Segundo ato: reforma agrária

Egito: em paralelo às greves urbanas, camponeses tomam terras que lhes foram roubadas. Também aqui se joga futuro da revolução

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Por Raphaël Kempf, do Le Monde Diplomatique francês | Tradução: Antonio Martins

O cômodo é pequeno, sujo e escuro. Uma antiga antena de TV reina sobre um móvel descascado. Pela janela, enxerga-se os campos trabalhados, arados e cultivados pelos felás egípcios. Hoje, a chegada do engenheiro do Cairo atrai muita gente à casa de Ahmed Ahmed el-Komwaldy. Vêm apenas homens, em galabiés [túnicas típicas] e de sotaque difícil. Contam-se os acontecimentos da véspera: uma batalha cruenta, ficamos sabendo, entre capangas pagos por um general do antigo regime e os camponeses do vilarejo. Mas, no momento, é da revolução que falamos.

“Antes da revolução, não havia democracia, era um regime policial”, diz um camponês. “Agora, melhorou”. Quando alguém pergunto se ele participou da revolta, responde que não. “A internet e o Facebook ligam as pessoas escoladas entre elas mesmas”. Aqui, não há nada disso: só televisão. Mas eles estão a par, e a ausência de poder durante algumas semanas permitiu aos camponeses recuperar terras que haviam sido espoliadas por grandes proprietários, ou por partidários do regime, com a complacência das autoridades.

Os agricultores egípcios confrontam-se com um poder que Bachir Sakr, engenheiro agrícola e membro do Comitê de Solidariedade com os Camponeses qualifica de “feudal”. “Há uma década”, escreve François Ireton, “sucede-se uma série de disputas pela terra, em geral totalmente desprovidas de fundamento legal. Grandes proprietários, ou seus herdeiros, aproveitaram a entrada em vigor da lei de 1992 [que liberaliza o mercado de arrendamento de terras agrícolas], ou para tentar recuperar terras confiscadas e redistribuídas na reforma agrária de presidente Nasser, em 1952, ou simplesmente para se apoderarem de terras que lhes convêm”.

No vilarejo de Imaria, situado entre as cidades de Alexandria e Damanhur, no norte do Delto do Nilo, os camponeses enfrentaram um general da segurança do Estado, Tarek Heikal. Ele é acusado de roubar terras, falsificando documentos com cumplicidade de funcionários da Organização da Reforma Agrária, que gere as terras redistribuídas aos camponeses. Segundo os camponeses, ele roubou, em junho de 2010, cinco feddans [equivalentes a 8 hectares], que cultivavam.

Agora, veio a revolução. Os camponeses decidiram cultivar estas terras, aproveitando-se da ausência do general. Ele respondeu, enviando seus subordinados. Choques violentos ocorreram em 14 de fevereiro. Um jovem do povoado foi ferido. E a vila do general foi destruída.

No vilarejo vizinho de Barnougui, Saleh Nawwar é herdeiro de uma grande família de proprietários. Acusam-no de ter roubado 600 hectares dos camponeses. Durante a revolução, os camponeses passaram a cultivar, eles mesmos, 80 hectares destas terras.

Para Beshir Sakr, engenheiro agrícola e membro do Comitê de Solidariedade com os Camponeses, estas retomadas constituem-se no “segundo ato da revolução”. Ele explica: “Os trabalhadores urbanos fazem greves e reivindicam. Os camponeses tomam, eles mesmos, seu meio de produção: a terra. A revolução é, para eles, uma oportunidade”.

Mas a revolução egípcia só se consolidará se os proprietários feudais não recuperarem estas terras. Karam Saber Ibrahim, diretor do Centro da Terra para os Direitos Humanos insiste nesta tese. “Não será possível chamar este processo de revolução se não houver mudanças para os operários, os camponeses e os necessitados. Em mais de 50 cidades, os camponeses estão exigindo terras, e graças à revolução muitas áreas estão sendo retomadas das mãos dos corruptos e dos homens de negócio. Estamos no começo. Há milhares de hectares a distribuir”. A exigência de igualdade e justiça social é forte, no Egito de hoje. Ela não se limitará a reformas democráticas e constitucionais. “As pessoas não comem nem uma Constituição, nem uma Assembleia do Povo”, conclui o amargo Karam.

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