Tanta água e a vida das horas mortas

Diretoras uruguaias estreantes produzem filme sobre tempos aparentemente melancólicos, em que se operam transformações invisíveis. Adolescente concentra tensão

admin-ajax (1)

.

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Alfred Hitchcock tinha uma máxima: “O drama é a vida sem as partes chatas”. O que dizer então de toda uma linhagem de filmes que se detêm justamente nas “partes chatas”, naqueles tempos mortos em que parece não acontecer nada? Não é nada fraca essa vertente, na qual poderíamos incluir de Ozu a Lucrecia Martel, passando por Antonioni e pelo Wenders da primeira fase, a despeito das imensas diferenças culturais, filosóficas e estéticas que os separam.

Pois bem. É a essa linha que pertence o ótimo Tanta água, longa-metragem de estreia das uruguaias Ana Guevara e Leticia Jorge, muito bem recebido no último festival de Berlim.

No filme, Alberto (Néstor Guzzini), quiroprático quarentão divorciado, aproveita as férias para levar o filho pequeno (Joaquin Castiglioni) e a filha adolescente (Malú Chouza) a uma estância termal. Chove quase o tempo todo e eles ficam confinados a um chalé sem televisão nem computador.

Clausura e desconforto

A situação é mais exasperante para a garota, Lucía, que nos hormônios de seus 16 anos oscila entre o enfado e a inquietação. É ela, na verdade, a grande protagonista do filme, a personagem em que se concentra a tensão e se operam as transformações.

A sensação de clausura e desconforto é reforçada por uma decupagem que privilegia os closes e pormenores em enquadramentos obstruídos por algum objeto (ou distorcidos pela água), mostrando quase sempre apenas partes dos corpos e sonegando ao espectador os planos abertos, as visões de conjunto.

Nos ínfimos detalhes é que observamos o drama íntimo de cada  personagem. Pequenos eventos – como o encontro de Lucía com outra adolescente em férias, ou o tombo de bicicleta de seu irmão menor – suscitam revelações e mudanças sutis em cada um e no jogo de relações.

Arte da melancolia

A julgar pela literatura de autores como Juan Carlos Onetti e Mario Benedetti e pelo cinema de diretores como Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll (o mais famoso deles é Whisky), os uruguaios têm uma singular capacidade de captar e expressar a melancolia do tempo que passa, da “vida que poderia ter sido e que não foi”.

Tanta água de certa forma confirma essa tendência e, paradoxalmente, foge dela, ao centrar seu foco em Lucía, a adolescente que traz em si o germe da rebeldia e da transmutação. Ainda não foi nestas férias, mas quem sabe nas próximas?

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *