Riso e violência

Em “O metro nenhum”, Francisco Alvim aprofunda sua poética de realismo crítico, seu diálogo tenso com os tempos pós-modernos

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Em “O metro nenhum”, Francisco Alvim aprofunda sua poética de realismo crítico, seu diálogo tenso (e cosmopolita…) com os tempos pós-modernos

Por Alexandre Pilati*

O poeta brasileiro Francisco Alvim volta às livrarias neste ano com O metro nenhum (Cia das Letras, 2011), conjunto de poemas inéditos que dá continuidade a seu projeto poético renovado, onze anos antes, por Elefante (Cia das letras, 2000). Os poemas que compõem o livro carregam a inquietação do próprio poeta, que, ao ser convidado pela editora para produzir a obra, gastou pouco mais de um ano, escrevendo, corrigindo e relutando.

As impressões de Alvim são reveladoras: “Até hoje mexi nele: hesitação quanto à posição de um ou dois poemas; mudança de um ou dois títulos… E vem um sentimento muito bom, muito doce: de amor pelo livro. O mesmo sentimento que provei em relação a cada um de meus livros anteriores e que só agora, vejo, reconheço com clareza. O que nada tem a ver com os apertos por que passei para botá-los de pé e a consciência dos inúmeros poemas frustros ou simplesmente ruins que contêm.”

Lê-se, aqui, a consistência de inquietação que sua poética reverbera, que reside também no ato de acercar-se da poesia com a hesitação que todo grande poeta moderno embute em seu ofício. Como se trata de uma poética de alto refinamento e de grande consciência de suas funções e desfunções, os textos de Alvim replicam o risco de toda grande poesia: passar por algo que nada diz, embora almeje a objetivação, em termos muito sintéticos, da densa experiência do real.

Esse destino da poesia moderna — de ser antes de tudo inquietação — configura-se muito bem em uma pergunta que, finalizando o primeiro poema do livro Elefante, ganha a consistência de ponto de inflexão da poesia alviniana. Em Carnaval, o eu-lírico indaga: “Qual o real da poesia?”. É o real que, a todo momento, opera sobre o discurso poético, corrigindo o seu rumo, instaurando uma dicção que só se pode compreender a partir da sua função problematizadora e das contradições fecundas que registra. A poesia de Chico Alvim, no programa que se viu intensificado em Elefante, só pode ser compreendida em seu desejo de instauração na lírica de uma projetiva crítico-realista. Trata-se, pois, de uma poesia que deseja ser poesia, desde que insuflada por um movimento de arrasto dialético que a conduza para além e si mesma. Algo bem condensado naquele breve poema-diálogo da obra de onze anos atrás: “ – A questão é de saber/ se uma palavra pode significar tantas coisas/ – Não, a questão é de saber/ quem manda.” Noutros termos, dir-se-ia que o leitor de Chico Alvim está convocado a participar de uma reflexão comandada pela autoria lírica acerca do lugar do político na dimensão da palavra poética.

Essa remissão ao livro Elefante é necessária para que sejam identificadas bases de continuidade entre aquela obra e o recém lançado Metro nenhum. É possível propor uma ligação entre as obras precisamente a partir daquela pergunta a respeito do “real da poesia” no livro de 2000. Pode-se propor, por exemplo, a hipótese de que ela aqui se transforma em afirmação de tonalidade explicativa. Num texto intitulado “A poesia”, cujo inicio é anedótico e que se desenvolve posteriormente como lírica reflexiva, o poeta explica: “…a poesia/ quando ocorre/ tem mesmo a perfeição/ do metro – / nem o mais/ nem o menos – só que de um metro nenhum/ um metro ninguém/ um metro de nadas.” Assim, permanece, sob outra configuração, a inquietação entre o real e o poético, articulado aqui segundo a dinâmica dialética instaurada entre o signo do imponderável “nada” e o muito preciso “metro”; o real e o inefável entram em balanceio.

É dessa matéria, portanto, que continua a abastecer-se a poética de Chico Alvim; trata-se de uma relação dilemática do poeta com sua função de objetivação poética do mundo real. É algo do tamanho de um sistema literário inteiro, todavia exprima-se nos limites do núcleo volitivo da própria individualidade lírica, como atesta o poema “Meio do caminho”: “Dá vontade/ de sentar dar/ nem um passo à frente ou/ atrás.”

Alguns elementos dessa poética de impasse nos levam a considerá-la como poética realista, algo que funciona quase como um motor de resistência à diluição do literário na pura representação titereira das tribos sociais ou na mera glosa do espetáculo, seja acadêmico ou midiático. O realismo da poesia de Chico Alvim pode ser observado nesse movimento a que antes tentamos aludir, de registro dos momentos em que o real (tantas vezes violentamente) tenta aderir ao mundo suave e sombrio do poema. Luzes, sombras, suavidade lírica, violência, intimismo, rumor das ruas, humor e situações limites: tais são alguns dos elementos postos em movimento contraditório por esse “metro de nadas”.

Tentando especificar um pouco mais a análise, poder-se-ia indicar dados poéticos decisivos para a objetivação consequente de um prisma realista em Chico Alvim. O primeiro deles é a atenção para as situações-limite, sejam relacionadas ao fazer poético, sejam relacionadas ao cotidiano da vida urbana do Brasil atual. É exemplar dessa atenção do poeta às situações-limite o poema “Muito ótimo”: “veio o homem/ falou pra mim/ pra mim/ deitar no chão/ dormir/ dormir/ que amanhã vou ser atendida/ na/ meia-noite.” Há em O metro nenhum uma série dessas situações, como que a replicar uma pergunta: como medir o tamanho da ignomínia dessas situações? O “metro de nadas” dará conta disso que é “tanto”? Noutros versos, que encetam uma negociata política de urgência, diz o poeta: “Se fizermos isso/ estamos fritos// (Mas se já estávamos!)”. O impasse é a norma e, assim, a preferência por tais situações limites, traduzidas segundo o travo específico da linguagem cordial e cruel à brasileira, leva o poeta a lançar-se à busca da compreensão da totalidade social, escarafunchando liricamente uma das dimensões mais agudas do drama contemporâneo, tantas vezes vivido em volume de farsa: a alienação. Parece ser bem consequente a hipótese de que os poemas de Chico Alvim estão votados a inquirir a realidade do capitalismo atual a partir da captação lírica de sua capacidade de perpetuar e intensificar a lógica da alienação.

A força reativa dessa poesia está mesmo numa certa mobilização de elementos cujo objetivo é estabelecer uma perspectiva crítico-humanista das relações sociais. Algo assim não pode ser desvinculado de uma observação desconfiada das possibilidades de a literatura fornecer, como dizia Lukács, “uma efetiva configuração do homem”. A perspectiva crítico-realista de Chico Alvim, portanto, toma como princípio operativo o recolhimento de situações-limite, situações de agudização da situação de alienação (na vida comum ou na vida já reificada do poema). Posteriormente, realiza-se uma projeção dessa alienação recolhida junto ao mundo na totalidade sócio-histórica. Trata-se de um gesto basicamente mediado pela disposição para ouvir e deixar soar a agudização das contradições sociais no capitalismo contemporâneo. O resultado, desse modo, é uma poesia que se abastece dos movimentos da dinâmica histórica contemporânea, ao mesmo tempo que exige do leitor o movimento que ative algo de um reconhecimento trágico da alienação. Há em O metro nenhum um poema intitulado “Tableau mouvant” e não seria despropositado dizer que a poética do livro é a de “quadros em movimento” que replicam em tom poético situações-limite da existência alienada.

É preciso sublinhar ainda dois elementos de fatura muito importantes para o sucesso dessa poética de realismo crítico de Chico Alvim: a violência e o riso. Quanto ao riso de O Metro nenhum, poder-se-ia dizer que ele rejeita para si a pecha de piada (talvez de modo mais intensivo do que no livro anterior). Embora tributário do humor oswaldiano, o riso de Alvim é de outra monta; está a serviço da captação aguda das contradições sociais. Num momento do capitalismo em que o riso já não reconcilia, mas celebra a alienação,[1] a poesia de Chico Alvim utiliza o recurso a ele como forma de atestar a profunda vinculação do riso com a intensificação da alienação e a impostação de insuperável que caracteriza esse nosso obscuro tempo em que tudo aparenta ser luminoso. Se o riso, no mundo real, é elemento da própria perpetuação da lógica social do capitalismo, na poesia de Chico Alvim, ele é elemento de acesso a essa totalidade que nos chega e se replica diante de nós embutindo a sua própria crítica irônica. A autoironia é parte da forma segundo a qual o capitalismo se justifica: tudo está errado, mas é assim que deve ser. O riso em Chico Alvim incomoda, sobretudo porque aparece em poemas que exigem do leitor certa cumplicidade, dada a velocidade com que ocorrem, em um ou dois versos. Recompondo o quadro social em que aquela enunciação extraída pelo poeta da realidade se dá, o leitor desespera-se: de que é mesmo que rimos? O riso, portanto, nos poemas de O metro nenhum tem uma tendência a se reativar como crítica antiideológica e antialienante, uma vez que fazer rir não está entre os objetivos finais do poema, mas configura-se como um elemento da farsa ideológica concreta, plasmado em termos literários. Trata-se de um riso que se dirige à percepção trágica da dinâmica social e não ao cinismo diante do sofrimento.

A partir desses elementos não será difícil chegar à última e fundamental característica do modelo de poética crítico-realista de Chico Alvim: a violência. E ela aparece nos poemas não apenas como dado exterior representado nos limites do texto, mas também como traço básico do próprio gesto mimético. Na velocidade com a qual o poeta capta as falas do cotidiano e abandona o leitor à recomposição está uma violência que tem a ver com o gesto de apropriação do mundo pela arte. Nessa apropriação, há sempre o risco de tornar o mundo, embora violento, “apenas” belo. No minimalismo dos versos, em vez de piada, o que se encontra é o registro da suave violência do gesto estético (e, por que não dizer: a violência do próprio riso na pós-modernidade). Assim, o poema é reforçado como mais uma situação-limite da alienação, entre tantas outras. Como no poema de um verso só “Bochecha”: “ofereço a outra”. Riso, corte rápido, violência, situação aporética, tudo isso acaba sendo posto em questão com a colaboração do leitor, que se torna cúmplice do projeto realista do autor. O mundo, em sua violência alienante, nos exige apenas outra face. Com a poesia de Chico Alvim, podemos aprender que: “a que continua viva/ depois de morta/ é a que pica mais forte.” Ainda que o poema não seja a vida, e que nos dê notícia de como ele morre nas estruturas elementares da reificação inerente ao fazer poético, ele pode, pela sua formulação complexa, conservar-se como uma face venenosa, ou como antídoto à desumanização e à aceitação da violência da alienação.

Montada dessa forma, a equação poética alviniana sintoniza-se com o melhor da poesia internacional na contemporaneidade. A poesia de O metro nenhum assume um caráter inesperadamente cosmopolita, precisamente no seu aferramento à tradição literária e à vida do capitalismo à brasileira. Isso ganha contornos ainda mais claros se lembramos do estatuto do verdadeiro contemporâneo, conforme as balizas propostas pelo filósofo italiano Giorgio Agamben. Para ele, a contemporaneidade “é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente , essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo.”[2] Chico Alvim consegue estabelecer com seu tempo, um diálogo tenso, capaz de reagir a ele sob a forma de uma dissociação montada com alguns de seus elementos básicos: o riso farsesco da ideologia, a violência de todo dia, o desmedido lugar da poesia na sociedade que vive as mais agudas formas de alienação.

(*) Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília, poeta e crítico literário. Autor, entre outros, de A nação drummondiana (7letras, 2009).

Notas

[1] A esse respeito consultar o excelente ensaio: SAFATLE, Vladimir. “Sobre um riso que não reconcilia: notas a respeito da ideologia da ironização”. A parte rei – Revista de filosofia, N. 55, jan-2008.

[2] AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.59.

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