A possível Ética do Antropoceno

Para lutar contra mudança climática é preciso mostrar que uma vida digna, porém frugal, pode ser muito mais prazerosa e estimulante que o “conforto” ligado ao consumismo

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O ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, na chácara onde vive. "É preciso cultivar um conjunto de virtudes que permitirão uma vida significativa, de cooperação social e respeito à natureza", diz Abramovay

O ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, na chácara onde vive. “É preciso cultivar um conjunto de virtudes que permitirão uma vida significativa, de cooperação social e respeito à natureza”, diz Abramovay

Para lutar contra mudança climática é preciso mostrar que uma vida digna, porém frugal, pode ser muito mais prazerosa e estimulante que o “conforto” ligado ao consumismo

Por Ricardo Abramovay*

A psicologia climática e a filosofia ética convidam os ativistas socioambientais a repensar seu trabalho. A comunicação sobre mudança climática, nos últimos anos, vem enfatizando os eventos extremos, o derretimento das geleiras, as inundações, as secas e um assustador conjunto de catástrofes que já atingem a vida no planeta. Além disso, como o sistema de preços não sinaliza o real custo do que se produz e consome, parte cada vez maior da sociedade tem um padrão de vida que só se mantém por não respeitar os limites ecossistêmicos além dos quais a própria reprodução social está ameaçada.

Culpa e medo têm sido o prato cotidiano que se oferece à sociedade, na abordagem da mudança climática, seja nos comunicados do IPCC, seja na mensagem da esmagadora maioria das organizações não governamentais.

Não se trata de censurar os movimentos sociais ou os cientistas pelas denúncias que fazem nem de sugerir que elas sejam atenuadas. Mas, se não forem compreendidas as razões culturais e cognitivas da convivência tolerante com a mudança climática, as chances de avanço serão muito limitadas.

O problema não está apenas no negacionismo climático e sim na timidez da mobilização social para interromper o caminho desastroso que se está tomando. É aqui que tanto a filosofia ética como a psicologia climática oferecem contribuições decisivas. E estas contribuições, mesmo que se refiram especificamente à mudança climática, são fundamentais para a esmagadora maioria dos temas socioambientais contemporâneos.

São ao menos dois os pontos de convergência entre a filosofia ética e a psicologia climática. O primeiro, enfatizado no indispensável livro de Dale Jamieson [1], tem por eixo a noção de responsabilidade. Mesmo que haja elementos empíricos demonstrando a imensa desigualdade social na ocupação do espaço carbono, é muito difícil conceber o consumo dos bens que dão origem às emissões como moralmente suspeito, no mesmo sentido, por exemplo, de um roubo ou um assassinato. Diferentemente de um roubo ou um assassinato, não há intenção de destruir o sistema climático no ato de consumo e isso não é moralmente irrelevante, por uma razão decisiva para a qual a psicologia climática, segundo o recém-publicado livro de Per Espen Stoknes [2], chama atenção: a culpa e o medo são péssimos conselheiros.

O tiro da culpa e do medo costuma sair pela culatra, mostra Stoknes, sob a forma de uma autojustificação complacente que vai desde o “todos-agem-assim” até a minimização idealizada dos impactos provocados pelo consumo de cada um de nós. Com isso, diz Stoknes, a dissonância cognitiva entre o que dizem os cientistas e as condutas dos indivíduos aumenta. Esse fosso é ampliado tanto pelo interesse de muitas empresas em persistir na oferta de bens e serviços altamente emissores como pela dificuldade de os indivíduos nem sequer vislumbrarem mudanças na maneira como vivem. O que se torna ameaçador, então, é menos a mudança climática do que a chamada para que seu enfrentamento traga alterações nos modos de vida. A inércia no comportamento dos indivíduos e das organizações (privadas e públicas) é especialmente forte quando se trata dos padrões sociais de consumo.

A resposta a este problema, para Jamieson, não está na economia, na atribuição de preços ao uso dos recursos ecossistêmicos, mesmo que isso seja, em princípio, importante: “A economia — diz ele — tem muito a dizer sobre incentivos e custos, mas pouco ou nada sobre as finalidades que nós devemos perseguir”. E é por isso que Jamieson se empenha na formulação de uma ética do Antropoceno, um conjunto de virtudes que poderão permitir uma vida significativa, de cooperação social e respeito à natureza, apesar de toda a destruição que marca o mundo atual e que vai marcar seu futuro ainda por muito tempo.

É interessante, aqui também, a convergência com a psicologia climática. Muito mais que a culpa, o medo ou a informação científica, o principal elemento capaz de fortalecer a mobilização social contra a aceleração da mudança climática é a esperança de que a vida sob uma economia de baixo carbono possa ser melhor do que a propiciada pelo conforto ligado aos atuais padrões de consumo, intensivos em combustíveis fósseis e comprometedores dos ecossistemas.

Longe de exprimir crença cega no poder da ciência e da técnica, esta mudança de foco é que vai permitir que ética e política – “como viver uma vida significativa sob o Antropoceno?”, pergunta Jamieson – ocupem centro da luta contra o aquecimento global.

* Ricardo Abramovay contribui regularmente para a seção “Outro Desenvolvimento” de Outras Palavras. Este texto foi publicado originalmente em Página22

[1] Reason in a Dark Time: Why the struggle against climate change failed and what it means for our future. Oxford University Press. 2014

[2] What We Think About When We Try Not to Think About Global Warming. Toward a New Psychology of Climate Action. Chelsea Green Publishing. 2015

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2 comentários para "A possível Ética do Antropoceno"

  1. Edgar Rocha disse:

    Sistema este embasado na busca pela felicidade (entenda-se satisfação) elevada à condição de direito e princípio, embora, na prática seja pervertida num conjunto de necessidades pré-estabelecidas e ditadas tiranicamente pelo mercado.
    José Mujica, creio eu, é no momento a única referência mundial de realização pessoal e pública a partir do princípio da austeridade, responsabilidade social e apreço às pequenas coisas da vida. É preciso surgir mais. No Brasil, até o momento, embora muitos tentem alcançar tal estágio de civilidade, ainda estão contaminados justamente pelo princípio da propaganda, do modismo, da construção arquetípica (passível de se tornar um produto mercadológico). A austeridade é vendida como uma forma de vida para poucos. Um paradoxo que só a política de controle de massas pode gerar: ser simples é pra quem pode, pra quem é rico e famoso. É fruto da superioridade moral de membros da elite consumidora e mebro fiel do statu quo. Ser simples é ser chique, é ser clean, cult, pop, natureba. É usar canola, comer tudo diet ou integral, usar açúcar mascavo e ingerir, quando muito, carne de galinha feliz. Não importa o preço.
    Desculpem-me por enviar em duas partes. A página está com problemas de visiualização.

  2. Edgar Rocha disse:

    A proposta acima é o que há de mais coerente no momento. Só gostaria de acrescentar o risco de se tentar combater a sedução do modo de vida suicida em que vivemos com a sedução pela austeridade e frugalidade plenas. Sairíamos perdendo com isto, sem sombra de dúvida. Propaganda não seria o melhor mecanismo, muito menos o mais adequado se quisermos avançar sob o ponto de vista da liberdade de pensamento. Quem seduz, conduz. Seria preciso, portanto, criarem-se referências capazes de agregar àqueles que de forma consciente, decidiram resgatar a qualidade de vida perdida e compensada com “produtos” e “paliativos” que alimentam o sistema atual.

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