Spotlight: sobre pedofilia e uma mídia que morreu

Filme de Tom MaCarthy expõe, enxuto e sem melodramalhões, abusos de crianças por padres. Obra relembra um tempo em que jornais comerciais cumpriram papel civilizatório

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Vencedor do Oscar, filme de Tom MaCarthy expõe, enxuto e sem melodramalhões, abusos de crianças por religiosos. Obra relembra um tempo em que jornais comerciais cumpriram papel civilizatório

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

De quando em quando, a Academia (isto é, seu corpo de votantes) decide premiar um filme mais pela relevância ou contundência de seu “assunto” do que propriamente por seu valor cinematográfico. É o caso evidente de Spotlight: segredos revelados, de Tom McCarthy, assim como foi o de Doze anos de escravidão.

São os filmes “sobre”: sobre o Holocausto, sobre a escravidão, sobre a indústria do tabaco, sobre a ameaça nuclear. Em Spotlight, como todos sabem, o assunto é o abuso sexual de crianças e adolescentes por padres católicos, especialmente em Boston, mas não só.

Pois bem. O que torna o filme mais interessante, a meu ver, é o entrelaçamento desse núcleo temático com outro, o do funcionamento de um grande jornal, o do embate diário entre a busca da informação escondida e as injunções de interesses externos (políticos, econômicos, religiosos). Num momento em que a imprensa, em especial no Brasil, parece desorientada, para não dizer moribunda, é revigorante lembrar que ela já cumpriu um papel civilizatório, e não faz muito tempo.

O presente narrativo de Spotlight são os anos 2001-2002, mas a investigação dos repórteres amplia o leque de acontecimentos para as três décadas anteriores, bem como um letreiro explicativo ao final avança até os dias de hoje.

Eficiência narrativa

Do ponto de vista da construção narrativa, o filme é de uma objetividade e uma eficiência impecáveis, dentro dos padrões do cinema realista convencional. Em face de tantos pontos nevrálgicos – os abusos dos padres, a saga dos jornalistas, as relações entre poder, igreja e mídia, o drama das vítimas, as crises de consciência dos religiosos –, Tom McCarthy optou pela prudência. Sua mise-en-scène discreta, “invisível”, contrasta com o que um crítico chamou de “direção ostentação” de Alejandro Iñárritu.

O foco está nos quatro ou cinco jornalistas da equipe Spotlight do jornal Boston Globe, especializada em grandes reportagens realizadas ao longo de muitos meses e mantidas em sigilo até serem publicadas. Sob o comando do editor Walter Robinson (Michael Keaton, felizmente contido, sem caretas), eles atacam em várias frentes: as vítimas, os advogados, os padres, a hierarquia eclesiástica, a própria imprensa.

É uma saga acompanhada com vibração, mas sem apelação ostensiva: não vemos os dramas familiares dos protagonistas que costumam infestar esse tipo de filme para forçar uma identificação emocional com os personagens e suscitar pequenas e grandes catarses: o marido que não dá atenção à esposa frustrada, a mãe que não tem tempo para cuidar do filho autista, o filho que está com o pai agonizando na UTI, essas coisas. Mesmo quando aborda casos dilacerantes de vítimas de abuso, é um melodrama enxuto, que se mantém nos limites da decência.

Num mundo ideal, Spotlight poderia ganhar o Oscar de melhor roteiro, enquanto o prêmio principal ficaria para um filme de maior brilho propriamente cinematográfico, como Mad Max ou Os oito odiados. Mas o mundo ideal só existe na nossa cabeça (e em cada cabeça ele é diferente).

Sobre o vencedor do Oscar de filme estrangeiro, O filho de Saul, escrevi brevemente aqui quando foi exibido na Mostra de São Paulo.

Nossa irmã mais nova

O mais novo longa-metragem do japonês Hirokazu Kore-eda, Nossa irmã mais nova, é o que se costuma chamar de “filme encantador” e deverá cair nas graças dos espectadores sensíveis aos dramas familiares tratados com delicadeza e doçura.

Doçura demais, talvez. Na história de três irmãs da cidade litorânea de Kamaruka que, após a morte do pai distante, descobrem a existência de uma meia-irmã mais nova, Koreeda volta ao tema das relações familiares no Japão contemporâneo, que ele já abordara em obras marcantes como Ninguém pode saber (2004) e Pais e filhos (2013), mas aqui o drama de certa forma perde o gume, as tensões são amortecidas, as arestas aparadas de modo um tanto fácil.

Todo mundo é bom no filme, que ganhou o festival de San Sebastián, na Espanha. Até o executivo de um banco é um humanista sentimental. Koreeda, discípulo de Ozu mais nos assuntos do que na forma (está longe do rigor e da precisão do mestre), trafega no limite entre a aceitação serena, meio zen, das agruras da vida e o mero conformismo, o otimismo bobo.

Mas é muito agradável acompanhar as ações bonitas dessas moças bonitas em cenários bonitos: o mar, a montanha, as cerejeiras em flor. Os sentimentos destilados em atividades simples (colher ameixas, fazer um licor, comer um bolinho, fazer um gol no futebol), em harmonia com o tempo cíclico das estações, das colheitas, das marés. Um respiro salutar no meio do frenesi e do sufoco do dia a dia.

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