“Salvar o sistema”, a ideia do governo?

Sem reduzir direitos, Previdência está quebrada, diz o discurso oficial. Mas com duas medidas, ambas em favor dos mais ricos, Estado tirou da Seguridade, em 2018, mais do que pretende “poupar” agora

Por Antonio Martins | Vídeo: Gabriela Leite | Imagem: Harden Deward

Que falta faz, no Brasil, um jornalismo honesto e capaz de fazer as operações matemáticas essenciais. Na última sexta-feira, o governo Temer jogou sua última cartada para aprovar, do modo que for possível, uma contrarreforma da Previdência. Os ganhos esperados pelo sistema financeiro com a mudança são imensos, e as derrotas anteriores do governo foram graves. Por isso, a ofensiva recém-iniciada é bruta. São R$ 99,3 milhões, distribuídos em poucos dias, a jornais, TVs, revistas e sites que enfrentam graves dificuldades financeiras. O dinheiro está surtindo efeito. Quase todos os jornais estampam hoje matérias recheadas de infográficos, muito parecidos entre si. Baseados em supostos “estudos demográficos”, procuram “demonstrar” uma verdade oficial. A Previdência que temos hoje seria “insustentável”; a redução de direitos, “inevitável”; e será ainda mais “dolorosa” se tentarmos ignorá-la. Estas matérias têm a solidez de castelos de areia erguidos para deter um tsunami.

Há poucas semanas, saiu – e foi convenientemente escondido pelos jornais em páginas secundárias, o relatório final da CPI da Previdência. Formada num Congresso arqui-conservador e por isso insuspeita de favorecer a esquerda, ela atesta: “tecnicamente, é possível afirmar com convicção que inexiste deficit da Previdência Social ou da Seguridade Social” (…) “São absolutamente imprecisos, inconsistentes e alarmistas, os argumentos reunidos pelo governo federal sobre a contabilidade da Previdência Social”. O sistema de Seguridade é são. O problema são os desvios de recursos (para pagar juros), a divida gigantesca (R$ 450 bilhões) das grandes empresas, nunca cobrada, as isenções fiscais, o desmonte deliberado da fiscalização.

Mas não é preciso ir tão longe, para constatar a falsidade dos dados apresentados agora pelo governo, para justificar a nova versão da contrarreforma da Previdência, apresentada na última quarta-feira (22/10), pelo deputado Arthur Maia (PPS-BA). Vamos acompanhar os cálculos dos próprios economistas ligados ao mercado financeiro, reproduzidos pelo Valor Econômico dois dias depois. Ao elevar a idade mínima para aposentadoria de homens e mulheres, exigir 40 anos de contribuição para receber o benefício integral e reduzir drasticamente o valor pago aos servidores públicos, o governo “economizará” R$ 500 bilhões em dez anos, ou R$ 50 bilhões anuais. A propaganda oficial e os jornais financiados pelo governo repetem, incessantemente, a suposta justificativa: o ajuste é indispensável para salvar o sistema. Ou se faz isso agora, ou ele quebra.

Será? Dois estudos publicados nos últimos dias revelam o contrário. O mesmo governo que se diz comprometido em salvar a Previdência está trabalhando ativamente em destruir as bases de seu financiamento.

A primeira investigação foi feita por cinco pesquisadores do Departamento de Economia da Unicamp. Eles calcularam o impacto brutal representado, sobre as contas da Previdência, pela Contrarreforma Trabalhista. Além de reduzir drasticamente os direitos sociais, ela tem um efeito colateral. Estimula os empregadores a contratar trabalhadores como se fosse pessoas jurídicas (PJs).

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Resultado: tanto o trabalhador quanto seu patrão deixam de contribuir para o INSS. Na ponta do lápis, os professores da Unicamp chegaram a números chocantes. Cada trabalhador pejotizado representa em média, por ano, menos R$ 3727,06 para a Previdência. Calcule, numa estatística conservadora. Se 10% dos 100 milhões de assalariados brasileiros tornarem-se Pjs, serão, por ano, menos R$ 37,27 bilhões, para o sistema. Escoam por aí quase 75% das economias que o governo diz fazer com a contrarreforma que deveria “salvar a Previdência”.

Examinemos uma outra medida. Ainda em agosto, há pouco mais de dois meses, o governo Temer deu, por decreto, um presente bilionário e bizarro às mega petroleiras estrangeiras. Quando elas comprarem no exterior os equipamentos que poderiam ser adquiridos aqui, terão isenção de impostos. Deixarão, até 2040, de pagar Imposto de Renda e também a Cofins – um tributo que mesmo as pequenas empresas brasileiras recolhem e que serve especificamente para financiar a Previdência. Do ponto de vista moral, é um escândalo. Primeiro, o governo Temer permitiu que as transnacionais explorassem o petróleo, substituindo a Petrobrás. Depois, desobrigou-as de comprar as sondas e os navios aqui. Por fim, deu-lhes privilégios fiscais. Mas qual o impacto econômico do presente? A Abimaq — Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos – calcula: são cerca de 15 bilhões de reais por ano.

Some agora os dois números do rombo produzido nas contas da Previdência. R$ 37,27 bilhões de prejuízo com a Contrarreforma Trabalhista, mais R$ 15 bilhões com a isenção de impostos às petroleiras. Ao todo, R$ 52,27 bilhões por ano. Com apenas duas decisões, duas canetadas, o governo despedirçou mais do que tudo o pretende arrecadar com a falsa “Reforma”.

A lógica das contas é clara. Não há esforço algum em salvar a Previdência. O governo tem pressa máxima na Contrarreforma por outro motivo. Quer criar um novo mercado para os bancos, ao sucatear o INSS e obrigar milhões de brasileiros a recorrer aos seguros privados. Veja os números, claríssimos: o processo já está em curso; em meio à crise mais profunda da história, os fundos de Previdência privada cresceram 19,9% no ano passado.

O drama da Previdência ilustra a encruzilhada brasileira. Com apenas 3% de apoio popular, e atolado em múltiplas denúncias de corrupção, o governo Temer mantém-se apenas por ser o pesadelo do país – mas o sonho do grande poder econômico. Seus atos estão levando a múltiplos impasses. Quando seu governo acabar, haverá duas alternativas. Ou nos submeteremos a sua herança maldita e permitiremos que o golpe, prolongue-se na prática; ou revogaremos as medidas do presidente e do Congresso ilegítimos, por meio de referendos populares.

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