Rússia e China: Putin na cova do dragão

Governos dos dois grandes países da Ásia debatem energia e mísseis, enquanto nutrem desconfianças mútuas em relação a Washington

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Por M.K. Bhadrakumar, Asia Times Online | Tradução: Vila Vudu

Quinze dias antes de anunciar sua candidatura à presidência da Rússia para as eleições de 2012, o primeiro-ministro Vladimir Putin visitará Pequim. O Kremlin tem em alta conta o simbolismo político, e os líderes chineses nunca se preocuparam com esconder o caloroso afeto que sentem por Putin. As conversações em Pequim, dias 11 e 12 de outubro, atrairão imensa atenção de todo o mundo.

A cooperação no campo da energia, que é vetor importante da parceria estratégica sino-russa, estará, inevitavelmente, no ponto focal da visita. Mas o raro “duplo veto” contra sanções à Síria, no Conselho de Segurança da ONU, semana passada, significa que a aliança está assumindo novo tempero. Os dois países nunca haviam partilhado preocupação tão semelhante quanto ao Oriente Médio nem jamais mostraram desejo comum de preservar os respectivos interesses na região.

Putin viaja à China, num pano de fundo muito mais amplo das relações entre Rússia e o ocidente, sobretudo com os EUA. Não se trata apenas de que as relações EUA-Rússia estarem empacadas; as coisas estão andando para trás, como se o relógio tivesse voltado a um ponto anterior ao início da era Barack Obama.

Do outro lado da mesa, o governo Obama está ressuscitando antigos contenciosos — principalmente os mísseis de defesa, as rivalidades no Mar Cáspio, uma estratégia de “grande Ásia Central” etc. Essas questões têm impacto sobre os principais interesses da China, e a questão principal é em que medida Moscou e Pequim considerarão útil ou interessante coordenar as respectivas posições.

Maiores expectativas

Mas a cooperação no campo da energia é item n. 1 da agenda de Putin e, de fato, é o lubrificante que pode acelerar a complexa parceria sino-russa. Diferenças sobre preços já fizeram parar um negócio de um trilhão de dólares, de venda de gás russo à China. Se Putin cederá na negociação, para conseguir fechar o negócio, é tema que interessa a toda a economia mundial.

Um negócio de compra e venda de gás pode dar forte impulso à parceria, mas a Rússia tem maiores expectativas. Importante especialista russo em questões de energia e diálogo com a China, o professor Igor Tomberg, escreveu recentemente que “vender matéria prima nada tem a ver com parceria estratégica.”

Em artigo publicado na revista International Affairs, do ministério de Relações Exteriores, Tomberg escreveu:

“Para a Gazprom [gigante russa de energia], participação intensiva não implica só recursos, mas também participação tecnológica e financeira na formação do mercado nacional. Implica não só fornecimento de gás, mas participação nas redes de distribuição de gás (compra de ativos e construção de novas fábricas), com vista a controlar a gerência operacional das redes domésticas de distribuição de gás.”

Destacou que as empresas russas de energia até agora só “muito lentamente e episodicamente” entraram no mercado nacional chinês. Numa sugestão radical, Tomberg sugere que Moscou poderia flexibilizar o preço do gás fornecido se, em troca, lhe for garantido acesso ao mercado doméstico chinês, “porque o centro gerador de lucros move-se, da fronteira [sino-russa], mais para o interior”, dentro da China. Reconhece que “é tarefa colossal, não só em termos políticos, mas também em termos técnicos”, e exigiria uma ampla “harmonização dos interesses dos dois países, no campo da segurança em energia”.

Significativamente, Tomberg escrevia para ‘abrir as cortinas’ da visita de Putin a Pequim e acrescentou que “Moscou tem interesse significativo em interação mais ampla, nos parceiros e especialistas chineses”. Sugeriu especificamente que “especialistas russos e chineses podem trabalhar juntos nas seguintes direções: coordenação de estratégias de energia dos dois países, previsões e cenários; desenvolvimento de infraestrutura de mercado; eficiência energética e fontes alternativas de energia.”

A encomenda à Europa do gasoduto do norte [Nord Stream] e o início iminente dos trabalhos de construção do oleoduto do sul [South Stream] põem a Rússia em terreno firme. Mas surgiram novas tensões na política de energia do Cáspio.

O Azerbaijão ganhou a sorte grande, com descobertas de grandes jazidas de gás que, do dia para a noite, aumentam as chances dos projetos do oleoduto trans-Cáspio patrocinados pelos EUA e que podem garantir acesso aos europeus, diretamente às reservas de energia da região, alterando a situação atual, em que dependem do que a Rússia lhes forneça.

Em termos simples, a Europa está ganhando poder de alavancagem na negociação de preços com a Rússia e para manter afastadas as companhias russas de energia, tirando-lhes condições para que entrem mais agressivamente no mercado europeu de energia, mediante aquisições ou conseguindo participação na rede de distribuição. Moscou vê a mão oculta dos EUA no renovado impulso da Comissão Europeia para impor política comum a todos os países-membros nos negócios de energia com a Rússia.

Cortina de fumaça

Mas em nenhum outro aspecto essas rivalidades são hoje mais agudas e mais graves que na disputa sobre os mísseis de defesa (mísseis antibalísticos – ABM, em inglês) que os EUA andam instalando pelo mundo. Na quarta-feira, o governo Obama anunciou que os EUA vão instalar uma base de cruzadores Aegis [1] na costa da Espanha. A notícia vem imediatamente depois da notícia do deslocamento de naves de combate equipadas com a tecnologia ABM na Romênia, Bulgária e Turquia.

Há dois anos, quando falava de reconfigurar as relações com a Rússia, Obama prometeu que revisaria o plano ABM – ou, pelo menos, Moscou assim interpretou aqueles discursos. E, hoje, Obama, de fato, está completando o escudo, previsto para estar completado à altura de 2020.

Moscou reagiu rapidamente. Declaração do ministério do Exterior denunciou o negócio com a Espanha e ameaça abandonar qualquer cooperação com os EUA. Alegou que os EUA fecharam o negócio com a Espanha “sem discussão coletiva”, e que constitui “aumento significativo do potencial de mísseis dos EUA na zona europeia”. Diz a declaração:

“Não apenas não se constata qualquer presteza, no governo dos EUA, para dar encaminhamento à preocupação russa sobre a questão chave de garantir que o futuro sistema não visará o arsenal nuclear russo estratégico; observamos também a tendência, pelos EUA, de expandir cada vez mais a distribuição de sistemas norte-americanos antimísseis. Se isso continuar, estará fechada qualquer possibilidade de (…) converter a defesa antimísseis, de área de confrontação, em área de cooperação.”

A questão do escudo de mísseis pode vir a ser mais que disputa entre a Rússia e o ocidente. Os EUA estão trazendo o Japão e a Coreia do Sul para seu escudo ABM. Interessante, que a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) encaminhou a Nova Delhi, no início de setembro, convite para que a Índia incorpore-se como “parceira” ao seu programa de mísseis balísticos, e o establishment de defesa indiano está considerando ativamente o convite da OTAN, com um olho na possibilidade de dar um xeque mate às capacidades chineses.

Deve-se esperar que a China venha, cada vez mais, a partilhar a visão dos russos sobre o sistema de mísseis antibalísticos – para os quais o sistema ABM não passa de cortina de fumaça para neutralizar suas defesas. Quando a reaproximação entre EUA e os russos e as conversações exploratórias sobre o sistema ABM recomeçam, Moscou e Pequim podem sentir a necessidade de calibrarem suas respostas políticas a um desafio comum.

Por outro lado, as preocupações de russos e chineses com a segurança sobrepõem-se quase completamente, ante o recente movimento do governo Obama para reviver a estratégica da “grande Ásia Central”. Washington chama hoje aquela estratégia de projeto “Rota da Seda” e espera expandi-la para incluir aliados europeus dos EUA, associando a “Rota da Seda” e a estabilização do Afeganistão, onde a OTAN desempenha papel chave.

O projeto “Rota da Seda” tem em boa parte a mesma orientação da estratégia “grande Ásia Central” do governo de George W Bush – a saber, fazer retroceder a influência de russos e chineses na Ásia Central. À primeira vista, não será fácil para Moscou e Pequim opor-se ao projeto de Obama, dado que tem apoio europeu e está ostensivamente ligado à estabilização do Afeganistão.

Washington espera construir consenso internacional a favor do projeto, em conferência sobre o Afeganistão, marcada para acontecer em Istanbul, Turquia, dia 2/11/2011.

Enquanto isso, crescem os sinais de que o Uzbequistão está interessado em apoiar a OTAN, na agenda da aliança para expandir sua influência na Ásia Central. Os EUA estão bem posicionados para iniciar uma ampla cooperação militar expandida com o Uzbequistão, incluindo fornecimento de armas. Essas tendências recentes, que pesam na direção de uma permanente presença militar dos EUA no Afeganistão, não favorecem os interesses regionais de Rússia e China.

“No ar”

Como se leu em comentário de Moscou sobre o 10º aniversário da guerra dos EUA contra o Afeganistão, o “prazo final de retirada [de Obama], marcado para 2014, parece estar no ar”. De fato, o novo comandante das forças da coalizão comandadas pelos EUA no Afeganistão, general John Allen, já admitiu abertamente, em entrevista à rede CBS, que o prazo final, de 2014, pode não ser cumprido. “O plano é vencer. O plano é sermos bem-sucedidos. Quer dizer… Mesmo que se ouça por aí que estaremos fora de lá em 2014, a verdade é que ficaremos por aqui por muito tempo”.[2]

Acrescentou que o número e a composição das forças dos EUA que permanecerão no Afeganistão depois de 2014 ainda não estão decididas. “A OTAN e seus aliados, me parece, não estão dispostos a deixar essa região muito volátil (…) Penso que as forças dos EUA permanecerão aqui por muito tempo.”

Moscou sente a necessidade de construir contra-estratégia viável. A recente sugestão de Putin, de formar-se uma “União Eurasiana” pode ser considerada sob essa perspectiva. Putin estima que, em última instância, o meio para impedir o avanço do ocidente no quintal russo na Ásia Central é expandir o espaço econômico comum da Rússia com o Cazaquistão e Belarus. Esse será o principal projeto da nova presidência de Putin – no caso de ser eleito – o que muito provavelmente acontecerá.

Até agora, a China tem polidamente contornado a ideia lançada por Putin, e o Diário do Povo tem comentado amplamente que “a troca” na “fila de comando” no Kremlin “assegurará que a Rússia continue a manter a estabilidade e alcance desenvolvimento estável, para reconquistar seu status de grande potência”.

Mas acrescentou que, ao mesmo tempo, os registros russos ao longo de 20 anos mostram que a transição política sempre é “equação com várias incógnitas” e que a “equação” terá mais de uma resposta, como “projeto sistêmico complexo sem saída fácil adiante e sem modelo consagrado que se aplique”[3]. Outro comentário, no jornal do Partido Comunista, avalia, com cautela:

Por ora, interessa à China uma Rússia que segue Putin. No longo prazo, pode implicar desafios ao leste da Ásia; mas hoje não se pode saber. O renascer russo não pode ser contido e as relações entre Rússia e China serão mais complexas. Os objetivos básicos da política da China para a Rússia devem ser: manter-se adaptável à rota de desenvolvimento que Putin comandará e manter a parceria estratégica e de cooperação entre China e Rússia”.[4]

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[1] Mísseis de defesa instalados em navios. “Em janeiro de 1983, a marinha dos EUA incorporou o USS Ticonderoga, primeiro cruzador equipado com o sistema de combate Aegis, fabricado pela Lockheed Martin Corp.” (Mais, sobre isso, em http://usmilitary.about.com/od/navyweapons/a/aegis.htm

[2] 3/10/2011, CBS, em http://www.cbsnews.com/stories/2011/10/03/eveningnews/main20115051.shtml [em inglês].

[3] 28/9/2011, People Daily, em http://english.peopledaily.com.cn/90780/7606977.html [em inglês].

[4] 26/9/2011, People Daily, em http://english.peopledaily.com.cn/90780/7604203.html [em inglês].

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