Lula e a inegociável proteção da Amazônia

Alianças ao centro e à direita, necessárias para vencer Bolsonaro, cobrarão seu preço. Mas não há concessão possível no combate às facções criminosas do garimpo e do gado que devastam o bioma – e ameaçam índios, reservas e clima de todo o país

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Nesta campanha eleitoral o ex-presidente Lula está sendo forçado a compor com forças de centro-direita e de direita para garantir a derrota de Bolsonaro e evitar o que este já prometeu, uma tentativa de golpe contra a democracia. Esta circunstância compromete aquilo que o futuro presidente poderá fazer ao longo dos quatro anos de seu governo. As forças de esquerda têm que levar em conta esta estratégia inevitável, mas existem questões vitais para o futuro do país que não podem ser negociadas.

Entre as muitas questões que devem ser enfrentadas está a crise ambiental provocada pela destruição acelerada de todos os biomas que compõem o nosso país. E o caso mais grave em suas consequências, para nós e para o mundo, é o da destruição da floresta amazônica.

A contribuição do Brasil para o aquecimento global se dá, sobretudo, pelo desflorestamento. O IPCC, em recente estudo onde são apontados os países que mais emitiram gases de efeito estufa (GEE) desde a revolução industrial em meados do século XIX, indicou que o Brasil é o quarto maior emissor de GEE, depois dos Estados Unidos, a China e a Rússia, sendo o quinto colocado a Indonésia. O mesmo estudo demonstra que os três primeiros colocados emitiram, sobretudo, GEE oriundos da queima de combustíveis fósseis, enquanto os dois últimos o fizeram pelo desflorestamento.

Nos últimos 30 anos 55% da nossa contribuição para o aquecimento global veio do desflorestamento e queimadas e 25% da agropecuária. O Brasil detém o triste recorde mundial de desmatamentos durante o referido período. E na última década as áreas desmatadas anualmente dobraram. Na Amazônia o aumento foi de 50% enquanto em outros biomas (Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica) os aumentos também cresceram aceleradamente.

O desmatamento na Amazônia tem origem, principalmente, na expansão da pecuária e isto tem um segundo impacto, já que esta atividade representa 61% das contribuições do setor agropecuário brasileiro para a emissão de GEE.

As emissões de GEE no Brasil vêm aumentando em ritmo mais acelerado do que no resto do mundo, 9,5% contra 6,7% em 2020. Desde o golpe de 2016 os índices de desmatamento vêm subindo ano após ano, com maiores valores desde a posse de Bolsonaro. O presidente adotou uma política de desmontar os mecanismos de controle tanto da retirada de madeira como dos desmatamentos e queimadas. Ao facilitar as queimadas o governo do energúmeno tem efeito duplo sobre o aquecimento global: diminui o efeito de retenção de carbono pela floresta em pé e emite milhões de toneladas de carbono pelo fogo.

O Brasil já perdeu 17% do total das áreas florestadas da Amazônia, 50% do Cerrado, 93% da Mata Atlântica e 50% da Caatinga. No caso da Amazônia, estamos próximos do que os cientistas chamam de “point of no return” ou ponto de virada, a partir do qual a floresta que resta perde a capacidade de regeneração natural. Este ponto corresponde a 20% da floresta amazônica, e no ritmo em que Bolsonaro está facilitando este processo o ponto de não retorno chegará em mais 4 ou 5 anos. Alguns cientistas consideram que este ponto já foi alcançado em várias partes desmatadas da Amazônia.

O resultado deste desmatameno será catastrófico. A grande floresta úmida tropical vai se converter em uma imensa savana seca, de tipo arbustivo, imprópria para a agricultura e muito limitada para a pecuária. Por outro lado, o efeito climático vai ser ainda mais grave pois os chamados “rios voadores”, umidade gerada pela floresta e que os ventos distribuem para o centro oeste, sudeste e sul do país, deverão desaparecer. Este efeito já está se fazendo sentir com a grande irregularidade das precipitações que vem ocorrendo nos últimos anos.

O efeito dos desmatamentos na Caatinga já se faz sentir através da expansão das áreas desertificadas neste bioma: 13% da área da Caatinga já está em processo avançado de ressecamento e totalmente inviável para qualquer atividade produtiva agropecuária.

No Cerrado, onde 50% da área florestada ardeu nos últimos dois anos, já são milhões de hectares de solos degradados produzidos pelas queimadas e pela agricultura e abandonados pelos produtores.

Estes dados podem ser expandidos para incluir vários outros também apavorantes e este conjunto indica que estamos vivenciando uma catástrofe ambiental de proporções gigantescas que nos afetam muito, mas que também tem impactos para o resto do mundo. E o resto do mundo está de olho no que se passa aqui.

O outro fator de destruição da Amazônia é menos visível e muito insidioso. Trata-se do garimpo legal e, sobretudo, do ilegal. O garimpo é cada vez menos uma atividade de indivíduos pobres “faiscando” ouro com bateias e outros instrumentos manuais. Hoje são grandes empreendimentos usando máquinas pesadas e imensas balsas processando toneladas de terra e cascalho para extrair uns poucos gramas de cada vez. Além da descarga maciça de sedimentos nos rios amazônicos, os garimpos despejaram 100 toneladas de mercúrio e contaminaram várias bacias, envenenando peixes, ribeirinhos e indígenas só nos últimos dois anos. Para dar exemplos de casos mais escandalosos, registrou-se uma expansão de 500% na área dos garimpos em terras indígenas e 300% nas unidades de conservação.

Calcula-se que entre 300 e 350 mil pessoas trabalhem em empreendimentos de garimpagem, quase todos assalariados de empresas ilegais, que às vezes se apresentam como cooperativas, 200 delas fantasmas. Estima-se que 68% da extração de ouro na Amazônia seja ilegal e suspeita-se de uma participação crescente do Comando Vermelho e do Primeiro Comando da Capital neste negócio, ideal para lavagem do dinheiro do tráfico. Entre os anos de 2019 e 2020, 49 toneladas de ouro foram extraídas ilegalmente, movimentando perto de R$ 50 bilhões.

Tanto madeireiros como grileiros e garimpeiros estão cada dia mais ousados, desde que Bolsonaro e seus ministros do Meio Ambiente “passaram a boiada”, facilitando a impunidade e prometendo a legalização de todas estas atividades ilegais. Organizados em verdadeiras quadrilhas, eles intimidam o pouco de atividade de controle que os esvaziados órgãos públicos como IBAMA e ICMbio e até a Polícia Federal ainda mantiveram. Estes grupos adotaram ações de tipo terrorista, chegando a incendiar helicópteros do IBAMA e prometem reagir a bala a qualquer interferência nas suas atividades. Somos forçados a constatar que grandes áreas da Amazônia estão fora do controle do Estado, dominadas pelos mandantes de poderosas quadrilhas e que contam com a cumplicidade de vereadores, prefeitos, polícias e até juízes e governadores.

Este descalabro tem que ser eliminado e isto é urgente, tanto para o destino do Brasil como o do mundo. Isto não pode ser objeto de negociação do candidato Lula nem de omissão do presidente Lula. Parece óbvio? Mas não é.

Uma das razões apresentadas para a inclusão de Alkmin como candidato à vice-presidente na chapa de Lula é o fato de que tem boas relações com o setor do agronegócio. Lula e Dilma governaram fazendo concessões tão grandes ou maiores do que seus predecessores para os senhores do agronegócio. Isto apesar de eles nunca terem sido nada menos do que ferozes oponentes dos governos do PT. E igualmente ferozes apoiadores do energúmeno.

É óbvio que nem todos os empresários do agronegócio são golpistas, nem todos ameaçam o meio ambiente como os grileiros, madeireiros e garimpeiros da Amazônia; nem todos são totalmente inconscientes da destruição de solos e biodiversidade provocada pelo uso de adubos químicos e agrotóxicos. Mas é mínima a parcela que tem, pelo menos, consciência dos riscos da nossa hecatombe ambiental para as exportações de carne ou de soja, sob ameaça dos importadores do primeiro mundo. Estes representantes do agronegócio “moderno” não estão na Amazônia e, no mais das vezes, sequer no setor de produção primária, mas nas empresas de transformação de produtos agropecuários. Mas existe uma solidariedade de classe muito forte entre todos eles. Frente às ameaças de importadores que não querem carne brasileira oriunda de áreas desmatadas na Amazônia, os grandes frigoríficos estão dirigindo a carne de gado criado neste bioma para o mercado interno e certificando as exportações de carne com gado oriundo de outras áreas. Isto pode não enganar os importadores do primeiro mundo por muito tempo pois a pressão dos consumidores é enorme, mas pelo menos por hora está dando certo.

O peso do agronegócio nas exportações brasileiras é grande demais para que Lula os ignore uma vez no governo, mas o esforço para domar o lado mais selvagem deste bando, aquele instalado na Amazônia, não pode ser evitado. O perigo para muitos aspectos do meio ambiente regional e nacional e para a perigosa aceleração do aquecimento global é demasiadamente importante para dar margem a concessões.

Lula vai ter que enfrentar um enorme problema para controlar este descalabro. Não só vai ser preciso isolar este grupo do resto dos empresários do agronegócio como vai ser preciso tratar de separar os empresários ilegais, inclusive os vinculados à bandidagem do tráfico, da base de trabalhadores que vivem deste emprego. Se de fato eles forem 300 ou 350 mil o problema social vai ser enorme. E se este problema social não for enfrentado este contingente vai ser massa de manobra política e até de combate armado contra o Estado. Tudo isto com a Polícia Federal e as Forças Armadas influenciadas pelo bolsonarismo. Um problema e tanto, mas que vai ter que ser enfrentado.

As metas fundamentais a serem adotadas são as do desmatamento zero e da mineração zero. Nada menos do que isso terá significação. Para isso vai ser preciso restabelecer a capacidade de intervenção do IBAMA, ICMBio e Polícia Federal e mobilizar as Forças Armadas como apoio às operações de controle do Estado.

Por outro lado, o esforço de reflorestamento ativo (e não só o pousio das áreas desmatadas para regeneração natural) vai ser outra necessidade imperiosa para restabelecer os equilíbrios ambientais perturbados por décadas de destruição. Talvez seja uma das possibilidades de solução para as centenas de milhares de trabalhadores empregados nos garimpos, desmatamentos e grilagem que vão ter que encontrar outro modo de sobrevivência.

O lado bom desta empreitada é que ela será entusiasticamente financiada pelo primeiro mundo e Lula pode contar com todo o seu prestígio internacional para mobilizar tal suporte.

Podemos adiar as muitas medidas necessárias para eliminar os impactos negativos do agronegócio implantado em outras áreas, mas o caso da Amazônia é o mais dramático e tem que fazer parte do programa prioritário do governo Lula. Lembremos que o mundo já atingiu um aumento da temperatura média, em comparação com os meados do século XIX, de 1,5º C e, mantidas as tendencias atuais chegaremos ao perigosíssimo aumento de 2º C até o fim da década. Não há tempo a perder.

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