Se eu fosse Presidente da República

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Misturando documentário e ficção, Pater recria um governo nacional entre quatro paredes e questiona a representação do poder.

 

Por Bruno Carmelo, editor do blog Discurso-Imagem.

Toda criança já brincou algum dia de se imaginar em funções adultas prestigiosas, dizendo “Seu eu fosse astronauta” (ou jogador de futebol, ou rei, etc.). Esta idealização das profissões pode ser explicada pela ausência total de conhecimento das funções reais de cada uma – algo mais que normal para uma criança.

Pater é, de certo modo, a extensão deste faz de conta ao mundo adulto, tendo como presidente autoproclamado Alain Cavalier, diretor famoso por seus filmes intimistas e solitários, e como Primeiro-ministro, Vincent Lindon, grande ator francês bastante versátil. Ambas figuras públicas e célebres na França brincam de interpretar, apenas os dois, outra forma de reconhecimento público: o poder. Eles o fazem com a mesma ingenuidade de uma criança curiosa, sem pesquisa, dando vazão a todos os estereótipos e pré-conceitos associados à política.

Aí entra o interesse real do projeto. O primeiro aspecto bastante inovador é o estabelecimento desta comédia do poder, assumidamente inverossímil, na qual dois artistas vestem terno e gravata e perambulam pelos cômodos de uma casa chamando um ao outro de “presidente”, “primeiro-ministro”. Esta confrontação acaba por criar situações risíveis quando ambos assumem seus papéis, tanto na questão de poder financeiro – eles comem trufas negras no jantar, e mal sabem distingui-las de cogumelos quaisquer – quanto no poder legislativo – eles tentam criar a lei do “salário máximo”, sem conseguir decidir a quantidade de salários permitidos aos chefes de grandes empresas.

Toda a argumentação política é de uma grande simplicidade, falha por diversas questões de economia elementar, mas os dois homens persistem e continuam escrevendo cartas, relatórios. Eles são seguidos por duas câmeras de vídeo, frequentemente carregadas pelos próprios protagonistas, diante das quais o improviso parece ser a regra geral. Como numa escrita automática, ou numa dinâmica de grupo, eles dão vazão ao seu imaginário do poder, algo curioso vindo de dois homens de celebridade e poder aquisitivo importantes. A política, elemento público por definição, torna-se uma prática privada e individual.

Enquanto ambos discutem o futuro do país entre o quarto e a cozinha, a câmera começa aos poucos a dar espaço aos bastidores, filmando momentos de Alain Cavalier, o diretor, e Vincent Lindon, o ator, quando não estão encarnando seus papéis. As discussões selecionadas pela montagem são todas de evidente caráter engajado, revelando as posições (supostamente) pessoais de cada um, em suas práticas cidadãs quotidianas. Entra em cena o segundo aspecto de grande interesse de Pater: a difícil separação entre o documentário e a ficção. Num contexto tão claramente fictício como este, algumas falas fora de contexto não permitem mais distinguir se são os atores ou os personagens que vemos, se a tal opinião sobre a invasão de estabelecimentos comerciais no sul de Paris vem do Primeiro-ministro ou do ator que o interpreta.

Ao envolver o espectador neste jogo aberto de falsidades, Pater acaba construindo uma relação de transparência com o público, assumindo a todo momento que tal cenário pode ter sido roteirizado ou não – cabendo ao espectador fazer tal discernimento. O projeto enriquece-se pelo desenvolvimento do processo criativo, com ambos os protagonistas construindo seus papéis e os interpretando diante das cenas de igual maneira, com a mesma naturalidade, sem mudança estética alguma. Entre crônica grotesca do poder e retrato ingênuo do mundo político, entre mistura ficção-documentário e jogo de cena dos mais infantis, Pater surpreende principalmente pela originalidade de seu projeto e pela complexa estrutura de representações, mais do que pelo eventual discurso político que se articula diante das câmeras.

 

Pater (2011)

Filme francês dirigido por Alain Cavalier.

Com Alain Cavalier, Vincent Lindon.

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