Por um programa de esquerda na Ciência e Tecnologia

Uma análise das diretrizes sobre o tema, propostas pela campanha de Lula. Hipótese: o Estado não pode ser mero articulador de inovações. Deve envolver a sociedade, enfrentar elites retrógradas e implantar a reindustrialização solidária

.

Ansiosamente esperadas, essas Diretrizes, nos seus noventa parágrafos, apresentam o diagnóstico, os compromissos e as propostas que precisamos para a “Reconstrução e Transformação” do país. Dentre tantos outros, a título de síntese, destaco um que aparece logo no início: “Temos compromisso com a justiça social e inclusão com direitos, trabalho, renda e segurança alimentar, para combater a fome, a pobreza, o desemprego, a precarização do trabalho e a desigualdade, e enfrentar a concentração de renda e de riquezas”.

As Diretrizes apontam os argumentos que precisam, nas áreas em que atuam, os que se estão dedicando a convencer seus pares a votar em Lula e na esquerda.

Por isso, como um profissional que por ofício há décadas analisa a política pública de Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI) através de um marco analítico-conceitual cada vez mais influenciado pela noção de tecnociência e pela concepção não-neutra que dela possui o marxismo contemporâneo — e como um militante do setorial do PT que a ela se dedica enriquecendo-o com dimensões ambientais, de gênero, sociais, humanitárias, etc. — me sinto obrigado a adicionar alguns elementos que podem ajudar aquelas companheiras e companheiros na sua indispensável tarefa.

Não obstante, como o propósito aqui é exclusivamente comentar o componente de CTI das Diretrizes, vou me abster de apresentar, como tenho feito alhures, o resultado da aplicação desse marco analítico-conceitual para a formulação de uma PCTI mais coerente com aquelas dimensões. Meu primeiro objetivo é refletir com quem me lê sobre o que implica o enorme desafio que coloca aquele compromisso que citei para a elaboração — formulação, implementação e avaliação — da política pública de CTI.

Detalhando o percurso, minha intenção é provocar uma reflexão sobre:

a) como deveriam ser as políticas-fim que atenderão diretamente as necessidades dos beneficiários daquele compromisso;

b) como deveriam ser e quais insumos teriam que produzir as políticas-meio incumbidas de viabilizar estas políticas-fim;

c) quais insumos cognitivos deveriam ser providenciados pelo governo que formula estas políticas-fim, mediante políticas-meio;

d) como deveria ser a política-meio que se orienta especificamente para produzir o conhecimento tecnocientífico para tanto, a política de CTI (PCTI).

Meu segundo o objetivo é refletir se esse conjunto de aspectos que deve presidir o processo de formulação da política-meio de CTI necessária para honrar aquele compromisso foi levado em conta na redação dos parágrafos que a ela aludem. Foco minha atenção, dado que sintetiza o que tratam outros e se refere mais diretamente à PCTI, no parágrafo 63…

“Afirmamos nosso compromisso com o papel estratégico da pesquisa científica e tecnológica e com a defesa e promoção do Sistema Nacional de CT&I, articulando e mobilizando o poder público, a comunidade científica e tecnológica, o empresariado e a sociedade civil para gerar conhecimento, inovação e desenvolvimento. É necessário internalizar as tecnologias essenciais e, ao mesmo tempo, assegurar a prioridade de sua função de produtora de direitos.”

… e comento, pedaço por pedaço, seu conteúdo…

(1) Para não me alongar e distrair quem me lê chamo a atenção que a frase possui um sujeito implícito: a coalizão que pretende governar o país. E, por isso, a oração “articulando e mobilizando o poder público” pode dar a entender uma noção equivocada das responsabilidades (dever e direito) que deve assumir o “poder público”, ou do governo, através do Estado. De que não caberia a ele um papel central na elaboração (formulação, implementação e avaliação) da política pública. E, muito menos, como é sabidamente o que aqui ocorreu, mobilizar de modo efetivo o potencial tecnocientífico local para a produção de bens e serviços. Ou seja, que caberia ao governo apenas o de “articular e mobilizar” os demais atores com envolvidos com a PCTI. O que, seja ela qual for, seria um equívoco.

É não obstante compreensível, em função do que comento em seguida a respeito de como atuam de fato os três atores que trata o parágrafo, a cautela que esses dois verbos expressam.

(2) A ordem em que esses atores – “a comunidade científica e tecnológica, o empresariado e a sociedade civil” – são citados não parece ser casual. Por isso, analiso em detalhe seu comportamento.

É compreensível que a “comunidade científica e tecnológica” seja citada em primeiro lugar. É ela, ou mais precisamente a elite da comunidade de pesquisa que historicamente e, como costuma ocorrer na periferia do capitalismo, diferentemente do que sucede nos países centrais, hegemoniza aqui a PCTI. É ela que — qualitativamente — dá à nossa PCTI direção e sentido.

Aos governos de turno tem cabido aqui um papel menos expressivo do que o observado nos países centrais. Em função daquilo que a elite científica considera conveniente constar do que consideram uma política-fim, cabe a ele — quantitativamente — alocar recursos. Ou contingenciá-los quando surge uma destinação politiqueira ou politicamente emergencial.

Semelhantemente a seus pares dos países centrais com quem compartilha a concepção da neutralidade (e, mesmo, do determinismo) da tecnociência, que segundo analistas da PCTI lhe confere uma característica de anomalia, a elite científica emula para a elaboração da PCTI um modelo que de lá provém. Em consequência, mesmo os seus integrantes que abraçam compromissos como os apontados nas Diretrizes não atentam para a necessidade de orientá-la de modo distinto. Sequer refletem sobre o que há muito tempo é assinalado por vários autores inadequação das agendas de ensino, pesquisa e extensão que praticam àqueles compromissos.

O “empresariado” – ou a classe proprietária (que é como deve ser entendido este ator quando se analisa os projetos e agendas políticas dos atores que intervêm numa dada política) – seja nacional ou multinacional, com a exceção óbvia do primário-exportador, que para seu projeto demanda conhecimento tecnocientífico original, quase não participa desse sistema.

Diferentemente do que ocorre nos países centrais, onde o empresariado precisa contratar os pós-graduados que sabem fazer a P&D que possibilita sua mais-valia relativa, ele aqui aproveita o salário baixo, a alta taxa de lucro e a leniência com a sonegação (que atinge 10% do PIB) para satisfazer o mercado periférico culturalmente imitativo inovando mediante a compra de tecnologia (importada ou embutida em equipamentos). Consequência disso é uma baixíssima taxa de absorção de pós-graduados em ciência dura como pesquisadores na empresa em relação ao total de formados: ela é aqui mais de cinquenta 50 vezes menor do que nos EUA.

Este ator, mesmo quando se trata de empresas estrangeiras que no seu país de origem atuam de modo capitalistamente virtuoso, tem aqui um comportamento que a ela confere uma caraterística que analistas da PCTI chamam de atipicidade. E que, observando como ele se comporta face ao corte de recursos para pesquisa e pós-graduação imposto pelo atual governo, situei num espectro que vai do ausentismo ao negacionismo. Até há pouco, quando se pronunciava sobre a PCTI, embora não desfrute do resultado da PCTI como gostaria a elite científica, ele tendia a endossar o seu discurso. Hoje, não se ouve sua voz para se opor ao corte.

A “sociedade civil”, que para a análise da política deve ser entendida, por exclusão, como os que não pertencem à classe proprietária, também está praticamente ausente. Explicar esse fato demanda entender como pensam os trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento. Embora não pertençam àquela elite nem ao empresariado e, sim, à classe trabalhadora, mesmo quando como tecnoburocratas operam a PCTI, tendem a mantê-la sob a hegemonia.

De fato, devido àquele caráter anômalo da PCTI, nas contadas ocasiões em que as organizações representativas da classe trabalhadora se manifestam sobre a PCTI, elas endossam o discurso da elite científica.

No que respeita à imensa maioria dos que constituem a “sociedade civil”, deixo um recado para os que confiam que iniciativas como as que começaram décadas atrás nos países centrais sob a denominação de alfabetização científica, e que hoje advogam a participação pública na ciência. Haja vista o escasso impacto que lograram no processo decisório da CTI desses países, é pouco provável que essas iniciativas, dada nossa iniquidade e exclusão, possam aqui ser efetivas.

Termino ressaltando um elemento central para refletir sobre como os que compartilham os valores e interesses da classe trabalhadora poderiam, seja como integrantes da comunidade de pesquisa, seja como pertencentes à sociedade civil, atuar na PCTI. Para isso, há que destacar a enorme e pouco reconhecida intensidade tecnocientífica que possuem as necessidades que ela possui e que terão que ser satisfeitas de modo original para a transformação e reconstrução do país.

Com ela ocorre algo muito distinto do que se observa em relação à classe proprietária, cuja necessidade de conhecimento novo localmente produzido exercida pelas suas empresas continua sendo, apesar das seis décadas de uma política de Estado de CTI que busca emulá-la, reconhecidamente baixa. É elevada, inédita e complexa a demanda tecnocientífica latente embutida nas necessidades hoje insatisfeitas da classe trabalhadora. Também neste caso, é a condição periférica, com sua histórica desigualdade realimentada por um modo periférico de lucrar baseado na extração da mais-valia absoluta, e um renitente elitismo, o que explica por que essas demandas cognitivas se mantêm fora das agendas de ensino, pesquisa e extensão que concebe a elite científica.

(3) Avanço agora um pouco mais na análise do parágrafo. Ele segue declarando que a interação daqueles atores irá “gerar conhecimento, inovação e desenvolvimento”. Contrariando essa afirmação existem há mais de cinco décadas convincentes críticas à tentativa de emular na periferia o modelo da cadeia linear de inovação que dinamiza o capitalismo central. E, também consistente evidência empírica produzida no país mostrando que ele não tem funcionado para reduzir a atipicidade do comportamento das empresas e que, por isso, não é adequado para orientar nossa PCTI.

(4) A última frase, que começa declarando que “é necessário internalizar as tecnologias essenciais”, mais ainda do que a anterior, me parece exigir uma interpretação que a torne inteligível para os pouco familiarizados com a PCTI e para o público leigo. Nela se fala em “internalizar as tecnologias essenciais e ao mesmo tempo, assegurar a prioridade de sua função de produtora de direitos”.

O que significa dizer, em primeiro lugar, que as “tecnologias essenciais” (blockchain, drones, impressão 3D, inteligência artificial, internet das coisas, realidade aumentada, realidade virtual e robótica), assim denominadas pelos analistas de inovação pagos pelas grandes corporações por que são para elas seria “essenciais” se aqui internalizadas. O que supõe que:

a) a intenção declarada de “internalizar”, ao estar prevista no plano de governo da coalizão vitoriosa, passaria a ser uma prioridade da PCTI;

b) esta prioridade teria sua formulação, especificação, detalhamento, etc. mediante algum tipo de arranjo institucional;

c) o arranjo institucional do “sistema”, a julgar pelo “compromisso com o papel estratégico da pesquisa científica e tecnológica e com a defesa e promoção do Sistema Nacional de CT&I” com que a coalizão inicia este parágrafo síntese, não seria alterado;

d) os fluxos dos três poderes (econômico, político e cognitivo) intrínsecos à gestão pública se manteriam motorizando, coordenando e orientando o “sistema”;

e) uma parte do recurso para “internalizar” seria agenciado pelo “sistema” de modo aderente ao “papel estratégico da pesquisa científica e tecnológica”, e mediante o aparelho institucional existente, na direção de organizações públicas e privadas de modo a fomentar atividades de ensino pesquisa e extensão;

f) uma outra parte, que a literatura internacional avalia como muito maior, seria aplicada para estimular, mediante aquele arranjo institucional, que o pessoal formado nas “tecnologias essenciais” seja contratado pelo “empresariado” neoschumpeteriano periférico: os legítimos catalisadores e emuladores do círculo virtuoso que caracterizou o capitalismo do Estado de bem-estar dos seus anos dourados.

(5) Antes de analisar o restante da frase que fala que essa ação de “internalizar” ocorreria de maneira a “ao mesmo tempo, assegurar a prioridade de sua função de produtora de direitos”, é necessário entendê-la.

Ela parece conter dois sentidos. O primeiro é que a ação de “internalizar” deveria “assegurar a prioridade de sua função de produtora de direitos”; isto é, que as “tecnologias essenciais” teriam uma “função [ou, pelo menos uma propriedade], de ser de produtora de direitos”. O segundo implica que deveria ser dada a essa ação uma prioridade, uma vez que o conhecimento que ela torna disponível no país asseguraria direitos ou os outorgaria a quem não os tem.

Para seguir, e tomando o mais provável primeiro sentido, há que lembrar:

a) que as “tecnologias essenciais” são produzidas pelas corporações para garantir o aumento da produtividade do trabalho que permite a crescente extração de mais-valia relativa que é apropriada como lucro e que tende, entre outros efeitos indesejáveis para “sociedade civil”, a aumentar a desigualdade;

b) que a literatura contemporânea dos estudos sobre CTI afirma que o modo como se dá a produção do conhecimento tecnológico (ou até tecnocientífico), ou para os mais radicais, os valores e interesses predominantes no ambiente onde ela ocorre, as marca tão profundamente a ponto de condicionar as posteriores atividades relativas à gestão, fomento e execução da P&D necessária para chegar a ser “produtora de direitos” para quem quer que seja;

c) que ela também permite afirmar que, mesmo que essas atividades pudessem vir a ser aqui na periferia orientadas num sentido distinto, é pouco provável que o conhecimento embutido nas nossas “tecnologias essenciais” internalizadas adquirissem uma potencial “função de produtoras de direitos” para integrantes da “sociedade civil” que não os têm, que são grosso modo a parte hoje excedentária da classe trabalhadora e o foco das Diretrizes.

Em seguida, haveria que averiguar a probabilidade que o “arranjo institucional do sistema” e seus integrantes (a elite científica que formula a PCT, a comunidade de pesquisa que a implementa e avalia, e a tecnoburocracia que a opera) seriam capazes de produzir conhecimentos capazes dessa função uma vez que para isso seriam portadores de características distintas daquelas do conhecimento com que eles estão acostumados a lidar. Ou seja, aquele conhecimento que visa ao lucro, que como supõe a elite científica deveria ser demandado pelo “empresariado” local. Aquele que só por transbordamento beneficiaria a “sociedade civil”.

De novo é a literatura contemporânea sobre CTI a que sugere que as “tecnologias essenciais” internalizadas tenderiam a ser aplicadas pelas empresas, mesmo quando o conhecimento fosse gerado fora delas, o que em princípio não deve ocorrer, da forma (mercados, cadeias de valor, etc.) como o fazem as corporações nos países centrais.

6) Por aqui termino, de modo normativo ma non troppo, como disse que faria, meu comentário. Será que não seria mais adequado, ao invés de manter uma PCTI que desde seu surgimento explora sem sucesso agendas de ensino, pesquisa e extensão orientadas a proporcionar ao “empresariado” um conhecimento que ele não precisa, não é hora que a reorientemos para satisfazer a latente demanda tecnocientífica daqueles integrantes mais pobres da “sociedade civil” que hoje, por não terem “direitos” não têm suas necessidades atendidas?

A maioria das trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento que militam no setorial do PT que trata da CTI, estão atentos para o surgimento, no interior da classe trabalhadora, de um movimento que busca organizar em arranjos de produção e consumo, baseados na propriedade coletiva e na autogestão, os oitenta milhões de brasileiras e brasileiros ativos que nunca tiveram ou terão emprego. E sabem que os empreendimentos solidários, que com diminuta subvenção e compra pública poderão implementar a reindustrialização solidária que o país precisa, necessitam de uma Tecnociência Solidária que surja da adequação sociotécnica da tecnociência capitalista. Também estão conscientes que a Tecnociência Solidária deve apoiar-se, como sempre fez a capitalista, em qualquer conhecimento (inclusive, obviamente, as “tecnologias essenciais”) que possa ser reprojetado em consonância com os valores e interesses da sociedade que estão ajudando a construir. Finalmente, que nossa PCTI terá que alcançar em curtíssimo prazo o inarredável objetivo – interno – de convencer as trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento que ela precisa de um giro à esquerda. Em especial a quem, desde o âmbito público, pode reorientar suas agendas de ensino e pesquisa.

Leia Também:

3 comentários para "Por um programa de esquerda na Ciência e Tecnologia"

  1. R S Batista disse:

    Bela abordagem crítica. Tensa porque intensa.
    Sugestão: usar uma linguagem menos rebuscada.

  2. R S Batista disse:

    Bela abordagem crítica. Tensa porque intensa.
    Sugestão: usar uma linguagem menos rebuscada.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *