Um labirinto de interrogações

Retratadas por três mulheres, as dúvidas e oscilações de humor de uma mulher madura diante da arrogância e narcisismo dos homens que tenta amar

Claire Denis, ladeada por Christine Angot e Juliette Binoche

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Afinal, o que quer uma mulher? A pergunta, que tem desconcertado tantos homens sabidos, de Sigmund Freud a Caetano Veloso, às vezes recebe uma resposta enganosamente simples: amor. Pois essa resposta leva a outra pergunta, ainda mais complexa: e o amor, o que é? Por esse labirinto de interrogações que geram outras interrogações trafega o novo filme da francesa Claire Denis, Deixe a luz do sol entrar –veja aqui o trailer.

Esse drama cômico, ou comédia dramática, centrado nas dúvidas e hesitações de uma mulher madura, a artista visual Isabelle (Juliette Binoche), em sua tortuosa busca amorosa, parece se construir, ele próprio, sob o signo da dúvida e da hesitação.

Nudez e perguntas

O filme começa com uma breve imagem, filmada com câmera alta, de Isabelle nua na cama. Mas logo se sobrepõe a esse corpo nu o peso de um homem volumoso e cheio de pelos, seu amante banqueiro (Xavier Beauvois). E começam as perguntas: “Vai gozar?”, “Com seu amigo de antes você gozava depressa?” A conversa pós-coito termina com um tapa.

Daí em diante a narrativa se organiza basicamente em torno de diálogos, mas sem que as palavras “expliquem” o drama, esgotem o sentido ou sufoquem a potência da imagem. Logo na segunda cena, por exemplo, em que Isabelle e o banqueiro conversam junto a um balcão de bar, o diálogo desencontrado dos dois tem como contraponto as exigências meticulosas que o homem faz ao barman que os atende. Nessa relação lateral, levemente cômica e ilusoriamente secundária, expõe-se o caráter obsessivo, arrogante e autoritário do amante. A encenação, recusando o habitual campo/contracampo, faz com que a câmera passeie de um a outro personagem de um modo que é aleatório só na aparência, pois ressalta a distância entre eles e explora as sutilezas de suas reações.

Com a segurança dos veteranos que não precisam mais provar nada a ninguém, a diretora dá a impressão de criar suas regras para poder subvertê-las sem cerimônia em favor de seus propósitos dramáticos e expressivos. Por exemplo, até mais ou menos um terço do filme parece impor-se rigorosamente a norma de que a protagonista está sempre em cena e tudo se mostra a partir de seu ponto de vista (não no sentido literal, em “câmera subjetiva”, e sim psicológica e conceitualmente). Mas de repente vemos um homem (Nicolas Duvauchelle) sozinho e em silêncio num camarim de teatro e só depois, num bar, é que aparece Isabelle conversando com ele e ficamos sabendo quem é o sujeito e, mais ou menos, qual pode vir a ser a relação entre os dois.

Essa breve e brusca entrada em cena do personagem do ator, mais do que mostrar de imediato qual é o seu contexto e métier, soa como uma revelação ao espectador de algo ignorado pela protagonista: numa imagem (o homem diante de um espelho cercado de luzes), o narcisismo do sujeito.

Um procedimento análogo, e ainda mais surpreendente, será a introdução do personagem do vidente Denis (Gérard Depardieu). Primeiro o vemos quase de costas, de meio perfil, dentro de um carro estacionado. O enquadramento o torna ainda mais corpulento e de traços rudes, quase um monstro de desenho animado, impressão enfatizada por seus gestos e expressões turbulentas. Ele discute com alguém, e inicialmente pensamos que se trata de Isabelle, mas não; é outra mulher. O que faz essa cena ali? Parecem fotogramas de outro filme inseridos por engano.

Só depois o espectador saberá quem é aquele homem. E sua conversa com Isabelle será de algum modo permeada (contagiada? envenenada?) por essas imagens anteriores e aparentemente desconexas, matizando e ironizando o sentido do que é dito.

Insegurança instantânea

A sutileza com que se expõem as oscilações de humor da protagonista é algo que talvez só uma diretora mulher (com sua co-roteirista também mulher, Christine Angot) possa atingir – e que só uma atriz com a inteligência e a densidade de Juliette Binoche seja capaz de concretizar fisicamente.

Há uma cena especialmente significativa dessa sinergia feminina. Isabelle está na cama com o ex-marido, pai de sua filha. É o momento de relaxamento cúmplice pós-gozo e tudo parece em paz. Mas de repente ele umedece dois dedos na língua e faz menção de colocá-los entre as pernas dela. Ela se retrai imediatamente, acusando-o de estar sendo falso, de imitar um gesto de outro, de estar assistindo a si mesmo. Essa insegurança instantânea como que repõe, de modo invertido, a pergunta lá do início do texto: afinal, o que quer um homem?

O percurso vacilante de Isabelle, ao longo do qual o próprio amor parece adquirir sentidos cambiantes e não raro contraditórios (segurança, afeto, autenticidade, prazer, liberdade), é não apenas respeitado pelo filme como mimetizado em sua construção narrativa e em sua encenação. Tudo aqui é o oposto das certezas dos livros de autoajuda. Há uma mulher sozinha exposta às intempéries do mundo – e essa circunstância assustadora está impressa nos olhos eternamente úmidos e brilhantes de Juliette Binoche.

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