Sin perder la ternura jamás

Contraditória, mas sempre intensa, América Latina continua em transe. Depois de superar ditaduras e neoliberalismo, irá além do “desenvolvimento”?

.

Por Tadeu Breda

@tadeubreda

Talvez o fato que mais chamou a atenção do mundo para a América Latina em 2011 tenha sido a aparente imunidade da região aos efeitos da crise financeira que vem castigando duramente as economias — e, sobretudo, os trabalhadores — dos Estados Unidos e da União Europeia. Ao contrário do crescente desemprego, das privatizações e dos cortes de gastos realizados pelos líderes europeus, os governos latino-americanos mantiveram o índice de investimentos públicos registrado nos últimos anos.

De acordo com a Comissão Econômica das Nações Unidas para América Latina e Caribe (Cepal), essa injeção de recursos na economia foi essencial para que os países da região conseguissem amortizar os efeitos da recessão internacional. O desempenho econômico da América Latina também fez com que a Cepal anunciasse, em novembro, uma redução histórica no nível de pobreza e desigualdade. Em 2011, estima-se que existam 174 milhões de pessoas pobres (30,4% da população) na região, dos quais 73 milhões ainda vivem na miséria.

No entanto, como bem apontou o economista Ricardo Abramovay, a balança comercial latino-americana continua muito dependente da exportação de produtos primários: soja, carne, minérios, petróleo etc. São atividades econômicas que, devido à sua própria natureza, agridem o meio ambiente e concentram renda, além de reforçarem a dependência externa. Se, em 1998, 42% de nossas exportações dependiam dos bens agropecuários e minerais, dez anos depois esse índice ultrapassa os 53%.

Daí que o desempenho econômico da América Latina pode sofrer ligeira queda em 2012 com respeito aos índices observados em 2011 — e, sobretudo, 2010 — devido à crise na Europa e nos Estados Unidos, duas das principais regiões consumidoras dos produtos latino-americanos. De acordo com a revista britânica The Economist, o crescimento chinês será o grande responsável por segurar a balança comercial dos países da região. Já há alguns anos a China transformou-se no principal cliente de boa parte da América Latina — Brasil incluído. Superar a recessão nos mercados consumidores, diz a publicação, será um dos maiores testes do continente no ano vindouro.

A força motriz da economia latino-americana, porém, tem gerado uma série de problemas sociais e ecológicos. A América Latina é, junto com a África, um dos únicos dois continentes onde a cobertura florestal nativa está se encolhendo. Como sempre, as principais vítimas são as populações tradicionais, sejam camponesas ou indígenas — sobretudo indígenas, desde os huicholes, no norte do México, que lutam para que sua montanha mais sagrada não se transforme em canteiro de extração mineral, até os mapuches, no sul do Chile, que resistem à apropriação e exploração de suas terras pelo Estado e grandes corporações. São pequenos pontos de fricção entre distintas visões de desenvolvimento, bem-estar, riqueza e dignidade que, com mais ou menos força, pipocam por todos os países latino-americanos, sem exceção.

No Equador, os protestos contra empreendimentos petrolíferos e mineiros têm sido tratados como crime pelo governo. O país encerrou 2011 processando judicialmente cerca de 200 manifestantes — na maioria indígenas. Suas ações, essencialmente políticas, têm sido tratadas como atos de terrorismo, sabotagem, sequestro etc. Entre os brasileiros, os casos mais flagrantes se revelam no Mato Grosso do Sul (onde os guarani-kaiowá são massacrados por resistir à onipresença do agronegócio e exigir a recuperação de suas terras ancestrais) e na construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Mas não só: há também casos no sul da Bahia, onde sobrevivem os pataxó-hãhãhãe; em Roraima, em parte solucionada pela demarcação da reserva Raposa Serra do Sol; e até mesmo na capital federal, Brasília.

No entanto, dois episódios merecem atenção especial, pois escancararam internacionalmente a existência de diferenças conceituais sobre as noções de desenvolvimento. O primeiro deles ocorreu na Bolívia, onde o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) do Brasil financia a construção de uma rodovia. A estrada ligará os departamentos bolivianos de Beni e Cochabamba, que atualmente não estão integrados entre si. As obras caminhavam bem até que La Paz começou a trabalhar na construção do trecho 2, que, de acordo com o projeto original, cruzaria o Território Indígena e Parque Nacional Isoboro Sécure, conhecido como Tipnis.

Os moradores locais se opuseram, alegando que a rodovia promoveria o desmatamento da reserva, aumentaria o plantio clandestino de coca e colocaria em risco a sobrevivência cultural e material das etnias que habitam por lá. Inicialmente, Evo Morales fez ouvidos surdos aos reclamos da comunidade. “Queiram ou não, a estrada será construída”, disse. Depois, teve que voltar atrás. Os defensores do Tipnis realizaram marchas à capital, foram duramente reprimidos, a opinião pública sensibilizou-se e o presidente não viu outra solução a não ser cancelar o traçado original. Dois ministros caíram na jogada.

A segunda mobilização mais intensa vista em 2011 contra projetos nacionais de desenvolvimento teve lugar no Peru, mais exatamente no departamento de Cajamarca, onde milhares de cidadãos realizaram protestos e greves contra a instalação de um empreendimento transnacional para exploração de ouro. O motivo é mesmo de sempre: os moradores acreditam que a extração mineral vai causar uma série de impactos ecológicos e sociais na região, prejudicando sobretudo o abastecimento de água.

A rebeldia que nasceu em Cajamarca foi um dos maiores testes políticos para o presidente peruano, Ollanta Humala, cuja recente vitória eleitoral, em junho, foi outro destaques do ano na América Latina. Ex-militar, líder do Partido Nacionalista Peruano e derrotado no pleito de 2005, Humala teve que vencer uma disputa apertada nas urnas antes de assumir a Presidência: concorreu com Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori, que governou entre 1990 e 2000.

Durante a campanha, setores da elite peruana não mediram palavras para desmerecer o candidato devido ao moreno de sua pele e à sua simpatia por Lula e Hugo Chávez. A polarização foi tão grande que até mesmo o Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, inimigo declarado do presidente venezuelano, declarou voto a Humala. “Votarei nele sem alegria e com muitos temores”, disse.

Com o resultado eleitoral no Peru, a geopolítica latino-americana pende ainda mais para os chamados “governos de esquerda”, que, em muitos países, como Brasil e Argentina, já estão em sua segunda geração. A propósito, em 2011 os argentinos concederam mais quatro anos de mandato para a presidenta Cristina Fernández Kirchner, que venceu as eleições de outubro por uma maioria nunca antes vista na recente democracia do país: mais de 50% dos votos válidos.

Após a temporada eleitoral de 2011, a Colômbia figura como único país sul-americano que ainda não se rendeu aos apelos de candidatos que, com todos os questionamentos conceituais possíveis, localizam-se mais à esquerda no espectro político. O Chile, que havia aderido ao movimento regional após a vitória de Michelle Bachelet, voltou a ser governado por um presidente conservador, Sebastián Piñera, em 2010.

Na América Central, a Nicarágua reelegeu Daniel Ortega, herdeiro político da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) que em 1979 derrubou a ditadura da família Somoza. Seu compromisso com os antigos ideais revolucionários é bastante contestado no país, inclusive por ex-colegas de guerrilha, mas o fato é que Ortega governará os nicaraguenses por mais cinco anos — é a terceira vez que exerce a Presidência.

Das eleições na Guatemala veio uma má notícia para os defensores dos direitos humanos. As urnas fizeram com que o general Otto Pérez Molina ascendesse ao poder. A posse está marcada para fevereiro de 2012. O passado do futuro presidente, porém, é controverso. Antes de entrar no jogo democrático, Pérez Molina havia assumido posições de destaque no regime militar guatemalteco. Chegou inclusive a liderar o Estado-Maior Presidencial nos anos noventa. Pérez Molina também encabeçou grupos de elite do Exército que combateram a guerrilha de esquerda que se opunha à ditadura no país. Sua atuação no aparelho repressivo do Estado rendeu-lhe uma série de acusações criminais — genocídio, tortura e crimes de guerra — que jamais foram julgadas por falta de provas. Durante a campanha, o general prometeu “tolerância zero” contra a criminalidade que assola a Guatemala — um projeto de governo que se assemelha bastante às diretrizes políticas do presidente mexicano Felipe Calderón.

Em 2011, a guerra contra o narcotráfico no México superou todas as expectativas e ultrapassou a cifra de 50 mil mortes registradas desde 2006, quando as forças armadas foram para as ruas. Em resposta à escalada da violência, em março a sociedade civil mexicana começou a organizar-se pacificamente para pedir um basta aos assassinatos. Entre as vítimas, há milhares de inocentes, pobres em sua maioria, que o governo não titubeia em acusar de envolvimento com os cartéis da droga. Na guerra, policiais e militares matam tanto quanto os próprios criminosos — e se confundem com eles.

Foi da indignação e da dor de gente que perdeu entes queridos que nasceu o Movimento pela Paz, com Justiça e Dignidade (MPJD), liderado pelo poeta Javier Sicilia, também ele órfão de um filho, Francisco, sequestrado, torturado, executado e encontrado no porta-malas de um carro nas proximidades da cidade de Cuernavaca. Em menos de um ano de existência, o MPJD já realizou duas caravanas — para as fronteiras norte e sul do México — levando sua mensagem para todos os cidadãos que direta ou indiretamente sofrem com os efeitos da campanha bélica de Felipe Calderón. Conseguiu também estabelecer uma mesa de diálogo permanente com o governo. Porém, o sucesso vem cobrando seu preço. O movimento já assistiu a três de seus militantes serem brutalmente assassinados.

Mais ao sul do continente, e com uma invejável capacidade de mobilização, o movimento estudantil do Chile foi sem dúvida o que teve desempenho mais memorável na América Latina durante 2011. Jovens universitários e secundaristas foram às ruas das principais cidades do país protestar contra o sistema educacional chileno, cujas altas mensalidades excluem uma parcela importante da população e, quando não, endividam por anos a fio quem teve de realizar empréstimos para poder estudar. Menos contundentes, os estudantes colombianos também deram seu recado, marchando e realizando intervenções político-artísticas contra uma nova lei para a educação superior, com tintes privatistas, apresentada pelo presidente Juan Manuel Santos.

Para finalizar, não podemos esquecer as reformas políticas e econômicas realizadas pelo governo de Raul Castro em Cuba e a criação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), nova organização continental que nasceu em novembro, na Venezuela, com a pretensão de, quem sabe um dia, assumir o papel da Organização dos Estados Americanos (OEA) como principal foro de deliberação e resolução de conflitos regionais.

A grande diferença entre CELAC e OEA está em seus países-membro: enquanto esta exclui a ilha de Fidel e inclui Estados Unidos e Canadá, o novo órgão deixou de fora estadunidenses e canadenses e acolheu os cubanos. Novas estruturas para novos tempos? Os anos vindouros — talvez 2012 — irão dizer.

——-

Tadeu Breda é autor do livro O Equador é verde — Rafael Correa e os paradigmas do desenvolvimento (Editora Elefante, 2011)

Leia Também:

Um comentario para "Sin perder la ternura jamás"

  1. Genial o artigo, Tadeu. Assino embaixo e vou compartilhar. Abraços.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *