Pós-capitalismo, direitos humanos e liberdade

Por que conceitos e bandeiras que foram usados contra o velho socialismo estão trocando de sentido

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É um deleite, para os interessados em filosofia política, o breve artigo que Giuseppe Cocco acaba de publicar no blog coletivo “Trezentos”. Intitula-se “Comunicação e Direitos Humanos: o trabalho dos Direitos”. Discute o fato de a crítica ao capitalismo ter começado a se apropriar de conceitos (e bandeiras) que, em décadas passadas, fizeram parte do arsenal de armas ideológicas usadas contra o “socialismo” soviético.

“Liberdade” é uma delas. Foi fartamente usada pelo capitalismo para um contraponto muito eficaz ao totalitarismo da União Soviética. Mas o surgimento de uma cultura emancipatória nova, que rejeita a uniformidade, está permitindo mostrar como, nas sociedades de mercado, as margens de opção são estreitas — e como “liberdade” precisa significar abertura para outros modos de convívio.

Com “direitos humanos” — o foco principal do artigo de Cocco — dá-se o mesmo. Há algum tempo, The Economist (uma revista excelente, mas de horizonte ideológico limitado) publicou um longo estudo “alertando” para o “risco” de que o termo ganhasse novas dimensões, deixando de significar apenas direitos civis. E é o que, felizmente, está ocorrendo.

Direitos não mais como forma de exercício do individualismo, mas expressão de uma lógica oposta à do lucro. Por exemplo, o direito à água (na África, ou numa periferia do Brasil) deve prevalecer sobre o cálculo econômico — que deixa as populações desabastecidas, porque seu consumo não oferece retorno financeiro “adequado”. O direito à comunicação deve, entre outras conquistas, assegurar o acesso de todos à internet, inclusive com gratuidade para os que não podem pagar.

A relação é infinita. Uma vez firmada a possibilidade de uma lógica social alternativa à do capitalismo, abrem-se múltiplas janelas. Uma delas, aliás, no terreno dos projetos emancipatórios. Começamos a compreender que superar o sistema não equivale a tomar o poder do Estado — seja pelas eleições ou pela revolução. Os governos são importantíssimos (vide a disputa que se abre agora, no Brasil), mas apenas quando temos um projeto de dinâmicas sociais colaborativas, des-hierarquizantes, distributivistas. É a aventura (prática, mas também intelectual) que estamos começando a viver, agora que o capitalismo está em crise e que já não há, como alternativa a ele, a tentação do “socialismo” de homogenização.

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7 comentários para "Pós-capitalismo, direitos humanos e liberdade"

  1. Armando Carvalho disse:

    Obrigado pelo convite, mas receio não possuir (ainda) os requisitos de exposição necessários para elaborar uma abordagem académica tão complexa. Quis somente recentrar a discussão na base da mais que inevitável tomada do poder pelo povo e dos pressupostos ideológicos que a viabilizam. Eu não passo de um militante activo e praticante dessa luta social, limitado no contexto das limitações historicamente impostas à classe trabalhora: o tempo usurpado por uma actividade de sobrevivência económica anestesiante e oposta ao meu potencial de desenvolvimento pessoal e social, o silenciamento e deturpação da comunicação social burguesa, etc. O rol , mais ou menos completo, do condicionamento social que a história da luta de classes constata.
    O que eu posso partilhar destas actividades (movimentos populares, autarquias, etc) é que cresce a consciência proporcionada pela luta e seus resultados praticos, mas cresce para além da mera reivindicação imediata, para a exigência de uma nova sociedade estruturada num novo tipo de Estado. Quanto ao objecto da exploração e o papel da classe operária, isso meu caro é pano para outras mangas. Mas devolvo-te o desafio:porque não desenvolves este tema?
    Abraço

  2. Antonio Martins disse:

    Resposta: É um ótimo debate, Armando — e que bom se o post servir para suscitá-lo. Você destacou o argumento central da breve pensata. Respondo muito brevemente: penso que a exploração existe e é mais forte do que nunca — mas nem se concentra na classe operária, nem tem como palco principal a indústria. Por isso, as formas de superá-la também precisam ser outras. Para alimentar o tema, queres publicar em Outras Palavras um texto mais amplo sobre o tema? Será um prazer.
    Abraço forte
    Antonio

  3. Armando Carvalho disse:

    “Começamos a compreender que superar o sistema não equivale a tomar o poder do Estado”, essa é de campeonato, Martins, mas já é tão antiga como a própria exploração do homem pelo homem. Ou também já “não existe”, como a classe operária? Ignoro qual a tua perspectiva da natureza do estado e dos fundamentos para a sua existência, mas cheira-me que não deve andar longe das “ilusões” – para não lhe chamar outra coisa – das expectativas salvacionistas dos amigos da onça face ao óbvio descalabro do capitalismo. Mas não vai ser pela “letra”, Martins, não vai, não…
    Armando Carvalho
    Valença do Minho – Portugal

  4. admin disse:

    Sou eu, sim, Acauã. Que ótimo te reencontrar e saber que continuamos juntos, atrás das respostas.
    Abração
    Antonio

  5. Acauã Rodrigues disse:

    .
    Caro Antonio Martins
    Acho que o conveito de “cidadania” ainda é referencia para o questionamento do capitalismo, incluindo a questão de cidadania planetária e das próximas gerações.
    Mas… Desculpe, você é o Antonio Martins que conheci em meados de 80, Congresso do DCE Unesp em Assis….. ??
    De qq forma, abraço !
    Acauã
    .

  6. Luciano Pita disse:

    O Capitalismo está em crise, mas será reestruturado mais uma vez. Não tenha dúvidas. E novos ataques aos direitos trabalhistas, ao direito à água, à informação, serão logo postos em prática novamente, pois o capitalismo não morrerá sozinho, como o feudalismo também não morreu. Sua pregação é repetitiva, já vimos esse filme antes, de esperança em lutas isoladas, em propostas utópicas, que não ameaçam o poder do Estado. O discurso dos direitos humanos, como sempre, passa longe do tema greve, organização sindical, partido político, logo passa longe também da vida real e da vida do povo. Pena. Os burgueses dariam boas risadas de seu texto: para eles, é engraçado; para nós, trágico.

  7. Henrique Napoleão Alves disse:

    Prezado Antonio Martins,
    O Sr. tem a fonte do estudo do The Economist mencionado? Tentei encontrá-lo em pesquisa avançada na internet e não consegui….
    Seria de grande ajuda para as investigações que empreendo acerca de direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais.
    Meu email para contato é [email protected]
    Abraços cordiais,
    Henrique.
    Resposta:
    Caro Henrique:
    Achei os textos. São de 2001. Ao contrário do que eu imaginava, não se trata de um survey, mas de um editorial (http://www.economist.com/opinion/displaystory.cfm?story_id=E1_SPJQSV) e um artigo encorpado (http://www.economist.com/world/displaystory.cfm?story_id=E1_SPJPRV).
    Sucesso no teu estudo e forte abraço
    Antonio

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