Situacionismo, forma atual de resistência?

Criado por marxistas anti-autoritários e artistas de vanguarda, movimento propunha zanzar pelas cidades, para imaginá-las sob lógicas não-capitalistas

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Guy Debord, Michèle Bernstein e Asger Jorn, três situacionistas

 

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Por Arlindenor Pedro 

Os situacionistas europeus de meados do século XX têm um lugar destacado na história devido à forma singular que tinham de encarar a vida e vivê-la .

Recém-saídos da guerra, buscaram contrapor suas idéias libertárias às propostas de reconstrução do mundo europeu originárias da burguesia liberal e turbinadas pelo Plano Marshall. Estas apresentam uma forma de urbanismo mais de acordo com a sociedade moderna de consumo. Neste momento, as cidades se modificam, alterando inclusive a relação do cidadão com o espaço urbano.

“Defendemos o Urbanismo Unitário como negação do urbanismo que não constrói nada ‘sobre o terreno’ e sim ‘sobre o papel’. Buscamos um urbanismo de novas espacialidades que permitam modos de vida em consonância com processos de subjetivação apropriados, que integrem a cidade em uma rede permanente de interações com as devidas ressonâncias nas construções intersubjetivas inerentes à pluralidade da vida comum” – assim se colocavam os situacionistas, contrapondo-se, inclusive, às propostas modernistas de Le Corbusier, que naquela época empolgava segmentos importantes da esquerda e dos comunistas.

Enquanto a arquitetura modernista organizava o espaço, impedindo a revolução, os situacionistas viam o espaço urbano, em seu aparente caos, como o campo profícuo para o desenvolvimento de uma arquitetura capaz de incentivar relações pessoais que impelissem os homens para contestação e a revolta, tirando-os da passividade e alienação. Os situacionistas chegaram então a uma convicção exatamente oposta àquela dos arquitetos modernos. Enquanto estes acreditavam, em um primeiro momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo.

Armados com os conceitos da Psicogeografia – concebida como “ciência” destinada a analisar e decifrar as interações entre humanos e contextos ambientais –, os situacionistas desenvolveram práticas em que buscavam avaliar os efeitos do meio ambiente, ordenado conscientemente ou não, sobre o comportamento afetivo e os sistemas perceptivo e cognitivo dos indivíduos. Trata-se de um procedimento estratégico utilizado pela Internacional Situacionista e tornado público nos doze números da Revista da IS, através de magistrais artigos de seus integrantes — destacando-se aí Guy Debord e Raoul Vaneigem.

Uma das ferramentas principais para a construção dessa nova forma de olhar os grandes espaços urbanos foi a prática da deriva (teoria da deriva), utilizada na formulação dos conceitos libertários sobre urbanismo, nas suas mais variadas formas, tendo em Debord um dos mais entusiastas praticantes e defensores.

“As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve tornar-se apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível pensar que as reivindicações revolucionárias de uma época correspondem à ideia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso inventar novos jogos”. Assim os situacionistas definiam a “deriva” em sua Revista IS.

“Pode-se derivar sozinho, mas tudo indica que a repartição numérica mais frutífera consiste em muitos pequenos grupos de duas ou três pessoas chegando a uma mesma tomada de consciência, o recorte das impressões desses diferentes grupos devendo permitir conclusões objetivas. É desejável que a composição desses grupos mude de uma deriva a outra. Acima de quatro ou cinco participantes, o caráter próprio da deriva decresce rapidamente, e em todo caso é impossível superar a dezena sem que a deriva se fragmente em muitas derivas dirigidas simultaneamente. A prática deste último movimento é, aliás, de um grande interesse, mas as dificuldades que ele desencadeia não permitiram até o presente organizá-lo com amplitude desejável.

“A duração média de uma deriva é um dia, considerado como o intervalo de tempo compreendido entre dois períodos de sol. Os pontos de partida e chegada, no tempo, em relação ao dia solar, são indiferentes, mas é preciso notar, entretanto, que as últimas horas da noite são geralmente impróprias para a deriva.

“Esta duração média da deriva não tem senão valor estatístico. Logo ela se apresenta diferente de sua pureza, os interessados evitando dificilmente, no começo ou no fim desse dia, distrair-se por uma ou duas horas para empregá-las em ocupações banais; no fim do dia a fadiga contribui muito para esse abandono. Mas, sobretudo, a deriva se desenvolve com frequência em algumas horas deliberadamente fixadas, ou mesmo fortuitamente durante muitos breves instantes, ou, ao contrário, durante muitos dias sem interrupção. Apesar das paradas impostas pela necessidade de dormir, certas derivas com intensidade suficiente são prolongadas por três a quatro dias, até mesmo mais que isso. É verdade que, no caso de sucessão de derivas durante longo período, é quase impossível determinar com alguma precisão o momento em que o estado de espírito próprio de uma deriva dá lugar ao de outra.

“A influência das variações do clima sobre a deriva, embora real, não é determinante senão no caso de chuvas prolongadas, que a impedem quase absolutamente. Mas trovoadas ou outras espécies de precipitação são, ao contrário, propícias…” (in Internatonale Situationniste, pp.51-55).

Eu acentuaria, então, que devemos ter em conta que o acaso é um elemento determinante no processo da deriva. Portanto, o planejamento para este tipo de estudo não deve ultrapassar a escolha do ponto de partida. Nao se trata aí de um passeio turístico e nem de se querer chegar a um local definido. O ato de se perder no espaço e no tempo tem importante reflexo no conteúdo do que se colhe: com sapatos confortáveis, água, sanduíches, máquinas fotográficas, papel para anotações, abrigo para o sol etc, devem aqueles que se lançam na deriva deixar o ambiente envolvê-los e ir caminhando ou parando, muito de acordo com a percepção do espaço e das pessoas que nele transitam, vivem ou apenas fazem comércio.

Após a deriva, deve-se sistematizar a empreitada, através das impressões, das imagens, dos sons e das anotações colhidas.

Por que viramos em determinada rua e não em outra? Que impressões trouxeram a praça onde paramos para conversar? Como variou a temperatura durante as mudanças de local? Que tipos vimos pelos caminhos? Que impressão nos dão as fachadas encontradas?

Aqui no Brasil, com o processo de integração da economia aos grandes mercados globais, nossas metrópoles estão passando por um processo de grandes transformações.

Em apenas algumas décadas, num movimento fantástico, fez-se o transplante de levas inimagináveis de pessoas para as grandes cidades. Em pouco tempo, deixamos de ser um país rural. Hoje quase 90% da população vive nas áreas urbanas, num processo constante e desordenado que transformou essas cidades em fonte de problemas insuperáveis. Impossível uma máquina pública que dê conta das questões apresentadas por essas megacidades: transporte insuficiente, insegurança, precárias condições de deslocamento, sistema de saúde e atendimento médico de má qualidade são alguns dos elementos que as transformaram em verdadeiros barris de pólvora, onde reina a insatisfação em todos os segmentos sociais.

Dentro do conceito de sociedade da mercadoria, as próprias cidades transformaram-se em produtos e, como tais, são vendidas no mercado internacional do turismo como centros de lazer, de sexo, de negócios, de esporte etc, obrigando os seus moradores a uma rápida adaptação à nova finalidade comercial da cidade. O ato de morar, de ocupar um imóvel, passa a estampar uma situação na qual o valor de uso (as condições reais da moradia) submete-se ao valor de troca (o preço de mercado da moradia). Mora-se, ou tem-se um ou mais imóveis em um bairro, de acordo com o valor adquirido no mercado imobiliário.

Impulsionadas por esse mercado, áreas que antes se colocavam como reserva da especulação (e por isso não recebiam, por décadas, investimentos públicos) passaram a viver recentemente mudanças radicais, para atender aos traçados feitos nas pranchetas dos investidores em eventos como Copa de Mundo, Olimpíadas etc. Para isso, populações são deslocadas e instaura-se um momento de grande especulação imobiliária com alta nos preços de compra, aluguéis, serviços etc, que atinge não só os bairros alvos mas a cidade como um todo. Esses espaços passam a ter um aspecto diferenciado do que tinham até então, transformando-se em vitrines do consumo turístico, das quais se afasta tudo aquilo que destoa do que foi imaginado pelos arquitetos de plantão — incluindo-se aí as massas pobres, que devem ser escondidas em outras áreas da cidade.

Projetos como “Porto Maravilha” e “Cidade Olímpica”, no Rio, e outros semelhantes em outras cidades, são implementados a toque de caixa, alterando-se traçados e a forma de viver de importantes segmentos da população. Santuários ecológicos, como o Cocó, em Fortaleza, dão lugar a vias expressas e viadutos para atender à ganância dos investidores, que vorazmente vão ocupando todos os espaços, em nome de um pretenso progresso.

Na década de 50/60, na Europa, a atividade política dos situacionistas, dentre outros, conseguiu impedir a destruição de inúmeros logradouros em cidades importantes como Paris, Amsterdã etc. Suas atitudes, que atingiram o auge nas grandes insurreições de 68 em toda a Europa, foram decisivas na conscientização de parcelas importantes da população de diversos países, as quais exigiram melhores condições de vida nas cidades que habitavam.

Penso que movimentos atuais no Brasil como o Catraca Livre, Ocupar Cocó, Ocupa Câmara e outros, que têm levado milhões de pessoas às ruas, são filhos diretos das manifestações e movimentos de debate e contestação daquela época, em que os situacionistas se destacavam.

Suas ideias são atuais e têm influenciado muitos ativistas desses movimentos, haja vista a intensa republicação de seus artigos e apontamentos, notadamente os que saíram na IS.

A prática da deriva nessas grandes metrópoles pode tornar-se um valioso instrumento de compreensão da vida real, a vida-vivida, que nelas ocorre, ultrapassando-se o irreal que nos é vendido através de peças publicitárias das agências que servem às grandes corporações imobiliárias.

Derivar pelo Bexiga, em São Paulo, pela Rua do Jogo da Bola, na zona portuária do Rio, ou mesmo pelo centro de Recife, Fortaleza, Belo Horizonte e outras cidades certamente será um grande prazer, pois são áreas que estão alterando sua forma centenária de viver e logo entrarão na lógica da sociedade da mercadoria. Os apontamentos e a contextualização da realidade desses logradouros tornam-se imperiosos para o nascimento de uma nova realidade, que virá após o capitalismo. Para isso, basta nos apropriarmos das novas tecnologias da Internet, You Tube etc e registramos nossas experiências .

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5 comentários para "Situacionismo, forma atual de resistência?"

  1. Martha disse:

    Situação corporal:
    Digno de espanto, se bem que vulgaríssimo, e tão doloroso quanto
    impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravelmente
    curvados ao peso do jugo, esmagados não por uma força muito grande, hercúlea,
    mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só
    homem [lula] cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só (lula –, o vigarista apedeuta).

    O PT é cafona e barango.
    O que é sustentável para o Brasil:
    educação de alto nível. Alta cultura.

  2. Martha Hirsch disse:

    Arte.
    Literatura.
    Autenticidade.

    Educação. Geral. E irrestrita.

    O Brasil precisa urgente voltar a qualidade de sua vida diária boa. Educação nas Escolas. Ter músicas realmente boas no dia a dia. E bons hospitais. O Brasil precisa urgente voltar a qualidade de sua música. PT venera a Indústria Cultural. Melhor para dominar. Literatura e alta cultura é de que o Brasil necessita a tempo nas nossas escolas e na educação das curuminhas. E de música boa. Esteticamente boa. A frente de tudo a qualidade de 1ª. Estética.

    O Jogo de Cartas da Educação Infantil: Seria o bom gosto nas escolas. Tal qual Tarkovsky. Ou como o cinema antigo (de qualidade brasileiro).

    Eis: 1º lugar educação dos mais jovens, para se ter solidez no futuro próximo. Necessitamos muito de bons hospitais. E escolas boas para os curumins. Precisamos de alta-cultura. Alta literatura; Kafka, Drummond, Dostoievski, Machado de Assis, Aluísio Azevedo do Maranhão. De arte autônoma. E educação verdadeira nas escolas dos pequenos. O que não houve. O Brasil vive consequência de nosso passado político bem atual (2 décadas). Fome, falta de moraria, atraso, breguices, escolas ruins, falta de hospitais: concreto… O resto são frasinhas® poderosas: Eis aí a pura e profunda realidade sociológica e filosófica: A “Copa das Copas®” do PT® em vez de se construir hospitais, construiu-se prédios inúteis! A Copa das Copas®, do PT© e de lula©. Nada se fez em 13 anos para esse mal brasileiro horroroso. Apenas propagandas e propagandas e publicidade. Frasinhas. Qual o poder constante da propaganda ininterrupta do PT®?

    Apenas um frio slogan, o LUGAR DE FALA do Petismo® (tal qual “Danoninho© Vale por Um Bifinho”/Ou: “Skol®: a Cerveja que desce Redondo”/Ainda: “Fiat® Touro: Brutalmente Lindo”). Apenas signos dessubstancializados. Sem corporeidade. Aqui a superficialidade do PETISMO®: Signos descorporificados. Sem substância. Não tem nada a ver com um projeto de Nação. Propaganda pura. O PT é truculento.

    PT = desonra. Ignomínia. Indigno. Poluição. Realidade crua.

  3. Ralf disse:

    Está escrito Catraca Livre mas o correto é Movimento Passe Livre. Catraca Livre é um site de entretenimento.

  4. arlindenor disse:

    Um bom texto sobre o assunto
    serendipidade-encontros-com-acaso-
    Em um mundo cada vez mais racionalizado e programado, que limita a liberdade na ciência, nas relações sociais e na internet, pesquisadores defendem o retorno à serendipidade, a arte de descobrir o inesperado
    Por Bolívar Torres
    Inventado em 1754 pelo inglês Horace Walpole, o termo serendipidade expressa um conceito velho como o mundo: a arte de encontrar o que não se está procurando. Sua origem está na milenar lenda oriental “Os três príncipes de Serendip”, sobre viajantes que, ao longo do caminho, fazem descobertas felizes sem nenhuma relação com seu objetivo original. Trata-se de um estado de espírito, um poder de percepção aberto à experiência, à curiosidade, ao acaso e à imaginação, que ao longo dos séculos esteve na origem de grandes eventos históricos (como a invenção acidental da penicilina por Alexander Fleming ou a descoberta da América por Cristóvão Colombo).
    Embora obscura e de difícil pronúncia, a palavra está cada vez mais presente em pesquisas acadêmicas. Esquecido por muito tempo, o conceito virou bandeira de diversos especialistas, que encontraram na antiga lenda oriental um contraponto a uma sociedade demasiadamente controlada e programada, que não deixa margem para o risco e as descobertas fortuitas. Em artigos, livros e conferências, eles lamentam a perda da capacidade de se deixar levar pelo acaso, seja na pesquisa científica, nas relações sociais e até mesmo na internet, onde os caminhos antes sinuosos do hipertexto se encontram ameaçados.
    Autora de “Serendipité: Du conte au concept” (“Serendipidade: Do conto ao conceito”, em tradução livre), lançado em janeiro na França pela Éditions du Seuil, Sylvie Catellin acredita que a história de Serendip nos devolve uma maneira mais livre de apreender o mundo e de se relacionar com o conhecimento.
    — Em todos os campos, seja científico, pessoal ou artístico, vivemos uma ditadura do número, da rentabilidade, dos modelos fechados e hiperracionalizados — aponta Sylvie, professora de ciência, cultura e comunicação na universidade de Versailles-Saint-Quentin-en-Yvelines. — O sucesso da serendipidade é uma resposta a este mal-estar contemporâneo. É algo muito forte, porque vem lá de trás, de um conto milenar, que viajou por todas as culturas, línguas e épocas. Com a serendipidade, você inventa suas regras e desvia dos caminhos batidos. Ela reumaniza o mundo e nos devolve a fantasia, a imaginação, a consciência, o prazer de ver aquilo que os outros não veem.
    Segundo Sylvie, há um mal-entendido recorrente quando o assunto é serendipidade. Ao contrário do que muitos pensam, a palavra não remete apenas a achados acidentais, mas a uma mistura de sagacidade e acaso. Para fazer grandes descobertas, é necessário prestar atenção aos sinais — e saber interpretá-los. Afinal, as revelações dos príncipes de Serendip só foram possíveis porque eles sondaram as surpresas à sua volta, expandindo seus horizontes com a mente preparada.
    — Todas as grandes descobertas tiveram em seu processo de origem a serendipidade, porque nunca sabemos exatamente onde é preciso pesquisar — afirma Sylvie. — E isso mostra que não podemos programar as descobertas. Por outro lado, há toda uma corrente da ciência atual que trabalha com objetivos, resultados e calendários pré-definidos. São pesquisas que acabam seguindo apenas uma única direção.
    A própria lógica do mundo contemporâneo, dividido em nichos e grupos de afinidades, não promoveria o espírito explorador. Diretor do Centro para Mídia Cívica do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e autor de diversos livros sobre a liberdade na internet, o americano Ethan Zuckerman é um dos principais críticos da homofilia — a tendência das pessoas em criar vínculos com aqueles que compartilham os mesmos interesses, valores,cultura, etc. Um fenômeno crescente tanto na estrutura de nossas cidades, fragmentada em guetos sociais, culturais e econômicos, quanto na mentalidade comunitária que tomou conta da internet. Como os sistemas de pesquisa, os aplicativos para celular e os filtros das redes sociais nos oferecem a possibilidade de buscar exatamente aquilo que queremos (ou, pelo menos, aquilo que acreditamos que queremos), estaríamos, em todos os aspectos de nossas vidas, trocando o risco pela segurança, sugere Zuckerman.
    — Serendipidade e risco estão intimamente conectados — explica Zuckerman. — E um dos problemas do mundo contemporâneo é que não há estímulo para o risco.
    Deslocamentos previsíveis
    Zuckerman vê semelhanças entre a evolução dos espaços urbanos e do funcionamento das redes digitais. Em sua origem, ambos se apresentavam como um motor de serendipidade ao ligar diferentes tipos de pessoas e promover o encontro com o estranho e o inesperado. Mas, assim como até mesmo os moradores das capitais cosmopolitas se isolam em guetos, a internet passou a fechar seus usuários em bolhas de afinidades. As redes sociais conectam cada vez mais indivíduos — só que a maioria deles com interesses muito parecidos.
    — A maior parte dos moradores das cidades se desloca por um número muito pequeno de lugares — analisa. — Poucas pessoas experimentam o que uma cidade pode oferecer. E essa tensão entre a oportunidade de diversidade oferecida pela cidade e a realidade do nosso isolamento é muito próxima do nosso uso da internet. Por exemplo, eu me considerava uma pessoa muito plural. Mas, quando George W. Bush foi reeleito, me dei conta que quase todos os meus contatos nas redes tinham posições políticas parecidas com as minhas.
    Segundo Zuckerman, nossa perspectiva é muito menos diversa do que pensamos — e a limitação não data de agora. Em 1952, o sociólogo francês Paul-Henry Chombart de Lauwe já mostrava que os deslocamentos de uma estudante parisiense podiam ser bastante previsíveis; ao transcrever os percursos cotidianos da jovem em um mapa da cidade, notou que se sobressaía um triângulo ligando o apartamento dela à universidade em que estudava e à residência da sua professora de piano. O esquema traduzia “a estreiteza da verdadeira Paris em que cada indivíduo vive”.
    Algo parecido aconteceu com a internet. Até pouco tempo, o hipertexto era, de fato, uma ferramenta notável de serendipidade. Em um simples clique, pulava-se livremente de uma página a outra, viajando sem muita lógica entre conteúdos discrepantes. Partia-se de uma busca sobre física quântica na Wikipedia e acabava-se em um blog anônimo sobre complôs alienígenas. Nos últimos anos, porém, a navegação se tornou menos dispersa e mais centralizadora. Um punhado de grupos como Yahoo, Google, Facebook e Microsoft formaram uma espécie de condomínio, do qual poucos usuários costumam se afastar.
    Ao entregar nossos dados para essas empresas, permitimos que elas personalizassem nossa experiência na web. Baseando-se num histórico pessoal de navegação, sites como Google e Facebook criam uma hierarquia de conteúdo, priorizando aquilo que eles consideram mais pertinente para seus usuários. É o que muitos chamam de “ditadura do algorítimo”: as máquinas teriam criado uma ilusão de serendipidade, nos fazendo acreditar que nossos achados na internet são obra do acaso, quando na verdade foram guiados por um robô.
    Autor de “O filtro invisível — o que a internet está escondendo de você” (Zahar), o ativista Eli Pariser acredita que nossa experiência na web se tornou uma espécie de “bolha de filtro”. Em um mundo com sobrecarga de informação, os algorítmos praticariam uma forma muito sutil de censura, escolhendo as notícias às quais estamos interessados — mas que não são necessariamente aquela que precisamos ver. Esta curadoria, admite Pariser, sempre existiu: a diferença é que ela não é mais feita por humanos, e sim por máquinas. Outro problema é que se trata de uma edição invisível, que se apresenta como neutra quando na verdade não é.
    — O que estamos vendo agora é a passagem de tocha dos editores humanos para os algorítimos — lembrou Pariser, em uma de suas palestras no TED. — Só que os algorítimos não têm o mesmo tipo de ética embutida dos editores. Se são mesmo os algorítimos que vão fazer a curadoria do mundo para nós, então precisamos nos certificar que eles não irão apenas se basear em relevância. Precisamos nos certificar que eles também nos mostrarão coisas que nos deixam desconfortáveis, coisas que são desafiadoras e importantes.
    Terra incógnita
    O próximo desafio do mundo digital, acredita Ethan Zuckerman, é repensar uma internet que, de fato, nos conecte com estranhos e nos faça descobrir o impensado.
    — É possível construir ferramentas que aumentem a serendipidade — avalia Zuckerman. — No momento, tenho uma aluna que está trabalhando em um projeto chamado Terra Incógnita. Com sua permissão, a ferramenta entra no seu browser, olha para os artigos que você lê e percebe quais tópicos você se interessa de forma geral, e em que países você está procurando por eles. Digamos que, depois de uma semana, a ferramenta descobre que você se interessa por direitos humanos, mas também pelo Brasil. Ela então lhe propõe artigos sobre este tópico, mas em diferentes partes do mapa, oferecendo uma maior diversidade. Para se ter serendipidade, você precisa saber o que a pessoa quer, mas também aquilo que ela não sabe, e tendo consciência de que há partes do mundo que ela não conhece.
    O futuro promete novas ferramentas, mas nem todas parecem estimular a serendipidade. Sylvie Catellin teme a popularização do Google Glass, um acessório em forma de óculos que possibilita a interação dos usuários com conteúdos em realidade aumentada (“Como o ‘1984’, de George Orwell, vão nos dizer o que devemos ver”, justifica) e de sites e aplicativos de relacionamento, como o Lulu e Tinder, que reduzem os encontros afetivos à efetividade da lógica de mercado.
    — Todo progresso traz junto uma regressão — opina Sylvie. — Mas não é a técnica em si que nos desumaniza, e sim a maneira como a usamos. O importante é que a técnica não nos simplifique, não nos coloque em padrões e números. Por isso a serendipidade é um chamado para a liberdade, para a desprogramação da nossa vida. É algo que não podemos modelizar, mas podemos assimilar para ir além das nossas vontades, além dos nossos encontros.

  5. Matheus Almeida disse:

    Ao que tudo indica, essa psicogeografia desenvolvida no período seria a base, ou dividiria a estrutura epistemológica, da fenomenologia, assim como da serendipidade.
    Aos interessados ao tema correlato, recomendo a leitura de alguns livros como: o Homem e a Terra (Eric Dardel) , Técnica, Espaço, Tempo (Milton Santos) e Topofilia (Yi Fu Tuan).

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