Resistências ao futebol-empresa

Marginalizados pela mercantilização do esporte, torcedores resgatam clubes e criam alternativas em todo o mundo. Tendência chegou ao Brasil

.

Por Irlan Simões

Nas edições anteriores de Futebol além da Mercadoria [1 2 3], examinamos a progressiva mercantilização do esporte, a partir dos anos 1980. Discutimos como ele foi invadido, na era do capitalismo imaterial, pela lógica dos negócios e a compulsão em multiplicar dinheiro. Os estádios elitizaram-se, os vínculos que ligavam clubes, torcidas e atletas romperam-se, a própria qualidade do jogo regrediu. Em nosso país, a tendência chegou mais tarde, mas talvez tenha assumido feição mais dramática. Amalgamou-se com o espírito ancestral de cartolagem e corrupção, produzindo algo que mescla o pior do futebol-mercadoria com corrupção primitiva.

Felizmente, a história é feita pelos seres humanos, e esses, geralmente se levantam quando se sentem injustiçados e prejudicados. Ao redor de todo o mundo onde a bola gira, torcedores criaram alternativas que não cedem nem aos interesses mercadológicos dos investidores privados, nem às benesses prometidas pelo poder dos cartolas.

A começar pela Inglaterra, a primeira e mais afetada potência do futebol mundial. Em 2011, após três décadas de mercantilização, todos os vinte clubes que participaram da Premier League, o principal campeonato nacional, pertenciam a investidores privados. A origem desses novos proprietários tornou tal realidade ainda mais assustadora. Magnatas russos, barões do petróleo norte-americano, xeiques árabes, novos-ricos chineses figuravam entre os principais investidores e donos de clubes históricos da terra onde nasceu o futebol.

A resistência dos torcedores começou pelo Manchester United Football Club. Um dos clubes mais ricos do mundo, tornou-se propriedade do norte-americano Malcolm Glazer. Empresário do ramo do petróleo, declaradamente fã de baseball, o “dono” do clube passou a sofrer oposição de dois movimentos distintos.

O primeiro tem chamado atenção em todo o mundo. Denomina-se Manchester United Supporters Trus, ou MUST. Os torcedores surpreenderam ao propor – numa época em que o time disputou a final da copa europeia, foi campeão inglês por antecipação e reuniu atletas de altíssimo nível – a saída de Glazer e a volta do United ao status de clube de futebol. Os fans resgatam a história do MUFC, quando ainda se chamava Newton Heath. Ao fazê-lo abriam uma disputa de valores no esporte. Questionavam se o que vale para os torcedores – conhecidos como red devils [diabos vermelhos] – é uma sala cheia de troféus ou um clube que lhes pertença.

Houve quem radicalizasse ainda mais.  Em 2005, um grupo de torcedores do Manchester United propôs algo inédito no mundo da bola: a fundação de um clube. Criaram o Football Club United of Manchester (FCUM), estabelecendo a mentalidade de fanownership, ou “gestão pelos torcedores”. O novo clube conseguiu manter-se, galgou vários degraus nas divisões inferiores da Inglaterra e parte agora para a construção de um estádio próprio. Tudo isso sem padrinhos, sem proprietários milionários. Apenas com a boa vontade de torcedores apaixonados que buscavam resgatar a relação que tinha com o seu clube de coração. Há um interessante vídeo a respeito, no YouTube.

Ainda na Inglaterra outras formas de resistência ao futebol-negócio têm surgido. Uma deles conseguiu impedir, através da associação entre os torcedores, que o Crystal Palace, outro histórico clube inglês fosse também privatizado.

Um pouco mais ao norte europeu, torcedores alemães têm dado um exemplo de organização e luta em defesa de um futebol de todos e para todos. Como na Alemanha o processo de “neoliberalização do futebol” também esteve presente, restou aos torcedores garantirem um mínimo de autonomia a seus clubes. É o conhecido “50%+1”, uma medida que proíbe os clubes de manter, em mãos de seus associados, metade das suas ações – o que limita o poder dos investidores e impede dirigentes de vender ativos ou mergulhar completamente no mundo do esporte-empresa.

Essa é apena uma das bandeiras dos agrupamentos de torcedores alemães, que volta e meia unem-se para defender, por cima das cores de seus clubes, ingressos baratos, transporte de qualidade para os jogos, o direito à cultura torcedora e o repúdio a violência policial nos estádios. A organização se dá através do Fanprojekt, uma estrutura organizativa que busca nacionalizar as lutas pelos direitos, e também consegue levar o futebol para fora dos estádios, numa perspectiva comunitária.

Na Itália, onde clubes já eram “propriedade” de determinadas famílias antes mesmo desse “novo futebol-negócio” (como a Juventus, dos Pirelli), os torcedores (tiffosi) estão se mobilizando para resgatar as vítimas do modelo. Após converterem-se em empresas, clubes como o Hallas Verona chegaram ao fundo do poço. A torcida procura agora uma forma de fanownership.

Em outros clubes (principalmente nos maiores), a resistência vem de torcidas organizadas (identificados à esquerda ou à direita) que fazem coreografias nos estádios, denunciando o futebol-negócio. Combate-se, em particular, a introdução da Tessera Del registro dos torcedores feito a pretexto de “evitar a violência nos estádios” – mas leva a sua criminalização.

No Brasil algumas idéias começam a sair do papel. O primeiro passo tem sido dado a partir da fundação da Associação Nacional dos Torcedores. A proposta de discutir os direitos do torcedor também se insere na perspectiva de colocá-lo como ator do próprio futebol.

Alguns clubes já prevêem, em seus estatutos, o voto direto do torcedor associado, geralmente vinculado à adesão a algum plano de fidelidade ou homenagem. No Rio Grande do Sul, Grêmio e Internacional popularizaram ao extremo os seus planos de sócio-torcedores, atraindo mais de 100 mil interessados em participar do seu futuro. Ambas iniciativas ainda carecem de aperfeiçoamento. O peso do torcedor na administração do clube continua marginal, se comparado ao dos associados convencionais – que participam das eleições “princpiais”, comumente manipuladas pelos dirigentes.

A democratização exige muito mais do que colocar um papel na urna. É preciso ter poder de deliberação diária. Conscientes disso, alguns grupos já se formam na perspectiva de fortalecer o papel do torcedor. Entre eles está o InterNet/BV, agrupamento colorado que tem conseguido avançar e conquistar cadeiras nos conselhos do Internacional (RS), sem aderir a grupos antigos e “acartolados” do clube, e partindo da ótica dos que estão na arquibancada.

Nesta perspectiva que surgiu também o Movimento Somos Mais Vitória, iniciativa de torcedores do Esporte Clube Vitória (BA) para lutar por democracia no rubro-negro. Nesse caso, uma luta mais árdua, uma vez que o clube ainda não conseguiu consolidar a reforma do estatuto que prometia a abertura democrática. Como nos outros casos, o MSMV compreendeu que não bastaria ter o direito ao voto: era preciso estar organizado e intervir no dia-a-dia da instituição. Foi, inclusive, a única organização de torcedores que lançou uma nota repudiando a falta de democracia na disputa fratricida entre Clube dos 13, Confederação Brasileira de Futebol e as Organizações Globo acerca dos Direitos Televisivos do Campeonato Brasileiro.

Também em Salvador, surgiu, alguns anos antes, outro intenso movimento de torcedores. Era a Revolução Tricolor, do Esporte Clube Bahia. Pedindo a saída Paulo Maracajá, eterno cartola do clube, o movimento arrastou milhares de apaixonados pelo Bahia às ruas, fazendo um verdadeiro carnaval fora de época. Mas sofreu consecutivas derrotas judiciais e políticas, vendo Marcelo Guimarães Filho, herdeiro de outro eterno e questionável cartola tricolor, assumir a presidência ainda jovem.

Outras tantas experiências surgiram pelo Brasil. O Santa Cruz, do Recife, lançou o Sindicato. O Brasil, de Pelotas (RS), tem em suas fileiras a Associação Cresce Xavante, que obtém recursos para o clube. O importante é notar, que de certa forma, há algo de diferente. Teriam os torcedores, enfim, perdido a paciência?

Num certo sentido, sua batalha lembra a que é preciso travar, em toda a sociedade, por uma nova democracia. Será preciso quebrar, também no futebol, os limites da mera representação. Essa vivência concreta, com seus inevitáveis avaços e recuos, permitirá questionar a estrutura corrompida e alienada que ronda o futebol-empresa e ameça destruir o espírito do jogo.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *