O corpo, entre o individual e o coletivo

Ao contrário do que sugere o mercado, nossa força não está em sermos indivíduos — mas parte de redes. Nelas pode estar a potência dos comuns contra o medo

161128_nude-bodies_claudia-rogge

Nude crowd, por Claudia Rogge

.

Por Regina Favre

Quando observamos, casualmente, corpos andando pela cidade, podemos nos dar conta da enorme quantidade de conexões e ações que fazem, de cada corpo, parte de um processo onde corpos se produzem juntamente com os ambientes de que são parte e expressam com suas formas quem são e como lidam com suas vidas. Não é pouco para um lance de olhar. Mas está aí para quem se dispuser a ver.

Nossa cultura visual nos ensina perfeitamente sobre a realidade dos corpos, desde as vidas de elites e celebridades até as vidas em guerras, desastres, migrações. E todos nós sabemos que os corpos nos permitem ver como essas vidas dependem, simultaneamente, de si e dos jogos de força que controlam os recursos do planeta.

Corpos mostram, o tempo todo, que são feitos de forças biológicas e experiências de vida, estruturadas como carne. Músculos e ossos nos particularizam e nos fazem existir como um corpo sólido e reconhecível. As vísceras processam o ambiente na nossa profundidade secreta, propiciando-nos as condições para prosseguir. A vida nos aparece como algo muito individual, quando vivemos o corpo em nível de sua estrutura visível ou de suas necessidades de sobrevivência. Mas, seria mesmo assim?

Diferentemente do passado pouco distante, passamos a viver uma conexão formando uma quase infinita rede mental que experimentamos o tempo todo. Com a contração do planeta produzida pela velocidade dos meios de comunicação, e a acumulação dos acontecimentos que a cibercomunicação tornou ainda mais instantânea e abrangente, cada vez mais estamos imersos nesse processo.

Em tempo real, as mentes pensam sem barreiras entre elas, em ondas psíquicas que envolvem sua ação conjunta, seja através das redes sociais, da telefonia celular, da informação de todo tipo, das burocracias e tecnologias que nos controlam e regulam. Ondas de sentidos e imagens, estados de espírito, sentimentos e desejos percorrem o planeta. O que podem os corpos nessa condição tão ampla e geral?

Felizmente, podemos enxergar nos corpos sua dimensão perene e vivenciar seu sentido em nossa relação com a vida, lembrando sempre que:

– as mudanças e adaptações que os corpos fazem são moldagens de si, com aquele mesmo corpo feito dos mesmos tecidos que biologicamente se tecem, de modo contínuo, com os elementos dos ambientes de que aquele corpo é parte;

– corpos se movem, absorvendo esse mundo que está aí, formando a si mesmos em tempo real, visível e invisível, com as mesmas regras que a vida biológica necessita, e sempre necessitou, para se efetuar;

– cada corpo, numa corrente ininterrupta, canaliza, como sempre canalizou, a vida na biosfera, em linhas ininterruptas de corpos;

– corpos não estão dentro da biosfera, mas são a própria biosfera, e corpos são canais da própria vida buscando se sustentar no planeta.

A arte, hoje, desloca nossa percepção e experiência para esse processo planetário. A ciência, também, com sua enorme divulgação pop, nos permite ler, ver, assistir e absorver essa nova realidade ecológica. Passamos a saber, na carne, que somos parte dessa comunidade biológica que coloniza este planeta. Isso nos comunica uma enorme força.

Sabemos, contudo, também na carne, que hoje, mais do que nunca, esse poder de colonizacão planetária que pertence à Vida está concentrado em mãos cada vez mais numericamente reduzidas. A tradição dominante do pensamento ocidental antropocêntrico, eurocêntrico, falocêntrico nos fez crer, durante séculos, que a criação inteira estava destinada ao homem europeu, branco, macho, colonizador e proprietário do planeta. Essa divisão leonina de direitos prossegue. Por outro lado, porém, as pressões que sentimos em nossas vidas por parte das políticas conservadoras e concentracionistas de poder sobre os recursos do planeta, as redes digitais, a informação generalizada e os movimentos de resistência micropolíticos, culturais e sociais nos fazem, hoje, enxergar, saber e sentir profundamente essa realidade de que somos parte. Isso se tornou inegável.

O corpo vem lutando biologicamente há bilhões de anos para manter-se agregado dentro de ambientes os mais adversos. Os ambientes, hoje, lembremos, são as condições físicas, afetivas, tecnológicas, econômicas, informacionais, políticas, de linguagens, valores e sentidos integrados entre si. Quando nos vivenciamos como corpos em processo de permanente produção dentro de ambientes, passamos a enxergar e confiar que temos recursos na nossa herança biológica para interferir nas formas de um destino aparentemente invencível.

Nossa vida no mercado

O mercado, que desde os anos 1970 tornou-se mundial e integrado, é o ambiente onde os corpos hoje nascem, vivem e morrem. De Nova Iorque ao fundo da África, ecoa seu poder. Mas, diferentemente do poder moral das famílias e das instituições, o mercado não vigia e pune como antes. Num contínuo jogo de forças, ele exerce uma captura das forças formativas nos corpos. O mercado age diretamente sobre a vida nos corpos e sobre a forma que eles tomam para fazer suas dramaturgias, ou seja, sobre as formas particulares de desejar e fazer-se corpo no mundo.

A produção constante de imagem e sentido onde estamos imersos é a própria expressão do mercado. Ele inunda continuamente nosso espaço corporal, agindo através de um duplo jogo: a ameaça de exclusão (e desconexão) das redes que formam nossa realidade e a oferta de configurações para nossa forma, que constantemente se desfaz sob o efeito da velocidade e da intensidade dessas forças. Diante das ameaças de exclusão que são continuamente mostradas nas mídias (violência, miséria, desastres, destruição, desamparo, políticas sociais, etc), os corpos reagem, como todo e qualquer animal, acionando em si o reflexo do susto: recolhem-se, fecham-se, desligam-se do ambiente e de suas redes, e muitas vezes fragmentam-se em pânico, como o bicho diante do predador. O reflexo da imitação se desencadeia, imediatamente, e nos faz mimetizar o ambiente. Esse ambiente é o próprio mercado nos oferecendo, como salvação, formas de vida que aparentemente funcionariam como bordas para nossa desorganização. Fundimos com o ambiente para deixarmos de ser alvo das forças de exclusão. É a vida funcionando como no tempo dos animais.

Mas, quando aprendemos pela experiência como se fazem corporalmente esses reflexos, podemos desenvolver estratégias para desfazê-los, numa prática combinada de músculos e sistema nervoso. E ao desfazer esses reflexos fatais para a nossa autonomia e diferenciação, desfazemos um enfeitiçamento. Acordamos para nos vivenciar como corpos comuns e passar a gerar os comportamentos necessários para sustentar conexão com as redes, próximas e distantes.

A rede mundial do mercado, como sabemos, é explorada por uma reduzida rede de poder, que corresponde a 1% da população. E nós, os restantes 99%, somos a multidão de corpos comuns. Diferentemente do que o mercado tenta, e muitas vezes consegue nos convencer, nossa força está exatamente em não sermos especiais. Nossa força está em lutar e amadurecer para a evidência de que a vida se dá em rede e que é possível funcionar como parte. Deter-se sobre a nossa presença física, sua forma e suas conexões, nas diferentes condições que vivenciamos, passa a ser a base de uma vida normal.

O próximo passo é identificar-se corporalmente com a forma das ações que produzimos para sustentar quem somos, sintonizando com o sentimento que se desprende daí – um sentimento a ser praticado e cultivado. A realidade corporal passa então a nos guiar, mais e mais, na relação com outros corpos e na criação conjunta de ambientes mais oxigenados – porque reais e presentes. Esse é o pulo do gato.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *