Uma nova cooperação para o desenvolvimento

A ascensão dos BRICS abala hierarquias globais seculares. Mas para que prossiga, é preciso nova coordenação entre países do Sul

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A ascensão dos BRICS está sacudindo hierarquias globais estabelecidas por séculos. Mas para que prossiga, é preciso nova coordenação entre países do Sul

Por Felipe Amin Filomeno* (conheça blog pessoal) | Imagem: Mapa-mundi de Nicolas Desliens (1567, detalhe)

Em julho passado, estive em Washington para a conferência BRICS e a nova arquitetura global (BRICS and the new global architecture), promovida pelo Woodrow Wilson International Center for Scholars. O evento reuniu acadêmicos e policy-makers de vários países, incluindo aqueles que compõem a sigla (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). A ótima qualidade do encontro me surpreendeu tanto quanto o número de interpretações inadequadas que certos palestrantes e ouvintes manifestavam sobre o tema.

Um dos comentários que mais me chocou foi o de um ouvinte que, após palestrantes discutirem a ascensão do Sul Global, afirmou ao microfone: “Eu entendo toda essa questão geopolítica de alianças entre os BRICS, mas, no final das contas, o que esses países vão fazer para atrair investimentos de empresas americanas?”. Em voz baixa, pensei “Em que ano estamos e em que mundo o senhor vive?”. Naquele mesmo mês, o Brasil discutia medidas para limitar (e não atrair) influxos de capital estrangeiro. Mais ainda, com recessão no países do Norte e crescimento nos países emergentes, estes não precisam fazer muito para atrair capital estrangeiro (o diferencial entre as taxas de crescimento já é suficiente). Eu poderia mostrar ainda como capital estrangeiro não é necessariamente um ingrediente para o desenvolvimento, mas isso seria tema para outra coluna.

O comentário do ouvinte que mencionei é bastante simbólico da inércia ideológica existente nos EUA e na Europa. Esta inércia tem dificultado a superação da crise nesses países, que ainda patinam com medidas de austeridade cujo ônus é distribuído desigualmente entre ricos e pobres. Entretanto, o equívoco mais comum durante o evento foi a presunção de que, para o conceito de BRICS fazer sentido, estes países deveriam ter alguns atributos em comum, como o mesmo regime político ou a mesma dimensão demográfica. Esta é uma idéia equivocada. O conceito de BRICS é relacional, refere-se a um novo padrão de organização das relações internacionais e não a um conjunto de características que certos países possuem individualmente. O que é mais interessante nos BRICS não é o fato de serem economias emergentes de grande porte, mas de sua ascensão alterar as regras do jogo da economia política global e de estabelecerem entre si relações cooperativas que podem levar à emergência de um sistema mundial menos hierárquico.

Aqui vai um exemplo. Em 24/09/11, The Economist publicou matéria afirmando que a demanda chinesa por recursos naturais encerrou um século de declínio nos preços de matérias-primas consumidas por países centrais. Com isso, a renda de países ricos em recursos naturais, como Brasil, Rússia e, até mesmo, partes da África, aumentou. Por outro lado, consumidores de países ricos têm tido que pagar mais por exportações de países em desenvolvimento. Assim, o crescimento do comércio entre países do Sul Global (aqui representado pela exportação de matérias-primas para a China) constitui um mecanismo de transferência de renda dos países ricos para os países pobres. Há, claro, limitações. Os preços de commodities podem voltar a cair. Países em desenvolvimento que não souberem administrar as rendas obtidas com recursos naturais podem retornar há uma situação de dependência de exportações primárias, etc. Isto, no entanto, não anula o potencial para uma cooperação Sul-Sul capaz de desafiar a hierarquia mundial de poder e riqueza.

Quer mais um exemplo? Em 14/09/11, a Reuters publicou a notícia de que a presidente Dilma Rousseff afirmou que o Brasil está pronto para se juntar a um esforço internacional de ajuda à União Europeia. A declaração veio um dia depois de autoridades brasileiras terem mencionado conversas com Rússia, Índia, China e África do Sul para realizar compras coordenadas de títulos europeus. Mesmo que a proposta não se concretize, ela mostra como a situação de hoje é diferente da dos anos 1990, quando o Brasil estava à mercê de credores internacionais. Esta nova conjuntura está ilustrada na tabela abaixo, que mostra o desenvolvimento econômico recente dos BRICs em relação aos Estados Unidos.

BRIC: Desenvolvimento econômico em relação aos EUA

 

Renda Nacional Bruta em Proporção à dos EUA (%) (*)
1992 2008 Variação (%)
Brasil 11.28 15.23 35
China 1.35 2.17 61
India 1.56 6.13 293
Russia 12.38 20.15 63
Fonte de dados: Banco Mundial. (*) Per capita. Não ajustado à paridade de poder de compra.

 

Entretanto, para que esta trajetória de catching-up coletivo de países em desenvolvimento em relação aos países centrais persista, há um equilíbrio delicado entre cooperação e competição que precisa ser administrado. A “guerra cambial” propriamente criticada pelo ministro Mantega, as medidas protecionistas adotadas recentemente pela Argentina e pelo Brasil para proteger suas indústrias da competição chinesa, são exemplos de que as relações entre os BRICS podem ser também competitivas. Neste caso, um tenta subir em detrimento do outro, reproduzindo, e não desafiando, a hierarquia global de riqueza e poder. Fazer a cooperação para o desenvolvimento internacional prevalecer sobre a competição entre os países do Sul é hoje talvez o maior desafio das políticas de desenvolvimento.

* Felipe Amin Filomeno é sociólogo e economista, doutorando em Sociologia pela Johns Hopkins University, com apoio da CAPES/Fulbright. Tem artigos publicados nas revistas Economia & Sociedade, História Econômica & História de Empresas, e da Sociedade Brasileira de Economia Política.

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