Pulou a catraca e foi ao psicanalista

Num tempo de cidades e vidas mercantilizadas, seria possível pensar em transportes urbanos gratuitos? E em psicanálise sem dinheiro? Nossa nova coluna acha que sim

Na Clínica Pública de Psicanálise, no Bixiga (São Paulo), ambientes e divãs não-convencionais

Na Clínica Pública de Psicanálise, no Bixiga (São Paulo), ambientes e divãs não-convencionais [Foto: Daniel Guimarẽs]

Num tempo de cidades e vidas mercantilizadas, seria possível pensar em transportes urbanos gratuitos? E em psicanálise sem dinheiro? Nossa nova coluna aposta que sim

.

Por Daniel Guimarães

MAIS:

Esse texto é um primeiro passo de uma relação política e afetiva entre a Clínica Pública de Psicanálise Outras Palavras. Trabalhos que, a meu ver e aos meus ouvidos, dialogam de muitas formas e conteúdos. Pois se esta Clínica não busca transformar os que nos procuram de acordo com nossas visões de mundo, certamente não tem receio em se posicionar no mundo a partir de alguns norteadores semelhantes aos de Outras Palavras

Poderia mencionar alguns destes norteadores para começo de conversa: proporcionar caminhos para que as classes populares possam buscar na psicanálise uma forma de mitigação de seu sofrimento e de transformação de seus conflitos particulares e relacionados à vida social. Fazer esta psicanálise sem a mediação do pagamento em dinheiro por parte dos analisandos/pacientes, como forma de lembrança da possibilidade de a psicanálise ser inserida e multiplicada em sua forma terapêutica e seus conceitos na rede pública de saúde e cultura, com um viés de forte cidadania comunitária. Defender e disputar os conceitos de espaços e políticas públicas, que hoje sofrem enorme risco de desaparecimento (ao menos nos caminhos que produzem algum equilíbrio na qualidade da vida popular, não esquecendo aqui que a acumulação das grandes riquezas depende do instrumento comum de decisões políticas e econômicas que é o Estado — daí nosso interesse não apenas em falar em um público, mas em disputar o que significa esse conceito). Sustentar o não-esquecimento de que ali onde estamos — a Vila Itororó, no Bixiga, São Paulo — viviam famílias que foram removidas em nome da construção de um centro cultural, em nome de um tipo questionável de noção de público.

Praticamos, portanto, uma política de reparação psíquica não apenas para os ex-moradores, mas para todos os ex-moradores que experimentaram situações semelhantes e sofreram consequências psíquicas significativas de desterritorialização, de exílio periférico; apostamos numa psicanálise pública construída de baixo para cima, uma aposta do tipo de vida social geral que poderíamos ter, já com alguma experimentação no aqui e agora, questão que abre outros fios para a psicanálise — por exemplo sua relação com a história e a mitologia vivenciada aqui, num exercício de descolonização da escuta e do corpo. Um descentramento mesmo das posições sociais culturalmente identificadas com relação aos psicanalistas e dos psicanalistas com a psicanálise que conheceram, fortemente marcada por uma imagem de serviço prestado para classes abastadas por integrantes de classes abastadas. Afinal, é a partir desses descentramentos que conseguimos escutar, dentro de referências universais, o que escapa naquele sujeito que está conosco numa situação montada para permitir outras derivações diante, talvez, de conflito ou perdas destes mesmos referenciais. É preciso abertura para formas muito variadas de existência. No sentido de que se Eros nos serve para pensar as intensidades de vida, aqui Exu também deve ser convidado a participar de nossos encontros.

O aqui e agora citado acima diz respeito diretamente a vida após o capitalismo. Não podemos acreditar que a história da vida humana já atingiu seu melhor momento, quando temos tantos contra-exemplos ao nosso lado. O desejo de um a mais do sopro de vida nos constitui. Esse é mais ponto de afinidade com o Outras Palavras, nome muito psicanalitico, diga-se de passagem. Isso é de muita importância porque no mundo da psicanálise existem debates sérios, ou às vezes ausência ruidosa de debates, sobre a relação do dinheiro e a implicação particular do sujeito em seu processo analítico. Esse é um tema que pode ser debatido em outras colunas que virão. Muito embora este primeiro texto arranhe a questão de forma indireta, a partir de uma bifurcação. A primeira ideia para esta coluna era dividir, re-atualizar e comentar um texto que escrevi meses atrás para apresentar a Clínica Pública de Psicanálise, chamado Direito à cidade psíquica, que pode ser lido aqui. Há uma parte importante, nuclear talvez, naquele texto, que me parece apropriado retomar agora que estamos diante de uma ação anti-popular, diria eu anti-pública, do prefeito de São Paulo João Dória (PSDB), em aumentar a tarifa de transporte de R$ 3,80 para R$ 4,00. Uma decisão como essa reverbera também no preço da passagem do metrô e já há tempos sofremos com o aumento do custo das baldeações e do bilhete mensal.

180110-Clínica

[Helena Zelic]

Importante dizer logo de antemão que até muito pouco tempo fui militante do Movimento Passe Livre, o qual ajudei mesmo a fundar, há cerca de quinze anos. Esse movimento, que depois de 2013 passou a ser quase um tabu dentro da esquerda ampliada — e, diria, a esquerda ampliada também se tornou tabu para este movimento –, se propôs desde sempre intervir na cidade a favor de melhores condições de vida para a classe trabalhadora, impedida de circular por conta das tarifas cobradas pelas empresas de ônibus sob concessão pública. Apontávamos essa contradição. Quando iniciamos o movimento o transporte era o terceiro maior gasto da família brasileira. E citávamos à exaustão um dado do Ipea, de que quase 40 milhões de brasileiros e brasileiras eram excluídas da cidade por não poderem pagar pela passagem. Quase uma torcida inteira do Flamengo.

Percebam que aqui estamos trabalhando com um conceito de que direito à cidade não é apenas ter acesso aos equipamentos públicos ou ao mercado. Mas também a capacidade de uma população criar a cidade, não apenas como trabalhadores contratados, mas como inventores de acordo com suas necessidades e desejos e de desejos que ainda não sabem conscientemente possuir. É aqui que a questão da psicanálise, do dinheiro e da mobilidade se encontram. Minha aposta é que a ampliação da circulação do corpo no espaço territorial faz ampliar as qualidades de circulação e saúde intrapsíquica dos sujeitos. A medida do prefeito João Dória, que é apenas a crise de um corpo já adoecido em profundidade, aponta não apenas para a exclusão social e econômica, mas também a redução das possibilidades de encontros amorosos, de amizade, de vida em todo seu alcance, coisas que ampliam nosso repertório de saúde psíquica emocional. É uma medida que intervém negativamente na saúde mental da cidade, com gravíssimas consequências. Daí a qualidade de intervenção psíquica, além de política, do Movimento Passe Livre, que já convoca a população para se manifestar contra essa medida a partir do dia 11.

Como numa análise, vou costurando alguns trechos daquele texto a ver com a questão que estou propondo nesse texto de abertura. A questão do dinheiro na psicanálise e a desmonetarização do inconsciente ocupam muito mais espaço e será necessário mais calma para destrinchá-las. Tudo bem, tenhamos calma e estratégia. Seguiremos o debate adiante. Em Direito à cidade psíquicaapoio-me que num estudo da Faculdade de Medicina da USP, que apresenta dados muito significativos sobre maiores índices de adoecimento psíquico em regiões onde a população tem menores índices (frequência e qualidade) de mobilidade pela cidade — ou seja, há maiores adoecimentos onde o repertório ambiental mental é reduzido, quando há pobreza e impedimento mesmo de deslocamento (num futuro breve comentarei mais sobre este estudo). No texto, eu argumentava:

“A ampliação dos deslocamentos pela cidade, a partir de um processo transferencial afetivo, ou seja, um trajeto distinto da hostilidade e obrigação dos não-caminhos casa-trabalho-casa, ou casa-escola-casa, e com uma companhia engajada, pode ter como consequência a ampliação do repertório de representações psíquicas, dos traços de memória, dos cenários do nosso ‘mundo interno’ pelo qual a gente fantasia. Isso pode ser um ato terapêutico e crítico em si, proporcionando ao sujeito e seu psiquismo maiores saídas para situações dilemáticas, difíceis, truncadas. E isso vale para todos e todas nós, analistas e analisandos e artistas e trabalhadores em geral. Um estudo do Hospital das Clínicas da FMUSP, Estudo epidemiológico dos transtornos psiquiátricos na região metropolitana de São Paulo: prevalências, fatores de risco e sobrecarga social e econômica, que aproxima as noções de falta de mobilidade e aumento de adoecimentos mentais variados, me dá alguma segurança nesta intuição da dialética entre espaço territorial e espaço psíquico. Por isso chamo este texto de O direito à cidade psíquica. Tomo de empréstimo as noções que Henri Lefebvre e David Harvey pensam do termo ‘direito à cidade’, não apenas como o direito ao acesso às coisas que a municipalidade oferece, mas o direito em si de construir a cidade, de agir política-terapeuticamente na transformação da cidade que nos forma. Direito ainda hoje negado às classes populares. Um privilégio do mercado, mais auxiliado do que interditado pelo Estado. Penso a psicanálise como um urbanismo psíquico crítico e democrático das profundezas e superfícies, das ruas, vielas, corredores e, principalmente, das periferias por onde se desloca, ou é inibida, nossa libido em desenvolvimento. Vale lembrar que vivemos numa cidade em que a média de expectativa de vida aumenta ou diminui radicalmente a depender de sua localização. Por exemplo, de acordo com o Mapa da Desigualdade 2016, da Rede Nossa São Paulo, um morador de Alto de Pinheiros vive em média 25 anos mais que um morador da Cidade Tiradentes. Para complementar este ponto, convido a leitura de um texto que escrevi em 2010, para a revista Urbânia 4, chamado Deslocamento é lugar”.

Lá sustento que:

“A psicanálise deve levar em consideração o lugar onde é praticada. Isso também faz parte da montagem, do setting, do enquadre. Estamos no Brasil, e num Brasil ladeira abaixo do ponto de vista da distância entre classes sociais, do ponto de vista econômico, cultural, educacional, o que for. Estamos também num momento em que a relação entre trabalho individual e sua produção particular, a remuneração, o tempo e o dinheiro também já foram em muito ampliadas, desde o período do nascimento da psicanálise. Hoje debate-se o trabalho imaterial socialmente produzido e não remunerado; a financeirização do próprio dinheiro que lhe atribui uma abstração de valor ainda maior; propostas sobre rendas básicas para garantir cidadania (aqui incluímos os cuidados psíquicos entre os direitos a serem defendidos)… Os/as psicanalistas não devem querer saber sobre qual solo pisam ao tratar destas questões? Como diria outra banda punk rock, o Fugazi, é preciso criar um novo instrumento de medida sobre o valor das coisas.

Deslocando um pouco, mas não muito, retomo a discussão que propúnhamos no Movimento Passe Livre. O movimento defende que a cidade deve ser acessada por todos e todas, já que todos e todas contribuem com sua construção e manutenção. Para isso, é preciso uma rede ampla e gratuita de transporte coletivo, para que o transporte seja público de verdade, que a cidade seja pública de verdade. Pois um hospital, uma praça, uma escola etc. não são públicos de verdade se os habitantes não podem ter acesso a elas pela cobrança de uma tarifa. E na verdade, diz o movimento, não se trata de gratuidade. Deve-se diferenciar custo de tarifa. O custo operacional de um ônibus (salários, manutenção, garagem, reposição de peças etc.) não é exatamente a base do cálculo feito para o valor cobrado pelo seu uso, a tarifa. Muitos outros fatores são inseridos nesse cálculo, muitas formas de pensar economicamente – e muitos interesses conflitantes – produzem valores diferentes até chegar o preço da tarifa. Para o MPL, o pagamento do custo transporte, essa forma material de deslocamentos simbólicos pelo território geográfico e existencial (usando novamente as palavras de Antonio Lancetti), deveria se dar através dos impostos, dos fundos públicos, do orçamento público, que, a nosso ver, deveria ser constituído de forma progressiva. Ou seja, quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos, quem não tem nada não paga nada. Assim, produziríamos uma forma política mais próxima de um gesto social-coletivo, apostando nos ganhos de todos com os custos compartilhados proporcionalmente. E é claro que enfrentamos resistências, de classe, do medo do desconhecido, das encarnações das forças mortíferas e auto-destrutivas que circulam por aí.”

+

“Por que tantas pessoas vêm de tão longe até a Clínica, demorando até duas horas para vir, mais duas para voltar? Sem nos conhecer, sem saber da profundidade do nosso compromisso com elas? Sem sequer saber que coisa é essa de psicanálise? Minha aposta forte está no fato da não mediação pelo dinheiro, na acolhida inédita, pouco ou nada burocrática. No convite em que se espera nada a não ser tudo, quer dizer, o próprio encontro. Sem triagens, sem anamnese, sem preenchimento de fichas. A presença dedicada do outro e nada mais. Daí a importância das clínicas na periferia, daí a importância da tarifa zero como um direito que proporciona outros direitos. Se você não pode chegar até a clínica pública, é pública a Clínica?”

Para terminar esse primeiro encontro, escolho esta parte, que acentua a importância do tempo ao lado dos impactos econômicos. As duas pontas trabalham simultaneamente. O trabalho em demasia rouba o tempo. O trabalho em demasia e muito mal remunerado rouba o tempo e devolve muito pouco em troca. O trabalho em demasia, mal remunerado rouba o tempo, semi-vivido nas horas acumuladas em deslocamentos feitos de forma compulsória pela ampla maioria da população que vive na periferia e trabalha no centro. Rouba a energia, a força vital para construir comunidade e suas relações futuras. A falta de trabalho, por sua vez, muda até mesmo a relação criativa do ócio e da solidão saudável. Tudo isso pode ser lido com muito mais qualidade nesse trecho de Antonio Candido:

“Acho que uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito atribuído a Benjamim Franklin, ‘tempo é dinheiro’. Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte. Portanto, eu tenho direito a esse tempo; esse tempo pertence a meus afetos, é para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis: isso é o tempo. E justamente a luta pela instrução do trabalhador é a luta pela conquista do tempo como universo de realização própria. A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’.”

É por isso também que criamos essa Clínica Pública de Psicanálise Tarifa Zero. Por isso mesmo me posiciono a favor da luta do Movimento Passe Livre, que, em sua luta, fazem clínica na cidade a favor da vida coletiva.

Leia Também:

Um comentario para "Pulou a catraca e foi ao psicanalista"

  1. Dar de graça o que de graça recebestes. Esta é uma visão messiânica e cristã de tratar os conflitos da alma. Nada vem de graça. Não tem almoço gratis. Como acreditar nesta ideia de mitigação de sofrimento àquele que não se sente digno de ter um ambiente livre de ruídos para expor suas angustias. Tem muitas questões que gostaria de contrapor a este conceito de direito à cidade e desmonetarização da vida. Só se liberta do capital quem tem capital. Só é livre do dinheiro quem tem dinheiro. Afirmar o contrario disso é catequese Franciscana.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *