Tem rave na floresta

Fenômeno musical brasileiro, tecnobrega expande-se internacionalmente, valoriza sua ancoragem indígena e consolida-se como referência de identidade cultural na periferia paraense

Joelma, da Banda Calypso

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Por Ana Paula Marques*

Quem ouve falar em Belém do Pará, associa a capital  à suas confundíveis iguarias amazônicas, aos seus momumentos, parques, rios e museus, à forte presença da cultura indígena e sem dúvidas, às suas músicas. Terra de Pinduca, Dona Onete e da milionária Calypso, hoje o Pará abriga um movimento tão forte que não é visto no Brasil desde os “tempos áureos” do Manguebeat pernambucano: o Tecnobrega.

O Tecnobrega é a fusão da tradicional música brega (jovem guarda, bolero, seresta, etc.) com a música eletrônica. Sua derivação vem de ritmos folclóricos paraenses como o Carimbó, Siriá, Lundu e outros gêneros populares como as guitarradas, incorporando sintetizadores e batidas eletrônicas. Data-se sua origem no final dos anos 80 e início dos anos 90, durante a ascenção do Brega Pop, ritmo também paraense, o qual tem como vertente principal o brega calypso, da conhecida Banda Calypso que estourou Brasil afora, com todo o seu estilo inusitado. Segundo os precursores do movimento, dentre eles o DJ Tonny Brasil, o tecnobrega foi uma tentativa incosciente de misturar a música eletrônica com a música tradicional amazônica.

Movimento surgido dentro das favelas da cidade, que possui uma enorme desordem urbanística, hoje o Tecnobrega é uma referência de identidade cultural para muitos jovens da periferia paraense, devido o seu caráter social, pois a música, produzida de maneira artesanal, interfere no cotidiano das pessoas. O estilo se destaca principalmente por ter se desenvolvido independentemente das grandes gravadoras, criando um mercado com formas alternativas de produção e distribuição ao eixo Rio-São Paulo. A lógica antiga do mercado fonográfico começa a decair, mudando um pouco os conceitos já pré-estabelecidos pelo mercado da música de maneira geral.

“Faz o T”, “Faz o S” e derivados

Aparelhagem Tupinambá/ Imagem: Documentário Brega S/A

O mercado do Tecnobrega gira, principalmente, em torno das festas físicas, denominadas “festas de aparelhagens”. Essas boates itinerantes acontecem nos bairros e contam com um “altar sonoro”: modernos equipamentos de som, iluminação e efeitos visuais, incluindo pirotecnia, além de uma grande estrutura e produção, que perpassam entre os bilheteiros e  garçons, sendo assim, uma fonte de renda para muitas pessoas. As festas servem como local de difusão dos novos sucessos, onde os DJs tocam as novas canções disponibilizadas pelos produtores das bandas. O público da aparelhagem é composto basicamente dos trabalhadores braçais da periferia que têm pouco acesso ao divertimento e fazem dessas festas válvula de escape.

Quando uma música ou artista torna-se um sucesso em uma festa de aparelhagem, a divulgação no mercado aumenta através da reprodução não-autorizada dos discos, como por exemplo, através da coletânea Vetron, a mais vendida atualmente no mercado “Ver o Peso” em Belém. Segundo o DJ e produtor Patrick Tor4, em um documentário sobre o Tecnobrega, produzido pela TV Brasil, é uma espécie de ITunes físico, que tem a internet como arma promocional. Além disso, muitos artistas contam com a venda de seus produtos a preços acessíveis durante os shows. Outra forma de se ganhar dinheiro com o Tecnobrega e divulgar as bandas é através da comunicação. As rádios paraenses possuem programas com parte da programação direcionada para o estilo e alguns DJs produzem até programas de TV improvisados, recheados de jingles promocionais.

A música paraense, desde o carimbó até a lambada, sempre recebeu influências das batidas americanas, européias e principalmente do Caribe, através das Guianas, revelando uma verdadeira troca de ritmos. Nos últimos anos, surgiram algumas vertentes do Tecnobrega, a mais conhecida delas é o eletromelody, versão mais rápida e mais pesada, misturada com ritmos como a dance music européia, provando que o movimento além de democrático, é totalmente experimental. A praticidade também é um ponto forte: os compositores utilizam o Fruity Loops, software que chegou à Belém através de cópias piratas baixadas na internet e também recorrem ao cdjota e playbacks durante os shows. Porém, os artistas têm consciênia de que essas batidas eletrônicas, com letras um tanto polêmicas, viraram música comercial e música comercial é descartável. Segundo o Dj Dinho, responsável por uma das maiores aparelhagens de Belém, a Tupinambá (do famoso “Faz o T”), o Tecnobrega não vai ser música do passado, daquelas que se ouve quando dá saudade.

Do Pará para o mundo

Nos últimos meses, a mídia massiva vem dando uma maior atenção ao movimento. Talvez uma das responsáveis seja a cantora Gaby Amarantos, nascida e criada no bairro de Jurunas em Belém do Pará, que conquistou o Brasil com a música “Ex Mai Love”, tema de abertura da novela “Cheias de Charme”. Apelidada de “Beyoncé do Pará”, já participou de vários programas televisivos. Seu disco, produzido por Carlos Eduardo Miranda, um dos produtores mais requisitados do país, tem a participação de nomes como Fernanda Takai, Thalma de Freitas e Dona Onete. Segundo o jornalista Pedro Alexandre Sanches, do blog Farofafá, “Gaby vive com total consciência o processo de fixar uma identidade à qual o resto do Brasil ainda não está acostumado (talvez nem o próprio Norte do país esteja): a do artista brasileiro firmemente ancorado em suas origens indígenas. Gaby Amarantos é a artísta brasileira que mais entende de identidade neste início do século XXI”.

Gaby Amarantos | Foto: Divulgação

Gaby Amarantos também foi responsável por disseminar a música da periferia paraense em clubes e festas da Europa e dos Estados Unidos. O single “Águas de Março” gravado por ela em parceria com o DJ João Brasil, foi lançado por um selo alemão de música eletrônica. Organizados em pequenos selos, dezenas de DJs canadenses, americanos, alemães, holandeses e ingleses promovem uma espécie de intercâmbio de funk, tecnobrega, kuduro, guarachero, calipso, merengue e cumbia, gêneros musicais produzidos em países como Brasil, Colômbia, México, Angola, Costa do Marfim e África do Sul. Oriundas de países que muitas vezes sequer tem indústria fonográfica estabelecida, as músicas são “traficadas” por meio de CDs caseiros, pen drives e sites de download gratuito. Hoje o Tecnobrega ocupa uma marca considerável entre os gêneros musicais brasileiros mais exportados, juntamente com a bossa nova, a lambada e o funk. Porém, os brasileiros também andam explorando bastante o Tecnobrega. Um dos exemplos mais recentes é o cantor Lucas Santtana, que gravou “Ela é Belém”, música que utiliza samplers e batidas eletrônicas inspiradas no ritmo. Recentemente ele declarou ao O Rebucetê que “A cena de Belém é muito importante e tá num momento bom. Está aparecendo mais, tem uma novela da Globo que mostra a cultura tecnobrega e por isso, acabou se tornando mais popular. Mas a cena existe a muito tempo, desde o Verequete, passando pelo Pinduca. É uma cena muito interessante, pois tem influência de cima, do Caribe, com uma mistura do indígena, do negro. Essa cena foi evoluindo e ganhando esse toque eletrônico, com o tecnobrega, e mostrando uma autenticidade muito forte, mas independente de estar vivendo uma exposição muito grande ou não, indubitavelmente é algo de grande importância para o Brasil, sempre foi e vai ser cada vez mais”. Além dele, os paraenses Felipe Cordeiro e Jaloo utilizam as batidas de uma forma ainda mais criativa, como provam os seus trabalhos.

Em meio à polêmicas, existe hoje um projeto de lei em que se propõe que o Tecnobrega se transforme em patrimônio cultural do estado do Pará. Sob os argumentos contra a suposta “poluição sonora” causada pelas aparelhagens, existe um subtexto bem claro: o preconceito contra manifestações culturais produzidas de baixo pra cima na pirâmide social. O Carimbó é atualmente considerado a manifestação cultural paraense por exelência. Porém, no final do século XIX ele era proibido de ser tocado, sob a argumentação de que os batuques e os versos gritados estimulavam a baderna e o distúrbio. Portanto, não se trata de defender a institucionalização do Tecnobrega como cultura, pois ele não precisa disso, ele aprendeu a se virar sozinho.

Ana Paula Marques é colaboradora de Outras Palavras e uma das editores do site O Rebucetê, onde este texto foi originalmente publicado. O título do artigo é, também, o nome do CD  cd da banda de tecnomelody Ark.

Veja mais:

BregaS/A: Dirigido por Vladimir Cunha e Gustavo Godinho, “Brega S/A” é um documentário que pretende retratar esse peculiar fenômeno cultural e social através de personagens como DJ Maluquinho, que se auto-pirateia e enriquece sem precisar de empresário ou gravadora.

GabyAmarantos – Treme (2012) – Esteve entre os discos mais aguardados de 2012, segundo a revista Rolling Stone.

DVDTecnomelody Brasil – Festival de Belém do Pará que reúne grupos de Tecnomelody. Lançado pela Som Livre.

Gang do Eletro – O grupo desenvolve uma mistura entre o tecnobrega, a música caribenha, o eletro e a house, criando um novo ritmo, o eletromelody.

Jaloo – Provável resultado de um encontro tórrido entre Björk e Joelma do Calypso às margens do Rio Amazonas, ou quem sabe até uma possível resposta ao que aconteceria se a cantora Sia Furler nascesse em algum lugar no interior da selva amazônica.

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