Internet e as ambíguas mutações do trabalho sexual

Num setor marcado pela precariedade, plataformas oferecem a trabalhadorxs do sexo maior grau de formalidade e até de proteção. Porém, sujeitam-nxs às pressões, precariedade e captura de dados, como em outras categorias

Imagem: Ariel Davis
.

Por Lorena Caminhas no DigiLabour

Os mercados de sexo e erotismo são partes constitutivas do digital (Garcia, 2021). Eles são responsáveis por direcionar e impulsionar inovações tecnológicas e modos de uso da web, sendo atores históricos da formação das redes desde seus primórdios (Sanders et al., 2018). Na realidade, a relação entre meios de comunicação e sexo e erotismo comercial é bem mais antiga. Viemos presenciando uma paulatina e crescente midiatização dos mercados erótico-sexuais desde o advento de mídias impressas e o consequente surgimento da pornografia moderna (Caminhas, 2022; Kendrick, 1995). A midiatização proporciona uma expansão geográfica e espacial desses mercados, além de permitir o surgimento de novos produtos e serviços a serem ofertados por meio das tecnologias de comunicação. Contemporaneamente, é a ampla presença de plataformas digitais como intermediárias das trocas comerciais de sexo e erotismo que tem chamado a atenção. No Brasil, os mercados de sexo e erotismo digitais vêm crescendo (como atestam os trabalhos de Silva, 2014; Parreiras, 2015; e os meus próprios estudos), sendo cada vez mais dominados por plataformas e seus modelos de gestão comercial e laboral.

As sex techs brasileiras

Desde a chegada e ascensão do altporn no Brasil, acompanhamos o surgimento de sex techs nacionais (para detalhes, ver Parreiras, 2015). No entanto, é somente com o desenvolvimento das plataformas para sexo e erotismo que as sex techs brasileiras se consolidam, tornando-se infraestruturas técnicas e comerciais para mercados erótico-sexuais. Em 2010 é inaugurada a primeira plataforma do gênero no país, a Câmera Hot, e em 2013 uma segunda plataforma desponta, a Câmera Privê. Ambas são voltadas ao webcamming, uma modalidade de transmissão ao vivo de práticas eróticas e sexuais via webcam. E em 2021, aparece a primeira plataforma nacional para comércio de conteúdo erótico por assinatura, a Privacy.

Plataformas brasileiras de camming e conteúdo por assinatura são uma adaptação de negócios internacionais para o mercado doméstico, voltadas para trabalhadores e audiência local. Essas plataformas diferem em termos dos serviços e modelos de negócio que trazem para os mercados de sexo e erotismo. Entretanto, vale salientar que elas se embasam na lógica da concentração e monopolização dos mercados (baseado na máxima de “o vencedor leva tudo”) e nos efeitos de rede que criam, dependendo diretamente de mídias sociais para serem alimentadas. As plataformas de webcamming apostam na homogeneização dos serviços e valores, definindo os chats que podem ser utilizados por performers e usuários e seus respectivos preços por minuto. Ainda que recentemente uma das plataformas tenha permitido que performers decidam os valores de seus chats, os preços são definidos a partir de um mínimo estabelecido pela própria plataforma. A homogeneização se relaciona com as perspectivas de lucro das empresas, já que elas recebem por venda realizada em suas infraestruturas. No Brasil, as plataformas de camming retêm 50% dos lucros dos performers. Ademais, essa estratégia de negócio diz do ímpeto por controlar e centralizar o comércio de sexo e erotismo, tornando as plataformas os espaços primordiais de troca entre oferta e procura, garantindo sua própria rentabilidade e sobrevivência. Ao contrário, plataformas de conteúdo por assinatura promovem um espaço em que criadores eróticos são apoiados por sua audiência, que pagam pelo acesso às suas páginas por mês, por trimestre, por semestre ou por ano. Trata-se de um financiamento que é dado aos criadores para que eles possam continuar produzindo e alimentando seus perfis. É possível consumir conteúdo individual nessas plataformas, sobretudo em contas gratuitas; entretanto, esse consumo costuma ser menos vantajoso que as assinaturas. A plataforma brasileira para conteúdo deixa criadores livres para definirem suas produções (desde que sigam as diretrizes nos termos de uso) e os valores cobrados pelas assinaturas, e retém 20% das vendas como taxa de manutenção. Plataformas de assinatura de conteúdo apostam no aumento do número de criadores com a abertura dos mercados erótico-sexuais e, consequentemente, na ampliação do fluxo de compradores, tornando-se lucrativas devido à quantidade de pessoas circulando em suas infraestruturas. Elas costumam se basear ainda mais em mídias sociais e no potencial de seguidores dos criadores para se estabelecerem. Assim, elas se assumem como infraestruturas agregadoras, que permitem aos criadores convocarem sua audiência para um espaço em que podem monetizar conteúdo proibido em outros espaços online.

Apesar das distinções nos modelos de negócios, os impactos das diferentes plataformas no trabalho sexual são idênticos. Em primeiro lugar, elas tornam o trabalho sexual mais híbrido, posicionado entre a produção industrial e a fabricação artesanal. Isto é, a autonomia e independência que são marcas desse trabalho se concatenam a elementos industriais que são acionados por trabalhadores para avançarem uma carreira no sexo e erotismo digital. Rand (2019) chama a atenção para a ascensão de “empreendedores sexuais”, que além de gerenciarem o trabalho e as rotinas laborais são impelidos a estabelecerem uma marca própria e elaborar “empresas individuais” para atuarem nos mercados de sexo por plataformas. Nesse ponto vale assinalar que muitos performers e criadores de conteúdo se tornam microempreendedores individuais e pessoas jurídicas e têm contas comerciais para administrarem seus próprios negócios. Trabalhadores passam a ser mais dependentes da marca pessoal a ser divulgada em mídias sociais para aumentarem seus potenciais de venda. Assim, eles vão criando seus nichos de mercado, que vão movimentando as plataformas. Em segundo lugar, trabalhadores sexuais assumem o comando de várias fases do processo produtivo do sexo e erotismo comercial, conduzindo e organizando a criação, a distribuição, a publicidade e a venda de serviços e conteúdo. Por fim, as plataformas promovem uma atomização e compartimentalização do trabalho sexual, transformando-o em pequenas e sucessivas tarefas e atividades a serem realizadas, direcionadas por um público consumidor disperso, contingente e flutuante – aproximando este trabalho dos crowd works (Schimdt, 2017). Esses impactos aumentam consideravelmente o tempo de trabalho, uma vez que trabalhadores são pressionados a produzir constantemente e a gerenciar diversos processos simultaneamente e a se engajar contínua e efetivamente nas plataformas e em mídias sociais para ter lucro e sucesso nos mercados erótico-sexuais digitais.

Dataficação do trabalho sexual

Plataformas brasileiras coletam e processam dados de trabalhadores sexuais para gerarem suas métricas e organizarem as interfaces (Keilty, 2017) de suas infraestruturas. As métricas promovem a competição dentro das plataformas (van Doorn; Velthuis, 2018) e entre trabalhadores sexuais, e também atuam nos rankings que definem a visibilidade e a invisibilidade dentro das interfaces. As sex techs do camming baseiam as métricas de trabalhadores na quantidade de avaliação que eles recebem, o número de seguidores e curtidas, além do número de conteúdos e performances comercializados. Em suma, as métricas são tanto baseadas na popularidade quanto no potencial de venda, produzindo e disponibilizando dados sobre o desempenho de performers – dados esses que ficam visíveis à audiência. Os dados das métricas informam a organização da interface e o posicionamento das miniaturas de performers na homepage, sendo que melhores métricas tendem a angariar mais visibilidade. Inclusive a divisão das abas por gênero que é o muito comum nas plataformas brasileiras de camming refletem a ordem de performers que costumam conquistar melhores métricas. Assim, a dataficação é também perpassada por marcadores sociais, dentre os quais o gênero é o mais proeminente.

As plataformas de conteúdo por assinatura também promovem dataficação de criadores. Métricas como Top X% Privacy são acionadas para medir o desempenho de criadores em termos de assinantes e vendas durante o mês e posicioná-los dentro de uma determinada categoria na produção de conteúdo. O estímulo à competição também é visível nessa métrica, que impele criadores a se esforçarem para atingir melhores porcentagens e terem mais assinaturas, subindo de categoria. Adicionalmente, essa métrica atua na verificação de criadores (só são verificados criadores com um desempenho mínimo determinado pela plataforma) e nas sugestões de perfis mais relevantes (que são majoritariamente contas verificadas). O número de posts, fotos, vídeos e curtidas de cada criador também serve como um mecanismo de monitoramento sobre os usos e a assiduidade na plataforma, além do potencial de engajamento e de assinaturas. Por fim, vale salientar que em plataformas para camming e conteúdo por assinatura, a dataficação se constitui como uma nova modalidade de produção de informação sobre o trabalho sexual, produzindo novas tensões e pressão em trabalhadores para acompanharem e melhorarem seus números e suas chances de sucesso no sexo e erotismo comercial digital.

Rumo a uma precarização crescente?

É lugar comum a ideia de que as plataformas são atores de aprofundamento da precarização das relações de trabalho, promovendo ambientes laborais degradados e inseguros. No Brasil, expressões como “uberização” ganham espaço ao demonstrar esse movimento crescente de precariedade produzido pelas plataformas. Ainda que essa ideia tenha apelo quando pensamos em atividades que outrora tiveram algum grau de formalização, ela é menos potente quando olhamos para labores historicamente informais, precários e até mesmo marginais, que estão nas escalas mais baixas da divisão moral do trabalho. Nesse segundo caso, vetores de pressão e precarização se conjugam a vetores de autonomia e salvaguarda, incluindo vetores de maior formalização. Em relação ao comércio de sexo e erotismo em plataformas, a ambiguidade entre esses diferentes vetores é bastante clara. Junto ao aumento do tempo e do esforço no trabalho há certa independência para controlar diferentes fases do processo produtivo desses mercados que antes ficavam concentrados nas mãos de diferentes empresas. Junto aos constrangimentos impostos pela dataficação há aumento da segurança para exercer o trabalho sexual e a regularização desse labor por meio de termos e contratos de prestação de serviço. Podemos pensar, inclusive, em como as plataformas aumentaram a visibilidade social do trabalho sexual, sobretudo após a entrada de empresas tipo OnlyFans nos mercados de sexo e erotismo digitais, promovendo um ampliado debate sobre a configuração do trabalho na venda de sexo e erotismo online. Certamente, os benefícios aqui pontuados estão alinhados às pretensões de rentabilidade das plataformas, mas também com os anseios de maior autonomia e liberdade de trabalhadores sexuais. Em um cenário de crescente plataformização dos mercados erótico-sexuais, para além de apenas enfocar as novas precariedades, é essencial pontuar as mudanças que tornam o trabalho sexual digital mais seguro, mais regulado, mais autônomo, tornando-o uma opção viável, rentável e atraente para milhares de trabalhadores.

Referências

Caminhas, Lorena. 2022. ‘Erotic Experience: Technology-Mediated Sex Markets’. In. K. Kopecka-Piech and M. Sobiech, Mediatisation of Emotional Life. London and New York: Routledge.

Garcia, Gabriella. 2021. ‘The Cybernetic Sex Worker’ (Blog Post). Retrieved from https://decodingstigma.substack.com/p/cybernetic-sex-worker?s=r

Keilty, Patrick. 2017. ‘Carnal Indexing’. Knowledge Organization 44(4): 265-272.

Kendrick, Walter. 1995. El Museo Secreto: la Pornografía en la Cultura Moderna. Colombia: Tercer Mundo.

Parreiras, Carolina. 2015. ‘Altporn, Corpos, Categorias, Espaços e Redes: Um Estudo Etnográfico sobre Pornografia Online’. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas.

Rand, H. 2019. ‘Challenging the Invisibility of Sex Work in Digital Labour Politics’. Feminist Review, (123): 40-55. https://doi.org/10.1177%2F0141778919879749

Sanders, Teela et al. 2018. Internet Sex Work: Beyond the Gaze. London: Palgrave McMillian.

Schmidt, Florian. 2017. Digital Labour Markets in the Platform Economy. Mapping the Political Challenges of Crowd Work and Gig Work. Berlin, GER: Friedrich-Ebert-Stiftung. https://library.fes.de/pdf-files/wiso/13164.pdf

Silva, Weslei. 2014. ‘O Sexo Incorporado na Web: Cenas e Práticas de Mulheres Strippers’. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Van Doorn, Niels, and Olav Velthuis. (2018). ‘A Good Hustle: The Moral Economy of Market Competition in Adult Webcam Modeling’. Journal of Cultural Economy 11(3): 177-192. https://doi.org/10.1080/17530350.2018.1446183

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *