A notável expansão das cooperativas digitais
Em meio ao domínio das big techs, movimento oposto ganha força internacional: tecnologia e conectividade em favor do Comum e da Colaboração. Livro expõe a transformação – de plataformas a bancos e data centers – e reflete sobre ela
Publicado 08/12/2025 às 19:07 - Atualizado 08/12/2025 às 19:13

O movimento cooperativo já é tradicional: mais de 12% da humanidade, mais de um bilhão de pessoas são membros de alguma das 3 milhões cooperativas no mundo. Seus trabalhadores representam algo com 10% dos empregos. As cooperativas permitem formas diferentes de as pessoas se organizarem, precisamente de forma cooperativa, em vez de simplesmente conseguir um “emprego” e fazer o que mandam. De certa forma, asseguram uma cidadania econômica, ao tornar seus membros parte ativa do próprio projeto, co-organizadores. O que hoje muda é a facilidade de conectar-se online, de se articular em rede sem a necessidade das reuniões presenciais, de gerar um território mais participativo, ou de ir além do território, construindo atividades conectadas por convergência de interesses. Ao conectar as transformações da revolução digital com as mudanças no mundo do trabalho, Scholtz nos mostra o universo que emerge com força: as plataformas cooperativas. O pano de fundo é que hoje o principal fator de produção é o conhecimento, e este se gere de maneira muito mais eficiente por meio de colaboração do que por competição.

O universo digital pode ser resgatado e permitir a rearticulação da sociedade pela base. Hoje, este espaço é dominantemente capturado pelos gigantes da indústria da atenção – Google (Alphabet), Apple, Facebook (Meta), Amazon, Microsoft, o chamado GAFAM, que se apropria da internet para extrair dados privados e lucrar com a indústria da atenção. Isso pode mudar. Para dar um exemplo, o Uber que se apropria de grande parte do que o cliente paga, é um gigante dos transportes que não possui carros nem empregados, apenas faz intermediação. Está sendo substituído em tantos lugares por plataformas cooperativas (como a Drivers Cooperative, por exemplo em Nova York, com 9 mil motoristas). Os lucros são distribuídos entre os cooperados, que definem eles mesmos as regras de funcionamento. Nas palavras do autor, “podemos começar a considerar o redesenho da apropriação da economia digital”.(4)
É interessante considerar a que ponto falta democracia no espaço do trabalho, a chamada workplace democracy. A era da internet permite justamente a organização em rede, a colaboração online, e formas de organização que adotam a forma legal básica de cooperativa, aproveitando todo o potencial da conectividade muito mais ágil das plataformas digitais, abrindo inclusive uma nova forma de articulação social com os tradicionais movimentos sindicais de trabalhadores.(7)
“As plataformas cooperativas combinam o modelo comprovado da cooperativa, que foi adotado por um bilhão de pessoas no mundo, com o modelo dinâmico da plataforma digital (…) Priorizam o benefício da comunidade mais do que a extração de lucro, resultando em um modelo de negócios mais sustentável e equitativo, que gera valor para a comunidade e assegura valor de longo prazo tanto para os fundadores como para os trabalhadores — ao contrário dos motoristas de Uber, que geram lucros para acionistas distantes milhares de quilômetros”.(11) Trata-se de romper a exploração pelos absentee owners, os proprietários ausentes, e resgatar tanto os recursos gerados como o controle da gestão. É questão de nos reapropriarmos dos avanços tecnológicos pela base, em vez de sermos manipulados e explorados por corporações transnacionais no topo. A conectividade em rede permite articulações horizontais e colaborativas em rede, saindo das pirâmides verticalizadas de exploração.
Trata-se de uma transformação sistêmica. É natural que no início as tecnologias e o seu potencial tivessem sido apropriados por gigantes financeiros e da informação, com as fortunas de que dispõem, e sua abrangência global. Gerou-se uma oligopolização aproveitando recursos que são da natureza, os fótons, os elétrons, as ondas eletromagnéticas, comprando os eventuais concorrentes, e enriquecendo pela venda da nossa atenção. A compreensão das deformações sociais que isso acarreta podem ser encontradas por exemplo no livro A Geração Ansiosa, de Jonathan Haidt, que foca, em particular, no impacto sobre as crianças e a juventude, ou em A máquina do caos, de Max Fisher, centrado nas manipulações políticas. Uma visão de conjunto pode ser encontrada nos trabalhos de Shoshana Zuboff, em particular A Era do Capitalismo de Vigilância. Brett Christophers, no livro Rentier Capitalism, mostra como essas deformações se organizam no mundo das finanças, no universo imaterial do dinheiro virtual, juros e dividendos. A exploração é hoje dominantemente digital, e a desigualdade explode.
A força do livro de Scholtz é apresentar como pode ser invertido o “sinal” deste universo tecnológico, de negativo para positivo, justamente através da sua apropriação na base da sociedade. Muitas cidades estão gerando sistemas colaborativos de gestão em rede, reapropriando-se da gestão das informações (data sovereignty, soberania dos dados), e colocando o sistema a serviço da comunidade. Gera-se o que o autor chama de smart cities baseadas em princípios cooperativos digitais.(168) Isso nos leva a pensar de maneira mais ampla o processo decisório que nos rege. “O Estado-nação individual é demasiado grande para assegurar envolvimento significativo, e também pequeno demais para enfrentar os desafios globais. Neste sentido, a Rebel City Alliance emerge como uma liga de cidades e municipalidades progressistas, incluindo Kerala na Índia, a região da Emilia-Romagna na Itália, as regiões autônomas basca e catalã na Espanha, a cidade de Nova York e a California.”(169)
Essa aliança, segundo o autor, “visa expandir e fortalecer o movimento, estimulando redes entre os seus membros. Essas redes facilitam a troca de dados, kits de ferramentas e sistemas financeiros que podem ser utilizados entre cidades. Também permitem que os municípios comuniquem políticas que deram certo além de seus limites, colaborando nos avanços tecnológicos, e aproveitando o imenso potencial dos seus esforços coletivos. Essas colaborações resultaram em municípios que implementam políticas que asseguram preferência aos negócios de propriedade dos trabalhadores, dando-lhes preferência nas políticas de compras.”(169) Trata-se, na realidade de aproveitar “as oportunidades e desafios únicos da era digital.”(7)
O que descobrimos, nos inúmeros exemplos trazidos por Scholtz, é justamente como as comunidades, empresas, grupos de interesses diversificados, estão redesenhando as formas de funcionamento no quadro da revolução digital. Trata-se de “resgatar a internet como um bem público, estimular um mundo digital como bem comum digital (digital commons), e criar um ambiente online que sustenta a sua promessa original e promove a apropriação pelas comunidades.” Frente ao controle global de gigantes financeiros como BlackRock, Vanguard e State Street, que inclusive são acionistas das grandes mídias sociais, ”o que precisamos é um reimaginar radical do nosso sistema econômico para priorizar a equidade, justiça e sustentabilidade, como uma questão de urgência.”(29)
Entre os exemplos está a rede Mondragón, no País Basco, “uma federação de 240 cooperativas de consumidores e de trabalhadores, com 83 cooperativas e um total de 68.743 empregados, com apoio aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.”(59) A Amul Dairy na Índia, a maior cooperativa leiteira do mundo, com mais de 3 milhões de pequenas fazendas como membros, é por sua vez amplamente criticada por beneficiar agricultores de renda média ou superior, em vez de trabalhadores pobres, tensões que aliás encontramos em grandes cooperativas no Brasil. É um mundo em construção.
O sistema busca novos equilíbrios, e em particular o aproveitamento das oportunidades da gestão colaborativa em rede. O Platform Cooperativism Consortium catalogou cerca de 543 projetos de plataformas digitais em mais de 49 países, formando um quadro de horizonte emergente que nos permite identificar as histórias de sucesso mais importantes e os seus “tipos”, como por exemplo a Société Mutuelle pour Artistes, mostrando a amplitude dos setores beneficiados. O autor elenca também as experiências de plataformas cooperativas na organização dos trabalhadores informais, em particular na Índia.(63)
Muito importante também é a redução das desigualdades salariais: “A Mondragón afirma que a diferença salarial entre o trabalho executivo e o salário-básico no campo ou na fábrica tem sido acordada em várias cooperativas, com um leque de 3:1 a 9:1, e uma mediana de 5:1. Comparem isso com os Estados Unidos, onde os CEOs das 350 maiores companhias ganham cerca de 320 vezes do que um trabalhador típico.”(67)
Uma área de particular importância é o resgate da gestão das poupanças pelas próprias comunidades. É absurdo os bancos comerciais cobrarem juros astronômicos sobre o dinheiro que nos emprestam, quando se trata do nosso dinheiro, que na era digital temos de manter em bancos. O Grameen Bank de Bangladesh é um exemplo de imenso sucesso de crédito. Scholtz apresenta o exemplo do SEWA Cooperative Bank, o primeiro banco na Índia de propriedade e gestão por mulheres, no Estado de Gujarat.(70)
O autor resume o que qualifica de economia digital cooperativa: “As plataformas cooperativas asseguram auto-organização e autonomia, oferecendo uma economia digital social aberta que começa no local de trabalho. Permitem controle sobre os dados dos usuários e trabalhadores, promovem uma orientação baseada no bem comum, e facilitam as tomadas de decisão democráticas, com controle dentro de estruturas de propriedade distribuídas, permitindo aos trabalhadores escapar dos ‘patrões algorítmicos’.” (101)
Esse enfoque de dinamizar a auto-organização dos trabalhadores tem muito a ver com a transformação do mundo do trabalho: “Não é nenhum segredo que os sindicatos têm lutado para se adaptar à desindustrialização e a ampliação de economias “gig” e de serviços no século 21. Os trabalhadores “gig” operam em um ambiente desregulado, que define um tipo inteiramente diferente de emprego.”(109) Isso sugere, segundo Scholtz, que os sindicatos e o movimento cooperativo podem juntar esforços para uma nova articulação do movimento de trabalhadores adequado às novas atividades, e aproveitando as novas tecnologias para o trabalho cooperativo em rede. É uma sinergia clara.
Um eixo particularmente interessante de inovação é a apropriação da economia dos dados, da informação, hoje controlados pelos data centers e gigantes da indústria da atenção. “As cooperativas de dados estão emergindo nos diversos setores e indústrias para assegurar que os dados sejam colhidos e controlados democraticamente para os benefícios dos membros (…) A economia dos dados atual (data economy) enfrenta assimetrias trágicas e insustentáveis de poder, definidas pela centralização, vigilância e deformação do uso. (…) Há um consenso crescente de que precisamos de um novo regime de governança dos dados, baseado em processo decisório mais distribuído. Essa transição deve se apoiar na compreensão de que a geração de dados é uma forma de trabalho coletivo invisível e não pago. (…) Os dados gerados nas novas atividades digitais e relações sociais geram valor financeiro comparável à produção econômica da era industrial, com a economia da atenção digital servindo como uma fábrica sem paredes, com o produto – cada um de nós – contribuindo à captura de valor pelas maiores empresas tecnológicas de forma massiva, opaca, constante, e frequentemente involuntária.”(143) Scholtz sugere o conceito de “data democracy”.
O livro termina com uma série de recomendações sobre o “como começar” uma iniciativa de cooperativa digital, com mais exemplos. No essencial, quando o mundo do trabalho muda, a conectividade muda, a matéria prima muda (muito mais informação do que bens materiais). É natural que pensemos que novas oportunidades se abrem. Eu penso nos imensos potenciais de se generalizar a experiência do bairro de Casa Verde em São Paulo (veja Casa Verde no meu site dowbor.org), que criou uma rede colaborativa online; nos potenciais de articulação em rede de tantos produtores de informação independente, que chamamos de imprensa alternativa mas que é essencialmente a imprensa da verdade, não comercial; da articulação em rede das iniciativas de economia solidária e tantos potenciais subutilizados como na área de entregadores.
Estamos vivendo a revolução digital, até agora essencialmente apropriada pelos gigantes do dinheiro, da informação, do conhecimento, enquanto buscamos preservar direitos trabalhistas e preservação da privacidade, ou até do controle do nosso dinheiro, mas não se trata de regressar ao passado, e sim de aproveitar o novo. O conhecimento pode ser generalizado sem custos adicionais, podemos nos organizar de maneira muito mais ágil com a conectividade. A luta de classes se aprofunda mas mudou de rumos. Gostaria muito de recomendar o meu artigo A economia política da revolução digital, que ajuda na compreensão das mudanças sistêmicas que enfrentamos. A sistematização de propostas práticas apresentada por Trebor Scholtz abre muitos horizontes, e constitui uma grande contribuição prática. E leitura leve.
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