Por um BRICS para os povos

Bloco parece de fato disposto a questionar hegemonia das potências ocidentais. Mas será possível levá-lo a considerar nova ordem mundial?

Chefes de Estado dos BRICS, posam para foto, após 6ª reunião de cúpula do grupo, em julho, em Fortaleza

Chefes de Estado dos BRICS, posam para foto, após 6ª reunião de cúpula do grupo, em julho, em Fortaleza

 

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Por Fátima Melo

Os resultados da VI Cúpula dos BRICS, expressos na Declaração de Fortaleza, evidenciam que o bloco passou a dar passos concretos em iniciativas de grande importância na disputa por uma nova ordem global que encontra-se em um longo processo de reconfiguração desde o fim da Guerra Fria.

A criação do Novo Banco de Desenvolvimento e do Arranjo Contingente de Reservas dão concretude à demanda por democratização da arquitetura financeira internacional e pela reforma das instituições de Bretton Woods. Mas a Declaração de Fortaleza não para por aí e afirma a disposição do bloco em atuar em uma ampla gama de temas estratégicos em disputa na arena global: sempre reiterando a centralidade das Nações Unidas, os BRICS se posicionam claramente em relação aos conflitos na Síria, no Irã e a questão nuclear, Afeganistão, Iraque, Ucrânia, Palestina, e reafirmam “a necessidade de uma reforma abrangente das Nações Unidas, incluindo seu Conselho de Segurança, com vistas a torná-lo mais representativo, eficaz e eficiente, de modo que possa responder adequadamente a desafios globais. China e Rússia reiteram a importância que atribuem ao status e papel de Brasil, Índia e África do Sul em assuntos internacionais e apoiam sua aspiração de desempenhar um papel maior nas Nações Unidas” (parágrafo 25). Somada à ênfase no reforço ao multilateralismo, a VI Cúpula dos BRICS deu clara sinalização de interesse no fortalecimento da articulação com a UNASUL, dando continuidade ao movimento feito na V Cúpula, realizada em Durban, quando também houve reunião com países africanos.

Não há dúvida que os BRICS incomodam as potências tradicionais. A população dos cinco países chega a quase metade da população e força de trabalho mundial; o território somado entre os membros do bloco ocupa um quarto da área do planeta; seus membros têm um papel central em suas respectivas regiões; o PIB do bloco tem peso percentual expressivo e crescente no PIB mundial; e o bloco começa a fazer movimentos concretos de disputa nas arenas econômica, financeira e estratégica. Um sinal evidente de que os BRICS estão incomodando foi o anúncio de novas sanções contra a Rússia feito pelo governo dos EUA no mesmo dia da reunião do bloco com a UNASUL.

A VI Cúpula escolheu como tema o “Crescimento Inclusivo: Soluções Sustentáveis”, e é precisamente no tema escolhido como principal que se encontram os maiores bloqueios e desafios a serem enfrentados pelo bloco. Se por um lado há que se louvar o destaque e frequência conferidos ao desenvolvimento sustentável na Declaração de Fortaleza, por outro não é possível encontrar nenhuma definição sobre o significado do termo ao longo do documento, o que dificulta a compreensão do sentido dado pelo bloco aos parágrafos dedicados à agenda das Nações Unidas sobre diversidade biológica, mudanças climáticas, energia, agenda pós-2015, Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, educação, direitos reprodutivos e agricultura familiar. O Novo Banco de Desenvolvimento também foi criado para financiar projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável, mas nas resoluções da VI Cúpula sobre o banco não existe qualquer definição ou qualificação do significado do termo.

Apesar do destaque dado à narrativa do desenvolvimento sustentável, os bloqueios relacionados à inclusão social com sustentabilidade são o problema central e estratégico para o futuro do bloco pois expõem a natureza do modelo de desenvolvimento dos países membros, baseado em fortes desigualdades sociais e na exploração intensiva de recursos naturais. Todos os membros dos BRICS possuem taxas elevadíssimas e crescentes de concentração da renda, exceto o Brasil cuja valorização do salário mínimo e programas de inclusão social realizados na última década resultaram em redução das desigualdades, embora o país continue sendo um dos mais desiguais na América Latina, que por sua vez é a região mais desigual do mundo.

Diálogos sobre Desenvolvimento: os BRICS na perspectiva dos Povos – Os países do bloco e seus entornos regionais encontram-se em acelerado processo de reprimarização de suas exportações em resposta a demanda da China por recursos naturais, que importa dos países do bloco e de seus vizinhos minérios, combustíveis fósseis, soja e outros produtos agrícolas produzidos em amplas extensões de monocultivos intensivos no uso de pesticidas e agrotóxicos e de baixo emprego de força de trabalho, ao mesmo tempo em que a importação de manufaturas chinesas produzidas em condições de trabalho aviltantes empurra nossas economias para a desindustrialização e pressiona pelo rebaixamento de direitos dos trabalhadores. Produtos primários e manufaturas baseadas em recursos naturais representam mais de 85% das exportações da América Latina para a China (*). A contrapartida da intensificação de um modelo baseado na extração de recursos naturais são os frequentes conflitos de terra e violações de direitos territoriais por parte de empresas do agronegócio e da extração mineral contra camponeses, indígenas, pescadores e quilombolas. No caso do Brasil, a especialização primário-exportadora se viabiliza contando com a elevada concentração da propriedade da terra e com a fragilização e flexibilização da legislação de defesa de direitos duramente conquistados. No caso da África do Sul, a economia centrada na extração mineral é acompanhada de elevadas taxas de emissões de gases do efeito estufa e graves violações de direitos humanos de trabalhadores, cujo símbolo mais gritante é o conhecido massacre de Marikana.

Em paralelo a VI Cúpula dos BRICS, foi realizada a IIIa Cúpula Sindical dos BRICS cuja ênfase foi a defesa dos direitos dos trabalhadores do bloco contra a pressão por rebaixamento e precarização, e a tentativa de harmonização destes direitos pelos mais altos padrões. Foram realizados também os “Diálogos sobre Desenvolvimento – Os BRICS na Perspectiva dos Povos”, onde organizações e movimentos sociais dos países do bloco e de países que serão atingidos pelos projetos do Novo Banco de Desenvolvimento debateram e articularam suas lutas por direitos frente ao avanço dos investimentos e empresas extrativas sobre seus territórios. Os temores de que o Novo Banco reproduza o padrão de injustiças socioambientais dos investimentos de bancos nacionais de desenvolvimento de alguns de seus membros, como é o caso do BNDES, se somaram a decisão de que os povos dos países membros passarão a articular de forma mais intensa suas lutas por direitos. Frente ao avanço da mineração, da usurpação de terras, da precarização das condições de trabalho, da exploração de combustíveis fósseis e expulsão de camponeses e populações tradicionais de suas terras, é preciso articular lutas locais, nacionais e entre os países do bloco.

Diante da indefinição por parte dos governos sobre o que se entende por desenvolvimento sustentável, os povos dos BRICS deverão demandar que o bloco priorize um novo caminho de desenvolvimento com ênfase na distribuição da renda e riqueza, valorização do trabalho e dos salários, fortalecimento dos direitos das maiorias, que defina limites à voracidade das empresas dos países do bloco que avançam sobre os territórios e usurpam direitos, que estabeleça formas de regulação social e ambiental para os financiamentos do Novo Banco. Os projetos de infraestrutura a serem financiados pelo Novo Banco, ao invés de repetirem os desastres socioambientais cometidos pelos bancos nacionais de desenvolvimento, devem dar prioridade a infraestrutura de moradia, saneamento, saúde, educação, apoio a sistemas de produção de alimentos camponeses e familiares, entre tantas outras necessidades urgentes para a conquista de direitos para as maiorias nos cinco países.

Durante a VI Cúpula dos BRICS os trabalhadores, organizações e movimentos sociais demonstraram de forma contundente que não apenas o Fórum Empresarial e o Fórum Acadêmico devem ser considerados. Os povos dos países do bloco, suas lutas e demandas, precisam ser ouvidos. Embora haja resistências de outros membros do bloco, espera-se que o Brasil acolha a demanda pela criação do Conselho Nacional sobre Política Externa, pois este será o espaço institucional adequado de consulta e diálogo sobre os BRICS e demais temas da agenda de política externa no país.

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