A primeira grande guerra do governo Bolsonaro

Paulo Guedes sugere “Reforma” da Previdência ao gosto dos banqueiros – mas a rudeza da proposta abre brechas no próprio governo. Como aproveitá-las?

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Por Antonio Martins

Se restavam dúvidas sobre quem providenciou o vazamento, para os jornais, do projeto de “Reforma” da Previdência do ministro Paulo Guedes, elas bem podem ter se dissipado na manhã desta quarta-feira (6/2). O site Poder360º traz um relato do que houve no jantar de homanagem oferecido na noite de terça – pelo póprio veículo de imprensa – ao ministro da Economia. Diante de um público restrito, composto apenas por mega-empresários e jornalistas “de mercado”, Guedes confirmou as linha gerais da proposta, que veio a público, divulada dias antes pelo Estado de S.Paulo. Não se mostrou, em nenhum momento, incomodado pelo vazamento.

Ao contrário: deleitou-se em debater com os presentes as possíveis divergências entre suas ideias e as de seu chefe, Jair Bolsonaro. Disse ter meios para driblá-las. Guedes quer elevar em muito a idade mínima para aposentadorias pelo INSS: 65 anos, para homens e mulheres. Porém, reconheceu: o presidente pode, por temor ao eleitorado, reduzir este mínimo para 65-60 anos – ou mesmo para 62-57. Nesse caso, disse, a resistência presidencial é contornável. Basta, por exemplo, eliminar o “período de transição”. O essencial é atingir uma meta quantitativa: cortar, em dez anos, até R$ 1 trilhão, dos desembolsos que o Estado faz para os mais pobres ( leia texto de Nayara Daminão, em Outras Palavras). Abrir novo espaço para o pagamento de juros.

Sempre à vontade, o ministro foi além. Seu segundo objetivo crucial é privatizar a Previdência. No projeto, está incluído o regime de “capitalização”, que permite, a quem recebe mais, “aderir” a um sistema obrigatório de Previdência pessoal e privada – portanto, sem repartição por solidariedade. Será possível, inclusive, transferir para novas contas individualizadas os recursos hoje depositados no FGTS. Ou seja: centenas de bilhões de reais, atualmente geridos pela Caixa, passarão para os bancos privados. Haverá um atrativo: ao contrário do que estabelece a regra em vigor, será possível sacar os recursos, em caso de “necessidade”.

Por fim, a cereja do bolo: a “Reforma” incluiria um ataque cerrado aos direitos laborais, por meio de uma “opção”, oferecida aos futuros ingressantes no mercado de trabalho. Quem quiser as garantias oferecidas pela CLT poderá reivindicá-las – mas terá de disputar um número de vagas cada vez menor. Porque será possível, às empresas, contratar em nova modalidade de relação trabalhista – em que não haverá “nem sindicato, nem Justiça do Trabalho”. Se entrarem por esta porta, os jovens assalariados terão “menos direitos, mas muito mais oportunidades”, assegurou Guedes.


“Vazada” aparentemente sem debate prévio no governo, em meio à internação do presidente, a proposta de Guedes é, claramente, uma tentativa de destacar-se, entre os ministros. O que a teria motivado? Impaciência, diante de uma equipe que parece dividida em três ou quatro núcleos, e sem rumo definido? Ilusão com um sensacional “pulo do gato”? Aposta em que, credenciando-se junto à oligarquia financeira e a mídia, obrigaria o presidente e o resto dos auxiliares a segui-lo?

Entre os dois setores em que procurou apoio, o ministro o encontrou. Na segunda-feira, quando veio à luz, a “Reforma” de Guedes recebeu intensos elogios nos jornais e TVs – em especial, a Globo. Repetiu-se, sem cessar, um velho mito: a Previdência registraria um “déficit” anual de centenas de milhões de reais; saná-lo seria essencial para enfrentar a crise e “recolocar o país na rota do crescimento”. A sustentação da elite financeira também foi explícita: “a dimensão da reforma está correta”, disse o presidente do Banco Itaú, Candido Bracher. E completou: “se o governo aprovar, teremos anos de crescimento sustentado”.

Mas algo saiu errado, no cálculo político de Paulo Guedes. Ao invés de se curvar à proposta, a maior parte dos próprios integrantes do governo a repeliu – ou ao menos foi reticente. Puxou a fila, mais uma vez, o general Mourão: “Na visão do Guedes, é todo mundo igual [homem e mulher]. O presidente não concorda”. Foi seguido por Onyx Lorenzoni, ministro da Casa Civil, para quem a proposta final do governo “ será muito diferente” da defendida por seu colega da Economia. Sem novos apoios, o balão de ensaio de Guedes foi murchando. Mídia e o mercado financeiro não querem, no momento, destoar do governo. Por isso, preferiram recuar. Na quarta-feira, dois dias depois de lançada, a “novidade” já não tinha destaque nas manchetes. A bolsa de São Paulo sofreu a maior queda diária em 8 meses (-3,74%) e o real recuou 1% frente ao dólar. Segundo o UOL, “os mercados foram afetados por preocupações com um possível atraso na tramitação da reforma da Previdência no Congresso”…


Em torno da Previdência se dará, certamente, a primeira grande guerra do período Bolsonaro – e talvez a decisiva. O janeiro caótico do governo abriu fissuras e quebrou relações de confiança. A oligarquia financeira, que esfregou as mãos com a agenda ultra-capitalista do presidente, teme cada vez mais que ele seja incapaz de executá-la. Assusta-se, em especial, com o risco de descontrole social, que colocaria a perder interesses seculares.

As aposentadorias são um barril de pólvora – em especial porque podem levar o governo a se associar claramente com os mais ricos; a perder a máscara de anti-establishment que lhe permitiu vencer as eleições. Mas sem Bolsonaro, quem poderá garantir o status quo – se todas as demais alternativas “da ordem” naufragaram, nas eleições de 2018?

Por isso, os conservadores tateiam e espreitam. Como agir, diante desta hesitação? A esquerda tradicional – partidos e movimentos sociais – parece aguardar, ou porque foi também ferida em 2018, ou por ter perdido a capacidade de pensar o país e um novo projeto.

Mas não seria, ao contrário, a hora de ocupar o espaço aberto? De demonstrar, por exemplo, que só o lucro recorde dos três maiores bancos privados (R$ 60 bilhões, em 2018) seria suficiente para cobrir mais da metade do “rombo” mitológico que os conservadores alegam haver na Previdência? De propor um tributo extraordinário sobre estes lucros, como forma de ampliar – em vez de reduzir – os direitos previdenciários? De puxar, a partir deste fio, a meada da Reforma Tributária? De constatar que talvez haja, no Brasil, condições suficientes para uma alternativa à maré conservadora, semelhante à que a jovem deputada latina Alejandria Ocasio-Gomez lidera, nos EUA?

Em tempos de crise civilizatória e transformação profunda da sociedade, a paralisia temerosa pode ser a maior imprudência.

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