Como descolonizar o desenvolvimento sustentável 

Em encontro na Itália, sociedade civil propõe outro consenso ambiental, livre das lógicas neoliberais. Entre as ações, está a taxação dos fluxos globais de capital e de produtos nocivos à saúde, redirecionado recursos aos países mais atingidos

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Acaba de se reunir nas montanhas da Umbria, Itália, no arredores de Assis, o Grupo da Sociedade Civil Global para o Financiamento do Desenvolvimento Sustentável. Este é o grupo que constitui o mecanismo de interação na pauta multilateral voltada às questões da arquitetura financeira internacional, o que quer dizer que ele monitora e dialoga com a ONU e as instituições Bretton Woods (FMI e Banco Mundial) na tentativa de influenciar a formulação de diretrizes políticas voltadas à democracia econômica. A Gestos, organização não governamental do Recife, co-facilitadora do GT da sociedade civil para a Agenda 2030, atua no processo desde 2014, antes do início da negociação para a III Conferência Internacional do Financiamento para o Desenvolvimento, contribuindo com posicionamento estratégico e político a partir da perspectiva feminista do Sul Global. O resultado desse encontro foi a consolidação de uma estratégia para enfrentar a continuidade do Consenso de Washington como pensamento e ação hegemônica na governamentalidade (modus operandi do ato de governar) mundial, que tem há muito consolidado e camuflado um novo estágio neocolonial na geopolítica que inclui endividamento exagerado do Estado e contínua austeridade fiscal.

Para colocar em contexto o trabalho que está sendo desenvolvido, vale a pena resgatar a história do processo. O ciclo de conferências internacionais do financiamento para o desenvolvimento, iniciado em 2002, em Monterrey, México, sob o impulso de países em desenvolvimento para tentar resolver suas recorrentes crises de insolvência financeira e aumento substancial de dívida soberana, tem sido o espaço de normatização de uma possível reforma na arquitetura financeira internacional. Mas os desafios que se constituíam então, tornaram-se ainda mais fortes diante do recrudescimento da expressão de um poder econômico cada vez mais despudorado e sem regulação efetiva em sua perspectiva global, mesmo após tantas promessas e reformulações feitas nas crises de 2008 e 2020.

Sob os auspícios do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (Ecosoc-ONU), o processo de financiamento para o desenvolvimento sustentável, inaugurado na terceira conferência, em Adis Abeba, 2015, em preparação para definir os meios de implementação da Agenda 2030 do desenvolvimento sustentável e seus 17 objetivos, acabou sendo distorcido pela hegemonia do discurso liberal, que desassocia sua narrativa da realidade objetiva dos fatos, mas influencia a formulação de políticas por já ser consensuado entre corpos técnicos e políticos dos diversos países. A implementação efetiva das agendas de mitigação dos efeitos negativos do crescimento econômico industrial linear e poluidor, principal causa da emergência climática, esta que compromete seriamente a sobrevivência da humanidade no planeta em um futuro não tão distante quanto se imagina, está seriamente comprometida, com evidências de retrocessos, como no Brasil. Como se diz, “sigas o dinheiro e encontrarás a verdade”, e o capital continua alimentando o problema.

Governos, empresas e a população em geral tratam a emergência climática como um evento no futuro, mesmo com todos os sinais de que os efeitos crescentes já são sentidos e amplificados no presente. Nem sequer os mercados de capital e a indústria de seguros conseguiram contabilizar o potencial transformador e devastador das consequências das radicais mudanças geofísicas causadas pela atividade humana incontida, impulsionada pelo consumismo e a conveniência, dois elementos-chave da vida hedonista contemporânea, e continuam operando como se tais efeitos pudessem ser revertidos por algum evento tecnológico salvador. O mito do progresso por si e em si que caracteriza a aposta cega de um certo consentimento ao positivismo tecnocrático, o mesmo que tem determinado a berlinda da existência humana no planeta, ainda se ancora na hegemonia que tem nas operações do Estado e no comando incontido das ações dos governos no apoio incondicional ao fluxo do capital expropriador, devastador e extremamente concentrado das corporações transnacionais e dos bancos de investimentos “grandes demais para quebrar”, principais agentes nos movimentos dos mercados globais e setores econômicos, que estrangulam políticas públicas de países em desenvolvimento num ciclo de endividamento e austeridade condicionante. Conclui-se então que ao invés de financiamento para o desenvolvimento, temos uma arquitetura de financiamento para a dependência baseada em endividamento e compromisso com privilégios.

Da mesma forma, sem consideração adequada, governos, instituições públicas e privadas também tratam a eterna emergência e persistência da pobreza e da fome crônica com uma naturalidade estagnante, sem perceber a oportunidade emergente de sua resolução, tecnicamente alcançável mas politicamente ignorada, exceto pelo seu poder populista de voto. Esta oportunidade tampouco é tocada por toda a cadeia de financiamento privado, focada que está no retorno de curto prazo no mercado de capitais, mesmo em momentos adversos, como o atua, ao invés de encarar os riscos inerentes do sistema, algo que tanto e arduamente defende, sem contudo praticar o que advoga.

O futuro chegou desde ontem

A confluência de diversas crises inverteu a situação financeira global e nacional que há apenas cinco anos atrás mantinha-se num novo normal de baixo crescimento e juros baixos. Uma pandemia enfrentada sem planejamento adequado e efusiva contestação em diversos países, literalmente e literariamente deixou, e ainda deixa, à míngua milhões de seres humanos a padecer por um dos quatro cavaleiros do Apocalipse, por falta de acordo sobre a suspensão de patentes de valor humanitário. Um outro, o da guerra, cavalga a passos largos no sacrifício coletivo que ocorre na Ucrânia, no Iêmen, na Síria, na Palestina ou nas favelas do Rio de Janeiro, onde o poder despudoradamente militar obriga o outro a se submeter sob o peso da violência.

Mas, após tamanho diagnóstico, deixemos, pelo menos por um segundo, a geopolítica em suspenso e reflitamos sobre a situação propriamente econômica do financiamento para o desenvolvimento, mesmo que a imprensa do mundo insista em cobri-la apenas como fenômeno financeiro de curto prazo. 

Segundo o FMI, quarenta e um (41) países menos desenvolvidos estão em alto risco de decretar moratória em suas dívidas soberanas. Desses, nove entraram este ano com pedido de suspensão de pagamento de suas obrigações de acordo com a Iniciativa de Suspensão de Serviços de Dívida (DSSI, em inglês) proposta no âmbito do G20 no início da pandemia de covid-19. Ao mesmo tempo, há um movimento global de aceleração no endividamento privado, tanto de empresas quanto das pessoas, criando um contexto de vulnerabilidade social no curto prazo, que aliado ao medo da inflação e as reações em conjunto dos bancos centrais no aumento da taxa básica de juros das economias, apontam para uma recessão iminente. No caso do Brasil, que ainda amarga a estagnação secular pós-ressaca recessiva de 2016, é um salto da panela quente direto para o fogo, mesmo com a volta de uma possível normalidade institucional com a instalação do novo governo eleito.

O sequestro da agenda

A ONU cada vez mais busca recursos financeiros junto às grandes corporações, a chamada captura corporativa da instituição. Este pacto de Mefistófeles tem e terá cada vez mais consequências negativas para a implementação da Agenda 2030 e seus ODSs. O recente patrocínio da Coca-Cola na COP27 do Clima, no Egito, é apenas a ponta do iceberg das inconsistências que alimentam uma crescente diluição de sua credibilidade. Não ajuda tampouco que o Secretário Geral, o português Antonio Guterres, tenha criado diversas iniciativas não formais na tentativa de impulsionar a agenda oficial – os acordos e resoluções negociados –, contribuindo para a própria redução do alcance dessas iniciativas, tirando o foco do não cumprimento dos mesmos. A sociedade civil vê com preocupação o que vem sendo encarado como teatralidade e eventos tapete-vermelho sem força política, particularmente no que diz respeito à postergação de decisões com possibilidade transformadora.

Sete anos após o quase consenso da Agenda de Ação de Adis Abeba, o que definíamos como mecanismos inovadores de financiamento, que inclui tributação sobre fluxos financeiros globais e sobre produtos maléficos à saúde pública (tabaco, bebidas açucaradas, agrotóxicos, combustíveis etc.), que traria recursos adicionais para a execução de políticas públicas, foi sequestrado pela narrativa técnica de parcerias público-privadas e financiamento misto, que, ao contrário do intento inicial, utiliza recursos públicos para reduzir o risco do investimento privado na oferta de serviços que deveriam ser públicos. Seguindo a cartilha do Estado mínimo, tal distorção fez cair o montante de recursos da Ajuda Oficial para o Desenvolvimento dos países mais vulneráveis, já que parte desses recursos são usados internamente nos países doadores para tratar da imigração ou são empacotados no Modelo Integrado de Financiamento, alavancando iniciativas privadas em infraestrutura com apoio de recursos públicos – livre iniciativa nos olhos dos outros é refresco. Será que o novo governo brasileiro terá a coragem necessária para reverter essa tendência de transformar o país num pesadelo do pedágio?

A fim de reiniciar o debate e tentar resgatar o financiamento para o desenvolvimento sustentável em seu intento original, a sociedade civil organizada concluiu que a forma adequada seria através da realização de uma quarta Conferência Internacional. A discussão atualmente prossegue no segundo comitê do ECOSOC, pois a Assembleia Geral das Nações Unidas não conseguiu chegar a um consenso, postergando a decisão para o próximo Fórum FfD, em abril de 2023. O medo principal é realizar um debate mundial sobre a arquitetura financeira sob a pressão ascendente do poder despudorado, inclusive razão expressa pelo Brasil ao rachar o G77+China. Muita gente acredita em retrocesso, o que é possível e provável, mas pelo menos será de forma aberta e transparente num processo de negociação onde cada palavra importa. O retorno do Brasil a uma posição de respeito internacional pode ajudar a destravar o nó. Para a sociedade civil organizada lhe resta ampliar suas coalizões e criar massa crítica de incidência para reverter a hegemonia monolítica da mentira liberal.

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