Rita Lee: Ela que também amava os animais

A ex-mutante morreu hoje, aos 75 anos. Ativista da luta contra os rodeios e vegana, ela cantou como poucos artistas os animais – simbólicos ou não –, sempre com particularíssima visão feminina. E transformou Ovelha Negra em hino de rebeldia

Imagem: Rita Lee/Facebook
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“Dinossaura com aura de iguana”, a ovelha negra Rita Lee é muito mais felina do que cobra venenosa. Perigosa e romântica, procurou um “gato no mundo cão”, encontrou um Galo-Galã. Diversas zoomúsicas da nefertiti brasileira do pop rock têm raízes proverbiais. A maior parte é joia própria, com parcerias brilhantes, e gravação de pérolas. Depois de Bossa’n Beatles, foi uma atitude zoo registrar a livre versão do Renato Barros, ex-Blue Caps. De I want to hold your hand para O Bode e a Cabra.

Em 50 anos de música, Rita Lee é a maior compositora brasileira, com um expressivo acervo zoomusical. É uma visão feminina sobre bichos simbólicos e reais. “Já fui bicho.” Não por acaso, Santa Rita de Sampa é “protetora dos animais abatidos”.

Ela e parceiros levaram para a música o bom humor de provérbios, saberes populares e gírias: ovelha negra, barata tonta, (me faz de) gato e sapato, gatos pingados, (eu sou) do tempo da onça, bota as asinhas de fora, macacas de auditório, a gente vira bicho, cabra da peste (vinho), trabalho como um cachorro, mão de vaca, (tão chata) paca, (a maré das sereias) não está pra peixe, gatas gatunas, mundo cão. “Sou bixo grilo, sim.” Nessa linha, outros dizeres se popularizaram: panteras e panterinhas, gato de subúrbio e “Tem tudo a ver o meu pinguim / Com a tua geladeira.”

“Vamos voltar ao princípio / porque lá é o fim.” Os mamutes Mutantes adotavam a  diversidade zoomusical. “Soltei os tigres e os leões nos quintais.” No mesmo disco, na versão da lírica de APrimeira Alegria do Dia, “É o pássaro cantando / Sobre o ramo da figueira.” Na Divina Comédia, Lúcifer na floresta “Matou mil aves no ar / Quieta, a serpente / Se enrola nos seus pés.” Como contraponto, Chão de Estrelas: “A mulher pomba rola que voou.” Os Mutantes, no país Bauretz, saíam para caçar rã e levavam uma Vida de Cachorro: “Vamos ter cinco lindos cachorrinhos / Até que a morte nos separe, meu amor!”

Os mamutes Mutantes se separam. Por outro motivo, Rita Lee ficou jururu. Com o Tutti Frutti buscou o cogumelo de zebu. Ex-mutante, ex-Cilibrina do Edén, a ovelha negra se encontrou com a serpente de Luz del Fuego: “Eu hoje represento a cigarra / Que ainda vai cantar / Nesse formigueiro quem tem ouvido.”

Para não ficar só no proverbial “parece que viu passarinho verde”, na capa do álbum Entradas e Bandeiras tem Rita e um papagaio. Mas foi com outro pássaro que ela cantou a liberdade fora da gaiola. “Tenho mais é que botar a boca no mundo / Como faz o tico-tico quando quer comer / Essa fome é vontade de viver.”

Na Refestança com Gilberto Gil, a nefertiti arrombou a festa em parceria com Paulo Coelho: “O tico-tico nu, o tico-tico cu, o tico-tico pá rá rá rá.” Bem diferente dos dois ticos posteriores. No dueto com João Gilberto, “Terra linda assim não há / com ticos-ticos no fubá”. No Reza de 2012, “Orangotango bolero merengue / O berimbau pica-pau tico-tico.”

No final dos anos 1970, uma fase musical zoo é encerrada: “O passarinho na gaiola não esquece de cantar / Que uma criança nunca briga se ela aprende a brincar e amar.” Uma fase felina é prenunciada: “Eu e meu gato, / Ele na cama, Eu no telhado, / Ele sem as botas e eu sem grana.” E a Perigosa fera de pele macia vai se tornar venosa.

