Um controle psiquiátrico da dissidência?

Comportamento anti-autoritário, que recomenda avaliar poder antes de respeitá-lo, pode estar sendo reprimido desde infância por diagnósticos e medicamentos questionáveis

 

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Comportamento anti-autoritário, que recomenda avaliar poder antes de respeitá-lo, pode estar sendo reprimido desde a infância por diagnósticos e medicamentos questionáveis

Por Bruce E. Levine, em Alternet | Tradução: Antonio Martins | Imagem: Rico Gatson, O Grupo

Em minha carreira como psicólogo, falei com centenas de pessoas antes diagnosticadas por outros profissionais como portadoras de Transtorno Desafiador de Oposição (TDO), Transtorno do Déficit de Atenção / Hiperatividade (TDAH), Transtorno de Ansiedade e outras doenças psiquiátricas. Estou chocado por dois fatos: 1) quantos destes pacientes são, em essência, anti-autoritários; 2) como os profissionais que os diagnosticaram não o são.

Os anti-autoritários questionam se uma autoridade é legítima, antes de levá-la a sério. Sua avaliação de legitimidade inclui avaliar se as autoridades sabem de fato do que estão falando; se são honestas; e se se preocupam com aqueles que as respeitam. Quando anti-autoritários avaliam uma autoridade como ilegítima, eles desafiam e resistem a seu poder. Certas vezes, de forma agressiva; outras, de forma agressivo-passiva. Às vezes, com sabedoria; outras, não.

Alguns ativistas lamentam como parecem ser poucos os anti-autoritários nos Estados Unidos. Uma razão pode estar em que muitos anti-autoritários são psico-diagnosticados e medicados antes de formarem consciência política a respeito das autoridades sociais mais opressoras.

Por que profissionais de Saúde mental veem anti-autoritários como portadores de distúrbios mentais

Conquistar aceitação nas escolas superiores ou de especialização de medicina, e obter um doutoramento ou pós-doutoramento como psicólogo ou psiquiatra, significa superar muitos obstáculos. Requer adequar-se comportamentalmente a autoridades – inclusive aquelas pelas quais não se tem respeito. A seleção e socialização dos profissionais de saúde mental tende a excluir muitos anti-autoritários. Graus e credenciais são, antes de tudo, atestados de adequação. Quem estendeu seus estudos, viveu longos anos em um mundo onde é preciso conformar-se rotineiramente com as exigências de autoridades. Por isso, para muitos doutores e pós-doutores em saúde mental, pessoas diferentes, que rejeitam esta adequação comportamental, parecem ser de outro mundo – um mundo diagnosticável.

Descobri que a maior parte dos psicólogos, psiquiatras e outros profissionais de saúde mental não são apenas extraordinariamente adequados às autoridades – mas também inconscientes da magnitude de sua obediência. Também tornou-se claro para mim que o anti-autoritarismo de seus pacientes cria enorme ansiedade entre estes profissionais, o que impulsiona diagnósticos e tratamentos.

Na universidade, descobri que para ser rotulado como alguém com “problemas com autoridade”, bastava não bajular um diretor de treinamento clínico cuja personalidade era uma combinação de Donald Trump, Newt Gingrich e Howard Cosell. Quando alguns professores me disseram que eu tinha “problemas com autoridade”, reagi ao rótulo com sentimentos contraditórios. Por um lado, achei interessante, porque entre os filhos de trabalhadores, com quem havia crescido, eu era considerado de certa forma obediente à autoridade. Além disso, eu tinha feito minhas lições de casa, estudado e recebido boas notas. Entretanto, embora os meus novos “problemas com autoridade” deixassem-me alegre, por ser agora visto como um bad boy, também me preocupava com o tipo de profissão em que estava entrando. Mais especificamente, se alguém como eu era visto como tendo “problemas com autoridade”, como seriam chamados os garotos com quem cresci – atentos a tantas coisas que lhes interessavam, mas não suficientemente interessados com a escola para obedecê-la? Logo a resposta tornou-se clara.

Diagnósticos de doença mental para anti-autoritários

Um artigo de 2009 no Psychiatric Times, intitulado “TDO e TDAH: Enfrentando os Desafios do Comportamento Disruptivo”, relata que os “transtornos disruptivos”, uma categoria que inclui o Transtorno do Deficit de Atenção / Hiperatividade (TDAH) e o Transtorno Desafiador de Oposição (TDO), são os problemas de saúde mental mais comuns em crianças e adolescentes. O TDAH é definido por baixa atenção e tendência à distração; baixo auto-controle, impulsividade e hiperatividade. Já o TDO é definido como “um patrão de comportamento negativista, hostil e desafiante, sem as violações mais sérias dos direitos básicos de outros vistas no transtorno de conduta”. Os sintomas do TDO incluem “desafiar ativamente, ou recusar-se a obedecer com frequência as ordens e regras dos adultos” e “discutir frequentemente com adultos”.

O psicólogo Russel Barkley, uma das grandes autoridades da saúde mental mainstream em TDAH, diz que os que padecem deste mal têm déficits no que chama de “comportamento regrado”, já que são menos obedientes às regras das autoridades estabelecidas e menos sensíveis às consequências positivas ou negativas. Pessoas jovens com TDO também têm, segundo as autoridades do mainstream, os tão falados déficits em comportamento regrado. Por isso é tão comum, entre jovens, um “duplo diagnóstico” de TDAH mais TDO.

Realmente queremos diagnosticar e medicar todos os que têm “déficit em comportamento regrado”?

Albert Eisnten, quando jovem, teria provavelmente recebido um diagnóstico de TDAH, e talvez também de TDO. Ele não prestava atenção em seus professores, fracassou duas vezes nos exames de admissão à escola secundária e tinha dificuldades em conservar empregos. No entanto, Ronald Clark, um biógrafo de Einstein (Einstein: The Life and Times), sustenta que seus problemas não provinham de déficits de atenção, mas de seu ódio à disciplina autoritária, prussiana de suas escolas. Einstein dizia: “Os professores da escola primária pareciam-me sargentos e os do ginásio eram como tenentes”. Aos 13, ele leu o difícil Crítica da Razão Pura, de Kant – por estar interessado no livro. Clark também conta que Einstein recusava-se a se preparar para os exames de admissão ao ensino médio: era uma forma de rebelião contra o “intolerável” caminho exigido por seu pai, rumo a uma “profissão prática”. Depois que ele finalmente ingressou, um professor disse-lhe: “Você tem um defeito: ninguém pode te dizer nada”. As características particulares de Einstein, que tanto espantavam as autoridades, eram exatamente as que lhe permitiram destacar-se.

Para os padrões atuais, Saul Alinsky, o legendário organizador social autor de Regras para Radicais, teria sido certamente diagnosticado com um ou mais transtornos disruptivos. Rememorando sua infância, ele afirmou: “Eu nunca pensava em caminhar na grama até que via uma placa dizendo: ‘Não pise na grama’. Então, eu sapateava em cima dela”. Alinsky também recorda de uma ocasião, quando tinha 10 ou 11 anos, e seu rabino ensinava-lhe hebraico.

“Certo dia, li três páginas sem erros de pronúncia, e de repente uma moeda caiu sobre a Bíblia… No dia seguinte, o rabino voltou e me pediu para começar a ler. Simplesmente sentei em silêncio, recusando-me. Perguntou-me por que estava tão quieto e respondi: ‘Desta vez, é uma nota ou nada’. Ele começou a me bater”.

Muitas pessoas com ansiedade severa e ou depressão também são anti-autoritárias. Uma grande dor em suas vidas, que alimenta sua ansiedade e ou depressão, é o temor de que o desprezo a autoridades ilegítimas as torne social e financeiramente marginalizadas. Porém, também temem que a obediência a tais autoridades cause-lhes morte existencial.

Também empreguei muito tempo com pessoas que, numa época de sua vida, tiveram pensamentos e comportamentos bizarros a ponto de serem assustadores, para suas famílias e para si mesmas. Tinham diagnósticos de esquizofrenia e outras psicoses, mas se recuperaram e desfrutaram, por muitos anos, vidas produtivas. Neste grupo, nunca encontrei ninguém que não considerasse um grande anti-autoritário. Assim que se recuperaram, aprenderam a direcionar seu anti-autoritarismo para fins políticos mais construtivos – inclusive a reforma do sistema de saúde mental.

Muitos anti-autoritários que em fases anteriores de suas vidas tiveram diagnósticos de doenças mentais relatam que, ao serem rotulados como pacientes psiquiátricos, entraram num dilema. Autoritários exigem, por definição, obediência sem questionamentos. Por isso, qualquer resistência a seus diagnósticos e tratamentos causa enorme ansiedade em profissionais de saúde mental com este tipo de postura; e médicos que se sentiam descontrolados rotulavam estes pacientes como “refratários a tratamento”, expandindo a severidade do diagnóstico e entupindo-os de medicação. Às vezes, isso enraivecia de tal modo os anti-autoritários que sua reação os fazia aparecer ainda mais assustadores para suas famílias.

