentos, relatórios de assistentes sociais, registros de cobradores de aluguel e fotografias são o ponto de partida de seu trabalho.

Recusando a frieza da escrita acadêmica por meio de sua “fábula crítica” — método de escrita criado por Hartman que combina pesquisas históricas com experiências de vida e fantasia — a professora da Universidade Columbia, em Nova York, detalha como corpos dissidentes, que recusaram os scripts sociais, encontravam rotas de fuga não-tradicionais para escapar do controle da norma padrão e conservadora.

Essas mulheres, que a autora chama de “pensadoras radicais” e “modernistas sexuais”, não queriam aceitar a imposição da condição de esposa, dona de casa ou empregada em casas de famílias brancas. Tais personagens inventaram seus próprios modos de vida, experimentaram o amor livre, as relações homossexuais e a maternidade solo (por opção). Repensaram arranjos fora da heteronormatividade quando uma política da respeitabilidade em resposta à fetichização da sexualidade negra era promovida pela mídia ou lideranças negras.

Ao afastar a narrativa que vê a população negra como mera vítima de opressões — como habitações insalubres, trabalhos degradantes e violência sistemática — Hartman propõe uma nova leitura do cotidiano.

Aqui, essas mulheres deixam de ser apenas objetos de uma história cruel e se tornam sujeitos de transformação, capazes de reconfigurar o tecido social com novas formas de resistência e reinvenção da liberdade.

Para Hartman, a conduta dessas mulheres desviantes abriu espaço e foi inspiração para o Renascimento do Harlem, um movimento intelectual e cultural que buscava um revival de toda a produção artística e intelectual de afro-americanos da região.

Ao trazer para o centro da narrativa figuras históricas como Billie Holiday, Paul Laurence Dunbar e W.E.B. Du Bois, a autora cria um rico mosaico onde o desejo de liberdade se mistura com o anseio de prazer, revelando a complexidade de personagens cuja humanidade foi negada pela história. Hartman não apenas resgata essas vozes, mas também as eleva a um novo patamar, fazendo do coro coletivo a verdadeira protagonista deste relato.

A obra então reconfigura nossa compreensão da identidade e do poder de transformação da população negra norte-americana.

Esta é a primeira matéria de uma seleção especial de sorteios do Outros Quinhentos no mês de março. Ao longo deste período, homenagearemos figuras e temas centrais da luta pela emancipação da mulher. Não perca!


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