“Nem deusa nem animal” – Nos anos 1980 predominaram a diversificação no acervo zoomusical de Rita Lee. “Minha terra tem ´pranetas´/ Onde canta o uirapuru. / Tem morcego, borboletas.” Entre ratazanas da publicidade e bicho preguiça, “Sou a raposa / Tenho gana da tua doçura.”  “Tão banal assim como um pardal”, “Eu te levo no bico te ponho dentro do meu ninho / Eu te pego, te pico, te como à la passarinho!”

Provérbios com animais ganharam outras adaptações: “galo bom de bico”, “pega o galo pra capar”. “Eu sou meio beija-flor / Bom de bico / Bico de amor.” Em vez de reforçar o coro crítico contra duas fêmeas nos ditados populares – a galinha e a vaca – Rita Lee canta mulheres rosa choque: “Gata borralheira, você é princesa.” No entanto, ela critica a Fonte de Juventude: “Quanto mais a mulher jura / Gostar de homem erudito / Tanto mais ela procura / Um tipo burro e bonito.”

Na fase Menopower da vida, “Chega do bom caldo da ´substância` da galinha.” Seja Glória Frankestein: “O que será que houve com meu coração? / Talvez um vira-lata tenha tido / Uma bela refeição / Ou talvez indigestão.” Para um coração de mulher em crise, vale o provérbio “Bicho ruim não morre” (olha eu aqui).

Ainda na década de 80, bichos falaram pelo social. Urubus rodearam joão-ninguém e o Punk da Periferia. No circo, “A obediência dos animais / Faz a plateia dizer oohh!!” No Brasil, baleias e botos pedem S.O.S. animal.

A Doce Vida está em ser “Livre como uma andorinha / Que fugiu de uma gaiola / Pra poder cantar melhor.” No peito, um gavião.

“Vida dura de avestruz”- Próximo dos “braços de 2000 anos”, a diversificação zoo continuou e alguns bichos se tornaram recorrentes. Em Fora da Lei, “Gata de rua faz ron-ron ao luar (…) Cama de gato / Kama Sutra ao luar.” Nefertiti é uma zoomúsica que não cita o bicho. De rainha para rainha, é declaração de amor para uma gata. (Em 1985, Joyce compôs Minha Gata Rita Lee, para um animal abandonado. A gatinha era a cara da nefertiti do rock pop nacional).

“Serpente ou não serpente / Eis a tentação”. Foi lançada uma erva com veneno cruel, “pior do que cobra cascavel”. Nenhum perigo para Pagu, Zélia Duncan e Rita Lee, a quem “Deus dá asas à minha cobra”.  E é preciso ser fera para escrever “Cobra de mim que sou serpente”.

Do dito popular “Eu hoje tô o cão” à neoexpressão “Um vira-lata de raça.” Em dias de Balacobaco, “Uma espinha pro gatinho / Pro cachorro um ossinho.”  Junto com o ditado “amarrar seu bode”, um aviso: “Com a minha cabra / Ninguém fode.” Na versão Beatlemania, “O bode pisou na cabra / A cabra gritou mé.”  Mas “tudo vira bosta: a buchada e o cabrito.”

Entre 2001 e depois de 3001, outros bichos foram cantados: “Piranhas dando sopa”; “Eu sou a mosca da sopa / E o dente do tubarão”; “Eu vivo pelos cantos feito bicho / Tô um lixo”.” Mas em algum lugar acima do arco-íris, os pássaros voaram.  Por tudo isso, é justo o Hino dos Malucos: “A nossa luta é abstrata, / já que afundamos a fragata, mas temos medo de barata.” Um hino pessoal: “Eu nunca tive preconceito nem paixão / Mas confesso tenho medo de barata e avião.”

A música Esfinge canta a filosofia zoo de Rita Lee: “Só no domínio de si próprio / É que o humano sobrepõe-se ao animal.”

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Um comentario para "Rita Lee: Ela que também amava os animais"

  1. Nicholas disse:

    Muito bela homenagem a Rita Lee, esse ser são singular em sua vida e arte.

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