Argentina e Brasil: o mito da "herança maldita"

Governos agora no poder nos dois países adotam política de terra arrasada e demonizam seus antecessores. Fatos desmentem discurso, em ambos os casos

O ministro das Relações Exteriores interino do Brasil, José Serra, com o presidente argentino, Maurício Macri, em 23/5: a mesma estratégia de ataque em massa à herança de seus antecessores

O ministro das Relações Exteriores interino do Brasil, José Serra, com o presidente argentino, Maurício Macri, em 23/5: a mesma estratégia de ataque em massa à herança de seus antecessores

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Em sugestiva coincidência, governos agora no poder, nos dois países, adotam política de terra arrasada e demonizam seus antecessores. Fatos desmentem discurso, em ambos os casos 

Por Daniel Revah

Em março deste ano, o novo ministro da Fazenda elogiava o círculo virtuoso de expectativas e fatos iniciado pelo presidente Mauricio Macri na Argentina. De forma semelhante expressaram-se jornais brasileiros sobre o “exemplo” argentino, que agora mesmo começa a se tornar realidade em solo brasileiro com as primeiras medidas econômicas anunciadas pelo governo Temer. O nosso futuro estaria então do outro lado da fronteira. O que nos aguarda?

Antes de começar pela situação econômica da Argentina, que é a especialidade do nosso ministro, convém atentar para a suposta “pesada herança” que o governo dos Kirchner teria deixado, agora replicada no Brasil como “herança maldita” dos governos de Lula e Dilma para justificar tudo o que daqui em mais será feito. No período dos Kirchner, a dívida externa diminiu de forma significativa, como nunca antes havia ocorrido, ao mesmo tempo em que a economia foi reativada após o colapso de 2001. O PIB cresceu a taxas superiores a 8% até 2008, quando o ritmo diminuiu em razão da crise econômica mundial, mas o país continuou crescendo. No último ano do governo de Cristina Kirchner, a “presidente desenvolvimentista” nas palavras do economista Bresser-Pereira, o PIB cresceu 2,1%, contrariando assim as previsões para baixo do FMI. A pobreza diminuiu desde 2003 de forma significativa e o salário mínimo em dólares era um dos maiores da América Latina em 2015. Nesse ano, a inflação vinha caindo, sendo inferior a 25%. O desemprego, que havia atingido cifras superiores a 20% da população ativa em 2002, em fins de 2015 estava em torno de 6% e vinha diminuindo. O déficit fiscal, assunto controverso entre o atual e o anterior governo, nesse ano estaria em torno de 4% do PIB, tendo diminuído em relação ao ano anterior. Esse percentual, inferior ao de vários países considerados desenvolvidos, é questionado pelo atual ministro da Fazenda Alfonso Prat Gay, cujos malabarismos numéricos conseguiram elevá-lo a 7%.

Em síntese, a economia do país cresceu de forma acentuada no período dos Kirchner, inclusive no último ano. A inflação, ainda considerada alta, vinha caindo, assim como o déficit fiscal. A pobreza, o desemprego e a dívida externa diminuíram de forma significativa. Tudo isso faz parte do que o governo Macri e a mídia hegemônica transformaram em “pesada herança”, de um país supostamente arruinado economicamente, uma bomba pronta a explodir, com uma crise que nunca teve, apesar das várias tentativas desestabilizadoras ao longo de 2015. Um país que certamente precisava reorientar a sua política econômica, como admitiam os próprios kirchneristas, mas que estava longe da crise que tanto quiseram criar.

O que aconteceu no país vizinho nesses quase seis meses do novo governo?

Em menos de seis meses, a inflação já supera a taxa de 30% e projeta-se uma inflação anual de 45% ou mais. O desemprego aumentou nesses meses de forma significativa, calculando-se em 140 mil as demissões no setor público e privado. Vislumbra-se neste momento uma quebradeira geral de pequenas e médias empresas, as mais afetadas pelo “círculo virtuoso”. A pobreza vem aumentando de maneira exponencial, com 1,4 milhão de novos pobres, segundo divulgou em abril deste ano o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina. A dívida externa voltou a crescer e foi iniciado um novo ciclo de endividamento. Quanto ao PIB, a projeção do FMI para 2016 é negativa, com uma baixa equivalente a 1%. O déficit fiscal, agora sim, deverá superar os 7% atribuídos ao governo anterior pelo ministro Prat Gay, que em seus cálculos havia incorporado as consequências das medidas tomadas pelo governo Macri, ao incluir por exemplo o que o Estado deixou de arrecadar ao eliminar ou diminuir os tributos sobre a exportação de minérios, carnes e grãos. Esses setores exportadores foram um dos grandes beneficiados do novo governo.

Em consequência dessas e de outras medidas houve uma brutal transferência de renda dos setores sociais médios e baixos para as grandes corporações vinculadas ao setor financeiro e à exportação de commodities. Essas medidas econômicas e suas consequências, por si mesmas bastante alarmantes, constituem uma pequena amostra da avalanche de fatos negativos que assola a vida de milhões de argentinos neste momento. São medidas que não seriam possíveis sem a concorrência de outros componentes, que as antecedem inclusive, tornando-se indissociáveis da sua implementação. Um desses componentes já pôde ser notado na campanha eleitoral que resultou no triunfo de Cambiemos, que é a frente política de sustentação do atual presidente. A sua estratégia eleitoral seguiu o que é praxe no figurino atual da política: prometer o que sabidamente não será feito, como ocorreu em relação ao valor da moeda, que sofreu uma abrupta e pronunciada desvalorização logo após assumir o novo governo (40%), apesar do futuro presidente ter negado essa possibilidade durante a campanha eleitoral.

O embuste como ferramenta política a mais ninguém surpreende hoje em dia e é tão antigo quanto a política. Mas essa particular arte de mentir foi recriada no século XX, como nos lembra a filósofa Hannah Arendt em seu livro Crises da República ao falar da “nova geração de intelectuais” que surgiu nos Estados Unidos depois dos anos 50, aos quais ensinaram que “metade da política é ‘construção de imagem’ e a outra metade a arte de fazer o povo acreditar em imagens”. Para isso Macri conta com uma vasta artilharia midiática, envolvendo radios, TVs e jornais como Clarín e La Nación, disponíveis 24 horas por dia para produzir as imagens necessárias ao retorno e consolidação das políticas neoliberais. Essa construção envolve também a produção e circulação de um novo vocabulário, que busca mudar o sentido do que é mais corriqueiro, como o aumento dos preços, que já não é mais aumento, mas “sinceramento” da economia. Ou seja, é fazer com que os bens de consumo e as tarifas tenham o preço que supostamente lhes corresponde. Esse é o argumento recentemente empregado para justificar os enormes aumentos das tarifas de água, luz e gás, que de uma única vez subiram em valores que chegam a variar entre 400% e mais de 1.000%, um aumento tão desproporcional que motivou a intervenção de alguns juízes para frear determinados aumentos.

As promessas de Macri, acompanhadas de manifestações sobre a dor que lhe causa fazer o que está fazendo e sobre seu desejo de que todos sejam felizes, como vez por outra repete, começaram há pouco a encontrar os primeiros limites, como evidenciam as maciças mobilizações de diversos setores sociais. Mesmo assim continua firme em sua empreitada em favor dos grandes grupos

econômicos e já deixou claro, desde o início de seu mandato, qual é a outra face das promessas quando estas não mais convencem ou quando o embuste não mais funciona: o chicote, para usar o mesmo termo empregado por Hannah Arendt quando lembra de uma “antiga abordagem”, que consiste em ter “uma promessa na mão e um chicote às costas”.

A face do chicote, que logo se fez notar entre fins de dezembro e janeiro deste ano na repressão com balas de borracha, gás lacrimogênio e pauladas contra protestos de trabalhadores (empregados municipais de La Plata e trabalhadores da empresa Cresta Roja), mobilizou também o poder judiciário, como aqui, no Brasil, com juízes sempre dispostos a usar dois pesos e duas medidas. Um bom exemplo é o que ocorre na província de Jujuy, no norte de Argentina, onde a dirigente social Milagro Sala, eleita deputada do Parlasur e líder da organização social Tupac Amaru, permanece presa há mais de quatro meses sem que ainda tenha sido condenada. Denunciada pelo governador da província Geraldo Morales, cuja partido Unión Cívica Radical integra a frente Cambiemos, foi acusada de participar de uma manifestação pacífica de organizações sociais que acamparam frente ao edifício do poder executivo da província durante um mês. O que então demandavam era uma audiência com o governador, que se negava a recebê-las para discutir suas demandas.

Milagro Sala foi inicialmente acusada de instigamento ao delito e tumulto e de atentar contra as leis governamentais, mas as acusações foram variando, no intuito de prolongar a sua prisão no momento em que devia ser solta. A par disso, a intimidação a pessoas próximas a Milagro Sala tornou-se a regra no estado policial em que se transformou a província. O caso mais notório é o da deputada provincial Mabel Marconte, ex-membro da Tupac Amaru que denunciou Milagro Sala dizendo que teria entregue malas com dinheiro para Máximo Kirchner, atualmente deputado nacional e filho da ex-presidente. Uma boa denúncia para nutrir as manchetes sobre a “corrupção K”, à qual se atribui a crise que nunca existiu. O que dessa denúncia afinal houve foi a tentativa de suicidio da deputada, que teria sido pressionada a fazer essas declarações devido à ameaça de prisão que pairava sobre ela e seus filhos. Atualmente presa, Milagro Sala já recebeu a solidariedade de várias personalidades, como a de Pérez Esquivel, ganhador em 1980 do prêmio Nobel da Paz.

Outro exemplo é o da ex-presidente Cristina Kirchner, emblemático pelo seu parentesco com o que acontece no Brasil. Dentre as denúncias e acusações que envolvem a ex-presidente e que alimentam as manchetes da imprensa diária, uma delas é sobre uma medida de política econômica que envolveu a venda de dólares no mercado futuro e cujos principais beneficiários foram na verdade vários funcionários do alto escalão do governo Macri, que compraram milhões de dólares antes da desvalorização da moeda decidida por eles próprios. O juiz responsável pela causa é Claudio Bonadío, de notória animosidade com Cristina Kirchner, a quem resolveu processar junto com funcionários de seu governo, como o ex-ministro de economia Axel Kicillof. Mas o próprio juiz foi denunciado pela ex-presidente, dado que ele próprio autorizou o Banco Central a efetivar o pagamento de uma operação que depois julgou ilegal. Tudo isso está em curso e promete dar lugar a grandes manifestações em apoio a Cristina Kirchner, como já ocorreu diante da ameaça dela ser presa quando convocada pelo juiz em abril deste ano.

Algumas formas de censura velada também estão bem ativas, como ocorre com determinados programas de televisão, cujo sinal começa a sofrer misteriosas interferências quando alguma denúncia ou assunto importante contra o governo está em pauta, como é recorrente no canal C5N, o único onde há programas críticos ao governo. Algo que já ocorria no governo anterior, mas com o mesmo objetivo: silenciar denúncias contra o macrismo. Isso é o que os próprios ouvintes denunciam e que pude verificar pessoalmente em Buenos Aires, em TV a cabo cuja operadora era uma empresa do Grupo Clarin. Mas também ocorre nas transmissões ao vivo pela internet, especialmente difíceis de acessar no caso do programa dominical Economía Política, do jornalista Roberto Navarro. Em seu programa, mas também em outros poucos meios críticos ao governo (como o jornal Página 12 e Radio del Plata), continuam sendo divulgadas informações e investigações que desdobram o que os chamados Panamá Papers inicialmente revelaram, como as várias empresas offshore que Macri e membros da sua família presidem, sem contar as vinculadas a altos funcionários de seu governo, boa parte deles ex-CEOs de empresas multinacionais ou financistas de Wall Street, como os qualifica o jornal Página 12, que contabilizou 27 ex-executivos de bancos de inversão internacionais.

As “mentiras do presidente”, como as qualifica Navarro, logo vieram à tona a partir dessas investigações. O presidente Macri figura como diretor em no mínimo duas offshore: Fleg Trading e Kagemusha. Esta última continua ativa e a primeira teria sido fechada em 2009, sem ter realizado nenuma atividade, segundo foi oficialmente informado. Descobriu-se porém o contrário, pois teve ativa participação em empreendimentos levados adiante no Brasil e estaria envolvida ademais em operações de lavagem de dinheiro, junto com uma rede de empresas de Macri e seu pai, segundo documentos levantados pelo jornalista Ezequiel Orlando (ver site: eldestapeweb.com). Isso tudo era de se esperar, pois ninguém abre uma empresa em paraísos fiscais se não for para evadir impostos ou lavar dinheiro. Atualmente o poder judiciário está investigando Mauricio Macri porque omitiu essas empresas em sua declaração jurada e foi iniciada uma causa por enriquecimento ilícito, o que não quer dizer grande coisa, pois blindar políticos é o que há de mais corriqueiro.

Além do vínculo de Macri com essas empresas offshore, o que também foi denunciado é o encobrimento da propriedade de empresas que seriam suas e que supostamente foram vendidas a seu primo Angelo Calcaterra, quando Macri assumiu o governo de Buenos Aires. Com essas empresas, várias licitações foram ganhas em diferentes pontos do país, de maneira que o primo do Macri, para não dizer ele próprio, tornou-se o terceiro contratista do Estado. As investigações sobre Calcaterra adviram de um percurso curioso, relacionado com outra investigação que seguia a pista da suposta corrupção dos Kirchner, envolvendo o demonizado do empresário Lázaro Báez, que está preso, mas sem ainda ter sido julgado. Báez, que presumia-se vinculado à “corrupção K” e cujas fazendas na estepe patagônica foram escavadas com enormes escavadeiras na tentativa de encontrar enterrado o “dinheiro K”, às vistas das câmeras de TV, manteve-se associado em algumas licitações com empresas de Calcaterra. Como disse a ex-presidente, a suposta “rota do dinheiro K” conduziu inesperadamente à “rota do dinheiro M”.

Nos quase seis meses do governo Macri, os lineamentos sociais e econômicos do modelo que se busca implementar na Argentina estão claros e seu sentido foi evidenciado de uma forma que surpreende, pela rara franqueza, por um economista ligado ao macrismo. Numa recente entrevista, eis o que disse o economista Javier González Fraga: “Estamos vindo de doze anos nos quais se investiu mal, se incentivou o consumo excessivo, foram atrasadas as tarifas e o tipo de câmbio… se fez acreditar a um empregado médio que seu salário servia para comprar celulares, TVs de  plasma, carros, motos e ir ao exterior porque teve uma ilusão. Isso não era normal”. O normal para o macrismo é um modelo no qual nem a classe média está à salvo, um modelo de país que nem nos anos 90 conseguiu-se alcançar e que supõe desfazer o tecido econômico, social e político criado pelo kirchnerismo.

A enorme quantidade de medidas implementadas na Argentina em tão pouco tempo faz parte de uma estratégia política que até agora parece ter dado certo, ao deixar atônitos e sem capacidade  de resposta a boa parte dos argentinos, que também ficaram paralisados graças ao antagonismo que a mídia soube explorar e transformar em ódio, assim contribuindo para abafar o que é próprio da política: o debate. Dividir os argentinos entre os “K” (kirchneristas) e os “anti-K” parece ter sido a melhor fórmula para diminuir e até extinguir a discussão política no cotidiano de muitas pessoas no âmbito da família, entre amigos ou pessoas próximas e em outros espaços, como os mesmos macristas parecem ter percebido e incentivado. Não por acaso, o próprio marqueteiro Durán Barba, do PRO, que é o partido do Macri, num tradicional programa da TV argentina (Almorzando com Mirtha Legrand), mostrou-se há pouco como um grande entusiasta da democracia definida de um modo que é comum no campo da esquerda, como espaço de discrepância, crítica e diversidade. O consenso é malíssimo, é o pior inimigo da democracia, defendeu o marqueteiro com a mesma ênfase.

O macrismo e a mídia hegemônica souberam tirar proveito desse antagonismo e continuam a alimentá-lo, mas com o cuidado de atribuir a sua origem aos kirchneristas, não raro transformados em militantes exaltados, intolerantes e violentos. Em face deles, os macristas surgem com um perfil bem particular: tranquilos ao falar, dificilmente se exaltam e não respondem a ofensas exasperando-se.

Esse perfil, porém, supõe a existência de uma certa divisão de funções, pois as provocações e as denúncias mais descabidas destinadas à oposição e ao kirchnerismo em particular constituem uma tarefa reservada a determinados personagens do mundo jornalístico e também da própria frente Cambiemos, como é o caso de uma deputada já bem conhecida pelos argentinos pelas suas sempre bombástica denúncias, que não costumam dar em nada.

Fomentar o antagonismo até o limite do ódio como estratégia política foi importante para o macrismo ganhar as eleições, mesmo que tenha sido por pequena margem (cerca de 2%). Essa margem foi mais do que suficiente para obter a legitimidade das urnas, que era a condição necessária para que Macri e as forças políticas de direita que o sustentam pudessem iniciar sem freios este “círculo virtuoso”: reduzir o Estado a sua mínima expressão, acentuar a desigualdade social e econômica, eliminar direitos sociais reconquistados nos últimos 12 anos e criar as condições necessárias para o retorno do monitoramento da economia pelo FMI, anulando assim qualquer possibilidade de decisão autônoma do país em termos econômicos, em ciência e tecnologia e nas

políticas de educação e saúde.

Será esse o círculo virtuoso de Meirelles?

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Um comentario para "Argentina e Brasil: o mito da "herança maldita""

  1. Arthur disse:

    Sem dúvida nenhuma. Esse é o receituário determinado pelo capital financeiro internacional e seguido servilmente pela elite local.

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