Quero ser hermético

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No novo cinema português, nem sempre os filmes buscam o público: para alguns autores, a arte é contrária à comunicação.

 

Por Bruno Carmelo, editor do blog Discurso-Imagem.

Geralmente uma resenha crítica se inicia pelo contexto da produção, ou por uma breve ideia das ações principais do filme, mas talvez no caso do recente filme português A Espada e a Rosa isto não valha a pena. Ajudaria dizer que esta é uma “comédia musical de ficção científica”? Sublinhar que um grupo de jovens se encontra num barco, cruzando o mar, em possessão de uma substância chamada “plutex” que lhes permite torna-se invisíveis? Ou então dizer que a trilha principal canta um melancólico “Tenho saudades de ti / Vem foder.”?

Não, não vale a pena pôr estrutura num filme que pretende justamente quebrá-la. Compreender A Espada e a Rosa de maneira racional se assemelha a tentar ver figuras conhecidas numa imagem abstrata, ou olhar os animais nas nuvens. Se aquelas são só nuvens, este é só um filme “livre” no bom e mau aspecto da coisa, voluntariamente nonsense, pretensioso, fragmentado, incoerente. É um projeto que não deseja brincar com a ausência de sentido e com as imagens misteriosas estilo David Lynch, mas sim construir dezenas de sentidos em imagens comuns, quaisquer.

Por exemplo: as cenas de ficção científica se passam num barco comum, os cientistas são jovens de 20 anos de bermuda e sandálias, a tal substância potente lembra muito a cola comum, o temido marinheiro é um senhorzinho também de bermuda e sandálias, os reféns necessários ao funcionamento da substância (?) não tentam correr, eles andam em círculos e se despem sob ordens dos chefes. Este projeto não utiliza os códigos imagéticos do cinema de gênero, apenas um ou outro elemento de roteiro. Sua fotografia poderia ser a mesma de um drama qualquer, e seus personagens poderiam figurar num filme sobre as férias em Lisboa. Mas o “roteiro” insiste que são jovens cientistas, e o espectador é convidado a entrar neste faz de conta inverossímil, tão infantil quanto duas crianças que decidem brincar de médico, ou de índio, e passam a assumir uma caricatura grotesca de seus personagens.

Enquanto isso, o diretor João Nicolau se diverte muitíssimo com o poder que parece incumbido à sua função de diretor/autor, fazendo o que quer, manipulando cena por cena, colando as coisas na ordem que bem lhe entende. Seria muito interessante ver uma grande equipe trabalhando neste projeto, e o diretor explicando: “Os reféns vão ter uniformes multicoloridos e se comportarão como crianças, logo após a sedação pelo gás no meio da rua, entenderam?”. A câmera de cinema torna-se um joystick, um videogame, no qual o diretor tem controle total para de fato criar um mundo sem se preocupar com os códigos da representação, ou com a relação do espectador com este material todo. Afinal, entregam-se cenas (metáforas?) sem reais códigos de leitura, de modo que cada um pode tentar enxergar o que quer que seja neste imbróglio todo.

Por isto mesmo A Espada e a Rosa é carregado de um aspecto bastante “autoral”, já que o filme não reflete uma forma de pensamento sobre o mundo exterior, remetendo apenas à própria figura do realizador e a sua subjetividade, seu hermetismo. Talvez a única forma de contexto seja a de um novo cinema português, radicalmente inovador e de narrativa fragmentada (O Fantasma, Morrer Como Um Homem, Dharma Guns). Ou seja, encontraríamos sentido numa certa falta de sentido coletiva. Mas a leitura sintomática da obra é restrita demais: enquanto filme individual, A Espada e a Rosa é um filme “de” João Nicolau, feito por ele, com as ideias dele, que ninguém mais poderia fazer igual, que talvez só ele entenda. Para um primeiro longa-metragem, isso sim é autoria.

A Espada e a Rosa (2010)

Filme português dirigido por João Nicolau.

Com Manuel Mesquita, Luís Lima Barreto, Nuno Pino Custódia, Pedro Faro, Joana Cunha Ferreira, Hugo Leitão, Mariana Ricardo, Lígia Soares, Alice Contreiras.

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Um comentario para "Quero ser hermético"

  1. Belisa P disse:

    Depois dessa resenha, com certeza irei assistir. Afinal, querer é poder e eu amo os herméticos.

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