Quem tem medo de Judith Butler?

Pesquisadores/as anunciam em manifesto que, contra o obscurantismo, manterão a produção científica, artística e política: “Ocuparemos cada poro da esfera pública”

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Pesquisadores/as reunidos em SP anunciam em manifesto que, contra o obscurantismo, manterão a produção científica, artística e política: “Ocuparemos cada poro da esfera pública”

Foram poucos dias no Brasil. O bastante para a filósofa Judith Butler sentir na pele o efeito mais nefasto do pânico moral: o ódio encarnado em gritos, agressões, acusações sem nenhum diálogo com o pensamento da filósofa. Algumas iniciativas foram organizadas para impedi-la de falar: abaixo-assinado na internet, manifestações nos locais em que ela fez suas conferências e, por fim, agressões físicas e verbais na hora do seu embarque de volta aos Estados Unidos.

O que a filósofa veio fazer no Brasil?  Falar de democracia, de coabitações pacíficas com/entre as diferenças.   A sua presença no Brasil ainda está reverberando. No dia 8 de dezembro, pesquisadores/as  reuniram-se na Unifesp, em São Paulo, para fazer um ato de desagravo a Judith Butler no encontro “Quem tem medo de Judith Butler? As cruzadas morais contra os direitos humanos no Brasil”.

O evento abriu as “Jornadas Multicampi Unifesp de Direitos Humanos” que terão continuidade em 2018 e têm por objetivo reiterar o potencial de sua obra para diagnosticar e refletir não apenas sobre os citados protestos e agressões, mas também sobre os movimentos atuais contra eventos e exposições envolvendo o que denominam de “ideologia de gênero”. Tais movimentos materializam cruzadas morais cujo verdadeiro alvo são os direitos sexuais e reprodutivos, já que não existe ideologia de gênero, mas sim produção científica, artística e política em favor dos direitos das mulheres, homossexuais, pessoas trans e intersexo, ou seja, de grupos sociais que buscam reconhecimento social e cidadania plena.

Foram duas mesas redondas  de discussões densas sobre ideologia de gênero, Estado e violência, religião e resistência.  Ao final foi lido o seguinte manifesto (Berenice Bento)

Liberdade de Pensamento para uma

Democracia sem Medo das Diferenças

[leia aqui a versão em ingês do manifesto]

O ano de 2017 está chegando ao fim. E este não foi um ano qualquer. O pânico moral construído em torno da categoria gênero desdobrou-se em perseguições a professores/as de núcleos de pesquisa, mas já ultrapassou, e muito, o âmbito acadêmico. O judiciário foi acionado para conceder uma liminar autorizando psicólogos a implementar terapêuticas para “curar homossexuais”. A exposição do Queermuseu foi proscrita e seu curador levado a prestar depoimento em uma CPI, a princípio sob condução coercitiva, posteriormente cancelada graças à pressão da sociedade civil. Uma Proposta de Emenda Constitucional que tratava da ampliação da licença-maternidade foi deturpada para incluir um dispositivo que, na prática, proíbe o aborto até em casos de estupro.

Nós, professores/as participantes do seminário “Quem tem medo de Judith Butler: As cruzadas morais contra os direitos humanos” denunciamos a instrumentalização dos estudos de gênero, de grupos vulneráveis e seus direitos sexuais e reprodutivos para fins políticos e eleitorais. Na democracia, devemos encarar com naturalidade que esses temas sejam amplamente discutidos. O que identificamos, porém, é a manipulação brutal de categorias e conceitos que, ao invés de orientar nossos debates e políticas públicas, transformaram-se em alvos de ataques sem sentido. A perseguição sofrida por Judith Butler no Brasil talvez seja o melhor exemplo dessa insensatez.

As eleições se aproximam. Sabemos da importância deste momento. No entanto, não acreditamos que a democracia representativa esgote os sentidos necessários de uma sociedade democrática. Ampliar o debate sobre justiça social e direitos humanos não pode se restringir ao momento da eleição.

A universidade pública deve cumprir com sua missão de ser um espaço do pensamento para transformação social. Para nós, a liberdade de pensamento é a condição fundante da vida pública, e alma da democracia. Não há, para nós, um momento especial para se viver a democracia. Ela é uma experiência cotidiana.

A suposta excepcionalidade de um momento (o voto) não diz o quão democrática é uma sociedade. Esta excepcionalidade revela, ao contrário, a amputação de um valor: democracia sem pensamento engajado no mundo não existe.

Seguiremos fazendo do ato de pensar, um coletivo: juntos/as. Ocuparemos cada poro da esfera pública em seminários, palestras, manifestações, ocupações, jornadas, manifestações.

Sem medo.

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Um comentario para "Quem tem medo de Judith Butler?"

  1. Adriano Picarelli disse:

    “A universidade pública deve cumprir com sua missão de ser um espaço do pensamento para transformação social. Para nós, a liberdade de pensamento é a condição fundante da vida pública, e alma da democracia. Não há, para nós, um momento especial para se viver a democracia. Ela é uma experiência cotidiana.”
    Que bom ler isso!
    “[…] A democracia não é nem a forma e governo que permite à oligarquia reinar em nome do povo nem a forma de sociedade regulada pelo poder da mercadoria. Ela é ação que arranca continuamente dos governos oligárquicos o monopólio da vida pública e da riqueza a onipotência sobre a vida. […]
    “[…]
    “[…] A sociedade igual é somente o conjunto das relações igualitárias que se traçam aqui e agora por meio de atos singulares e precários. A democracia está nua em sua relação com o poder da riqueza, assim como com o poder da filiação que hoje vem auxiliá-lo ou desafiá-lo. Ela não se fundamenta em nenhuma natureza das coisas e não é garantida por nenhuma forma institucional. Não é trazida por nenhuma necessidade histórica e não traz nenhuma. Está entregue apenas à constância de seus próprios atos. A coisa tem por que suscitar medo e, portanto, ódio, entre os que estão acostumados a exercer o magistério do pensamento. Mas, entre os que sabem partilhar com qualquer um o poder igual da inteligência, pode suscitar, ao contrário, coragem e, portanto, felicidade.”
    Jacques Rancière, O ódio à democracia, Boitempo, 2014, pp. 121-122.

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