Há anti-autoritários que usam drogas psiquiátricas para ajudá-los a funcionar. Ainda assim, frequentemente rejeitam as explicações das autoridades psiquiátricas sobre quais são suas dificuldades. Podem, por exemplo, tomar Adderall (uma anfetamina prescrita para TDAH). Mas sabem que seu problema de atenção não resulta de um desequilíbrio bioquímico do cérebro, mas de um trabalho enfadonho. Da mesma forma, muitos anti-autoritários submetidos a ambientes muito estressantes podem ocasionalmente tomar benzodiazepínicos como Xanax. Pensam que seria mais seguro usar maconha, mas os testes de drogas existentes nas empresas a detectariam…

Minha experiência sugere que muitos anti-autoritários rotulados com diagnósticos psiquiátricos não rejeitam todas as autoridades, mas apenas aquelas que avaliam como ilegítimas. Ocorre que nessa categoria poderia ser enquadrada boa parte das autoridades, em nossa sociedade…

Agindo para manter o Status Quo

Os norte-americanos têm sido convencidos a considerar desatenção, raiva, ansiedade e desespero imobilizante como condições médicas – e a procurar tratamento farmacológico, em vez de soluções políticas. Haveria meio melhor de manter o status quo do que ver em tais reações problemas de quem está mentalmente enfermo – e não atitudes normais, diante de uma sociedade cada vez mais autoritária?

A realidade é que a depressão está altamente associada com dores sociais e financeiras. É muito mais provável tornar-se deprimido quando você está desempregado, subempregado ou em dívida (ler “400% Rise in Anti-Depressant Pill Use”). E é inegável: crianças rotuladas como portadoras de TDAH prestam atenção quando estão sendo recompensadas, ou quando uma atividade é nova, desperta seu interesse ou foi escolhida por elas (documentado em meu livro Commonsense Rebellion).

Numa idade das trevas anterior, as monarquias autoritárias associavam-se às instituições religiosas. Quando a humanidade superou esta fase e abriu-se o Iluminismo, houve uma explosão de energia. Muito da revitalização tinha a ver com arriscar-se diante de instituições autoritárias e corruptas; e com reconquistar confiança na própria mente. Vivemos uma nova era de trevas: mudaram apenas as instituições. Os EUA necessitam desesperadamente de anti-autoritários para questionar, desafiar e resistir às novas autoridades ilegítimas; e para reconquistar confiança em seu próprio senso comum.

Em todas as gerações, há autoritários e anti-autoritários. Embora seja incomum, na história dos EUA, que os anti-autoritários adotem ações efetivas, capazes de inspirar os demais à revolta que resulta em mudanças, de vez em quando um Tom Paine, Crazy Horse ou Malcolm X aparece. Então, os autoritários marginalizam financeiramente quem resiste ao sistema, criminalizam o anti-autoritarismo, psico-diagnosticam os anti-autoritários e produzem drogas de mercado para sua “cura”.

Bruce E. Leving (site: www.brucelevine.net) é psicólogo clínico nos EUA, há cerca de três décadas. Conhecido por suas posições anti-hegemônicas, escreve e debate sobre as intersecções entre Sociedade, Política, Cultura e Psicologia. É autor, entre outros livros, de Commonsense Rebellion (2003), Surviving America Depression Epidemic (2007) e Get Up, Stand Up: Uniting Populists, Energizing the Defeated, an Battling the Corporate Elite (2011).

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12 comentários para "Um controle psiquiátrico da dissidência?"

  1. Paulo disse:

    Texto muito oportuno e pertinente !!

  2. Ruben Menezes disse:

    Prezados companheiros:
    Mesmo os militantes adoecem e precisam de cuidados médicos. Chê Guevara foi o Chê também por suas ações terapêuticas e por sua compreensão humana do corpo guerrilheiro, ele que foi também médico.
    A mente e o corpo são um só, e ambos podem ter os seus transtornos, suas dores e seus traumas.
    Ainda que o importante texto aborde uma questão relevante, que é o uso de psicofármacos como forma de controle comportamental para fins de condicionamento social, algo encontrado em todas as sociedades, seja na Rússia Stalinista, seja nos Estados Unidos como cita o autor, o uso indevido de medicamentos é um problema grave que precisa ser combatido.
    Daí a posicionar a Psiquiatria como aliada da classe opressora no controle social da classe explorada, como o texto claramente insinua ao citar os tempos medievais, há um abismo perigoso, preconceituoso e anti-científico.
    A Psiquiatria nasceu junto com o Iluminismo, na Revolução Francesa, com o trabalho de Pinel, que de fato buscou a libertação dos loucos de suas correntes e iniciou uma forma de tratamento – o tratamento moral – que é o que havia na época.
    Sempre contaremos com recursos terapêuticos historicamente determinados e tecnologicamente limitados. Nossos medicamentos são, honestamente falando, muito mais primitivos do que serão daqui a 200 anos. Trazem efeitos colaterais que não gostamos de ver os pacientes terem.
    Mas só quem verdadeiramente trata pacientes com sofrimentos em carne e osso sabe o quanto essas moléculas podem fazer para reabilitar cérebros destroçados – seja por arranjos neuroquímicos intrínsecos, seja pelo efeito de traumas socialmente determinados.
    Bem que eu gostaria de poder fazer o tratamento dos pacientes modificando também suas condições de vida. Já recuperei cérebros de militantes políticos, de companheiros, de companheiras, e foi com medicamentos, psicoterapia e empatia. Alguns deles, com a mente refeita, então puderam fazer as mudanças no seu ambiente ou meio social.
    Assim, cuidado ao analisar a conduta de uma minoria de profissionais – que realmente podem se assustar com a liberdade de pensamento de alguns de seus pacientes – com a grande maioria, que vibra com as conquistas e progressos de seus pacientes.

  3. o assunto aqual voces estao discutindo da mais alta importancia,dendo em vista que muitas pessoas podem apresentar esses distubios e nao sabe que tei

  4. Suely Lima disse:

    Ótimo artigo!!!
    O dilema entre marginalizacao socio-financeira x morte existencial é de grande complexidade e merecedor de muita atencao.
    Dida, Pedro e Ana. Ótimos comentários!
    O artigo indicado abaixo complementa a leitura feita por Bruce E. Leving.
    Boa leitura!
    http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-59/questoes-medico-farmacologicas/a-epidemia-de-doenca-mental

  5. Mauro disse:

    Excelente texto.

  6. Ana Brito disse:

    Claro, conciso, objetivo. Vem ao encontro dos meus questionamentos, de como muitos profissionais das áreas médico-científicas vêm colaborando com o sistema de dominação, repressão e manutenção do poder autoritário. Além de discriminarem os sujeitos, tais “profissionais” colaboram com o sistema de vendas de medicamentos, que, a despeito de “estabilizarem o quadro das supostas doenças”, funcionam como a origem de problemas reais, dos quais o sujeito se torna refém, num ciclo permanente e vicioso. Vejo crianças saudáveis, dinâmicas e inteligentes serem subjugadas por seus professores, orientadores, médicos, psicólogos, psiquiatras, toda uma sociedade de profissionais que não sabe lidar com a inteligência múltipla e dinâmica de muitas crianças que representam um desafio a todo esse sistema educacional, o qual, longe de buscar transformações, insiste em fazem vergar ou condenar aqueles considerados inadequados. Essa inadaptação é a denúncia clara de um sistema falido e impotente face às transformações humanas e, por conseguinte, sociais. Como sempre, a sociedade tem muito apreço pelos revolucionários de séculos passados, principalmente por estarem mortos, e encarrega-se da eliminação sistemática dos seus contemporâneos, desafiadores da “autoridade”.

  7. Pedro Camargo disse:

    Muito bom o texto. A luta anti-manicomial é uma das principais formas de luta contra o poder, e, certamente, uma das principais lutas no Brasil. E ela é importante justamente para denunciar que o problema, muitas vezes, não está no individuo. Este apenas somatizaria a problemática social que nos cerca e oprime.
    É fato que nas últimas décadas houve uma explosão no consumo de medicamentos psicotrópicos, especialmente os prescritos para menores de idade. Estas pessoas estão sendo condicionadas desde cedo a acreditar que existe algo de errado com elas, e que, possivelmente, terão que passar a vida inteira dependentes de um remédio, de uma avaliação clínica. Isto também precisa ser denunciado.
    A dissidência, como o autor chama, não é doença. E é um aspecto importante da construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

  8. Dida disse:

    Sou professora e este artigo vem corroborar várias observações que fiz, também, em sala de aula, mas muitomais pela vida a fora. Existe um surto de medicalização, anteriormente dirigido às crianças, agora estendido aos adultos, onde qualquer um que não se submeta às regras, é considerado “doente” e deve se sujeitar ao “remedinho” ue o coloca no seu lugar. Não que não existam crianças e adultos perturbados, eles existem, mas são perturbados muito mais pelo sistema em que vivemos do que por “doença mental”. Muito bom o artigo de Bruce E. Levine e agradeço a Antônio Martins pela tradução. Abraços.

  9. Antonio Martins disse:

    Obrigado, Chico. Comemos mosca. Já está corrigido. Contribua sempre!

  10. Chico Orlandini disse:

    O texto é muito interessante a despeito do leitor pertencer ou não ao metiér.
    Ainda que seja irrelevante para a compreensão do conteúdo, mereceria uma revisão que evitasse ocorrências como “alto-controle” e “fracasou”, por exemplo.
    Abraços.

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