Para trás

Novo conto de Síndia Santos funde realidade e ficção — agora para iluminar a tragédia dos acidentes de trabalho

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Por Síndia Santos | Imagem: fotograma de Metropolis, de Fritz Lang

O acidente

Flávio não acreditava que moinhos de vento eram gigantes. Então naquela manhã, seguiu sua rotina de dependurar-se nas hélices de braços longos do resfriador de água da usina para lhe dar manutenção. Foi quando o gigante despertou e o arremessou diversas vezes contra as paredes até arrebentar a corda que o segurava. Rodando feito um saco estropiado, Flávio despencou. Foram doze metros de pregas de ar até espatifar-se no chão.

Despertou-morto assustado com o tempo o chacoalhando. Seria advertido por interromper o trabalho, por não contar com esse acidente na análise de risco, bastava olhar as feições assustadas de seus companheiros de trabalho para perceber que estava em má situação, talvez fosse até demitido.

Levantou-se depressa com o tempo lhe pisando os calcanhares e pôs-se a caminhar, mas por alguma razão, feito o avesso dos ponteiros do relógio, seguia em sentido contrário ao que se predispunha. Mais uma tentativa e lá ia ele na contramão. Uma olhadela para baixo e avistou calcanhares ao invés dos dedos dos pés, mais para cima viu a própria bunda. Girou no eixo e tudo continuava fora do lugar. Então Flávio se deu conta de que o quadril estava do avesso.

Fuga da usina

A ambulância chegou e na tentativa de ir ao encontro dos enfermeiros e explicar que tudo estava bem, se afastou como que às pressas.

— Está desorientado, a pancada lhe afetou a cabeça! Disse o enfermeiro magro e alto.

— Não podemos deixá-lo dormir. Advertiu o pançudo e baixo.

Quando despencou pela quinta vez, Flávio resolveu sair dali.

Sabia que se corresse para frente, iria para trás

então se pôs a correr para trás e seguir para frente

Flávio foi jogado sobre a maca. Batimento cardíaco, pressão, tudo anormal.

— O senhor sente alguma dor? Inquiria o gordo enquanto lhe apalpava as costelas.

— Não.

Os agentes da saúde se entreolharam. Mais uma pergunta:

— O senhor poderia nos dizer o que aconteceu?

— Bem, despenquei lá de cima… Mal terminou a frase e de novo Flávio caía, tentava andar, ia ao contrário e dava-se conta do quadril do avesso, os enfermeiros chegavam e de novo as perguntas. Era um círculo vicioso, problema sem solução. Então, quando Flávio despencou pela quinta vez resolveu sair dali. Sabia que se corresse para frente, iria para trás então se pôs a correr para trás e seguir para frente.

Alcançou os portões da usina, estranhamente todos percebiam o andar desajeitado, mas ninguém perguntava coisa alguma. Na medida que se afastava do emaranhado cinzento e infinito de ferro, gases e poeira, os passos ficavam mais largos e logo Flávio estava em casa. Seu pai assistia o noticiário da tarde sentado no sofá esburacado:

“Uma pessoa morreu e outra ficou ferida ao caírem da plataforma em que trabalhavam em Cubatão. Flávio Roberto da Silva Batista, de 26 anos, morreu no local e Anderson Benedito Ferreira, de 30, foi levado para o hospital”.

Flávio estava morto.

Dar a noticia ao pai

O velho levantou e desligou a tevê. Virou-se para a ex-esposa e perguntou sobre a notícia da televisão.

— Disseram o nome do Flávio. Ele argüiu diante da negativa.

— Confundiram com outra pessoa… a mãe de Flávio chorava lenta de calmantes.

Passava das seis e meia da manhã quando Vanessa, irmã mais nova de Flávio, chegou na casa onde ele costumava morar com a mãe, a esposa e a filha de três anos. Sentada no sofá velho, ela via a mãe caminhar perdida pela cozinha, sem encontrar o pó de café que se tornava urgente diante da água que fervia.

Vanessa passara a noite inteira ao lado do corpo do irmão no velório e agora tinha a tarefa difícil de dar a noticia da morte ao pai, que embora desconfiasse, ainda não sabia.

Os filhos de Jaqueline, a irmã mais velha da família, acabavam de acordar de uma noite atípica em que dormiram fora de casa. Naquela manhã também não iriam para a escola, tinham que enterrar o tio.

Vanessa acenou para que o pai sentasse ao seu lado e lhe entregou um copo de água e um calmante.

— Pai, o senhor sabe o que vou lhe contar, não é? O Flávio morreu ontem. O corpo foi velado de madrugada. Vamos enterrá-lo daqui a uma hora.

O relógio marcava sete da manhã. A mãe finalmente terminara de fazer o café. As crianças sentavam pelo chão carregando xícara e pão. Com o rosto escondido entre as mãos o pai chorava miúdo, numa resignação abafada. Insistia em não acreditar no que a filha lhe dizia:

— Erraram o nome, não erraram?…

Vanessa queria dizer que sim, mas passara a madrugada desconhecendo o corpo retorcido do irmão.

— A bacia dele está quebrada… O osso está do avesso por baixo da roupa. Seu rosto foi reconstruído, o calor já está abrindo furos na resina.

O enterro

Havia uma mesa posta sob a árvore do quintal da mansão em que morava num dos bairros mais ricos da cidade. Sentado, Omar apoiava os cotovelos nos filhos enrijecidos e na esposa que escorria oleosa tentando escapar do peso que a oprimia.

— Não vou ao enterro! Disse ele.

— Está certo. Eles podem estar enfurecidos! Concordou a esposa.

O filho mais novo queimava em lágrimas entupidas. Os três mais velhos comiam sem parar de suar. Todos engordavam dia após dia naquela mesa comprida de onde não parava de brotar pães, macarrão, coca-cola e pizza.

Sua BMW o esperava no portão, tentou alcançá-la,

mas ao invés de se aproximar, se afastava e acabou

chegando no terreno onde construiu sua primeira casa

Omar era o chefe da casa, dono da empresa onde Flávio trabalhava; vivia tão cheio do desejo de vencer que minhocas lhe entupiam a boca de idéias, saíam atravessadas pelo nariz, escapavam pelo canto dos olhos.

Naquele dia estava decidido a não deixar a morte de Flávio lhe tomar mais um dia de trabalho. Havia uma usina a ser alimentada e a rotina não podia estancar. Ele levantou apressado, com o tempo lhe apertando os passos. Sua BMW o esperava no portão, tentou alcançá-la, mas ao invés de se aproximar, se afastava e acabou chegando no terreno onde construiu sua primeira casa. Pôde assistir a esposa contar à vizinha:

— Todo o dia, ele chega do trabalho e se põe a medir o terreno. Não entendo de onde tira a idéia de que conseguirá construir três quartos, sala, banheiro, cozinha nesse terreno que levamos a vida toda para comprar.

Era um tempo em que a esposa o amava de incompreensão e ainda não se escondia no quarto, absorta do mundo, desinteressada de tudo. Ele caminhou até o terreno e tocou o chão:

— A sala vai ser aqui… Levantou-se decidido a se desvencilhar dos fios daquelas lembranças, mas ao invés de ir para frente, ele seguiu para trás e as lembranças o estrangularam. Rasgado em diversos pedaços ele tentou se reconstruir e então se deu conta de que seu quadril estava enviesado. Correu em desespero e chegou no velório, onde as mãos de uma menina de cabelos longos e olhos risonhos já o alcançavam. Ele não a conhecia, mas seus dedos longos passaram a abotoar botão por botão do casaco de lã que ele usava. Com a mão enleada à dele, ela o guiou até a entrada do velório, onde se afastou e foi ter com a mãe, Jaqueline, que se despedia do corpo do irmão.

Ele quis se afastar, e acabou por se juntar aos familiares. Jaqueline o olhava implodida, sua presença era escombros da manhã anterior, quando um funcionário foi até a sua casa e lhe deu a notícia da morte do irmão mais novo.

— Vocês mataram meu irmão?! Ele foi trabalhar e vocês o mataram! Não… não entra na minha casa! Saia daqui! Ela empurrava o funcionário que vencido pelos safanões logo se afastou.

Ali no velório, Jaqueline sequer esboçava um sinal de raiva. Era toda desamparo, já consciente de que bem algum poderia reparar aquele mal.

Omar viu o corpo de Flávio deixar a sala e ser enterrado na campa que ele comprara às pressas na noite passada. Descorçoado, se embrenhou nas ruas do cemitério. Já era noite e ele sabia que nunca mais conseguiria voltar para casa.

Quase 3 mil trabalhadores morrem a cada ano, no Brasil, vítimas de acidentes de trabalho, mas a tragédia não desperta comoção na mídia comercial. É como se ocorresse a cada duas semanas, em algum ponto do país, um grande acidente aéreo sem sobreviventes — e a opinião pública não fosse informada.

No ano de 2007, três trabalhadores morreram em dois meses (30/06 a 30/08) na siderúrgica Cosipa. Entre eles, Flávio Roberto da Silva Batista, de 26 anos. Todos eram vinculados a empresas terceirizadas, atuando nas piores e mais insalubres áreas da usina, com salários que correspondem a metade daquele pago pela companhia. O acidente que matou Flávio inspirou este conto.

Sindia Santos é colaboradora de Outras Palavras e Biblioteca Diplô. Jornalista, pós-graduada em Jornalismo Literário pela ABJL (Academia Brasileira de Jornalismo Literário), adora narrativas e é movida por um imenso encantamento pelo ser humano e tudo o que ele é capaz de criar. Atualmente mora no Rio de Janeiro. Mantém o blog Fiandeira [“Fia quem confia que o algoodão pode virar linha, que linha entrelaçada é tecido, palavra, texto”]

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Um comentario para "Para trás"

  1. Francilene Oliveira disse:

    Sua escrita me encanta!

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