Para uma Estética das Mulheres Erradas

Na sociedade falocêntrica, homens são as réguas. Ainda com todo o “desejável” nos veríamos inadequadas. Subvertamos esta roda retrógrada

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Na sociedade falocêntrica, os homens são as réguas. Mesmo com todo o “desejável”, ainda nos sentiríamos inadequadas. Subvertamos esta roda retrógrada

Por Marília Moschovich | Imagem Egon Schiele, Mulher com meias verdes, 1914

Eu tenho os pés grandes. Sou bem mais alta do que a média das mulheres e do que boa parte dos homens em nosso país. Não sou gorda, mas estou bem mais longe de ser magra. Usei óculos durante toda minha vida adulta, até bem pouco tempo atrás. Tenho os quadris (bem) largos. As coxas gorduchas. Um pouco de papo. Pelos em tom escuro. Estrias. Vasinhos nas pernas. Cicatrizes.

Sempre tive – e ainda tenho – dificuldades em encontrar sapatos que me sirvam. Coloridos, diferentinhos, com pequenos charmes? Ainda menos. Roupas também, embora sapatos sejam mais fáceis. Sutiãs perfeitos? Nem sonhando. Sempre destoei, em termos de corpo, tamanho. Sempre me senti um peixe fora d’água (ou uma baleia – e nada contra as baleias, aliás, que lideram minha lista de animais favoritos junto aos elefantes, claro; questão de empatia).

Ao mesmo tempo, sempre tive outras características que me faziam nem-tão-fora-d’água-assim: não sou portadora de nenhuma deficiência física, sempre fui boa em esportes, danças e coisas que exigem coordenação motora corporal, sou branca, meu nariz está dentro de um padrão considerado bonito, não tive nem tenho orelhas de abano, tenho corpo acinturado, meus cabelos ficam entre lisos e cacheados e estão dentro do que se considera “bonito” por aí, nunca usei nem precisei de aparelho nos dentes.

Nenhuma dessas características jamais me fez sentir bem quando uma roupa não servia. Tampouco eliminou minha frustração ao comprar sapatos (se tem uma coisa que eu detesto ter que comprar, até hoje, são os malditos sapatos). Sempre achei que minha vida seria mais fácil se eu tivesse os pés menores do que 40/41 e usasse calças de tamanhos menores do que 44/46. Bobinha.

Basta conversar com qualquer mulher de qualquer tamanho e ver que todas nós compartilhamos dessa exata mesma sensação. As mais altas que eu, as mais baixas que eu, as mais gordinhas, as mais magrinhas, as de pés maiores e as de pés menores. Todinhas. Inclusive – anotem aí – as modelos e atrizes consideradas “perfeitas” em nosso padrão de beleza. Pois é.

Não é novidade que a indústria da moda produz vestuário e acessórios para corpos que não existem. As numerações são em geral ridículas (que dizer de certos tamanhos G por aí? apenas: risos), a quantidade de peças produzidas e revendidas às consumidoras finais – em especial nos tamanhos “maiores” e “menores” dessa escala tosca – é sempre insuficiente para a demanda, e nem vou entrar aqui na discussão sobre a publicidade utilizada por essas corporações, nem sobre o uso de trabalho escravo ou imagens alteradas digitalmente. Todo o ponto da coisa é: por que carregamos a culpa de não servirmos nas peças criadas e revendidas nessa indústria?

A culpa de “não servir” é tanta que nos atiramos a regimes ridículos, muitas vezes arriscando nossas vidas por isso. Fazemos cirurgias plásticas de todos os tipos porque se torna insuportável psicologicamente convivermos com o sentimento de inadequação e com a autoestima destruída diariamente por ele. Essa culpa não é uma escolha voluntária, uma pedra que decidimos carregar. É uma construção de séculos na história ocidental que tem uma função social muito específica: controle.

Em O Segundo Sexo, livro que Simone de Beauvoir escreveu sem saber que era feminista (surpresa: ela só de autodeclarou feminista uma década mais tarde!), esse processo de construção do que consideramos “masculino” e “feminino” é recuperado de maneira bem acessível e interessante. Resumindo um tantão essa ópera, dá pra dizer que a filósofa mostra por meio de exemplos diversos como nossa cultura se construiu tendo o masculino como fiel da balança, como neutro. Tudo que é considerado feminino é considerado específico, particular, desviante. O masculino é considerado universal, geral, norma. Não é à toa que, numa sociedade que se ergue a partir dessa perspectiva, nós mulheres temos sempre a sensação de estarmos erradas. Mesmo quando estamos “dentro dos padrões”.

É por isso que ouvimos tanto as meninas magrinhas quanto as gordinhas contando que sofriam com apelidos na escola. Tanto as de cabelos lisos quanto as de cabelos cacheados. Tanto as altas quanto as baixas. Tanto as de corpo considerado lindo e consideradas bonitas quanto aquelas consideradas feias. Todas sempre erradas e, mais do que isso, tendo seus corpos e sua existência física sob constante patrulha. Esse é outro resultado dessa construção que Beauvoir explica (e depois autoras como Judith Butler em diálogo recente sobretudo com as teorias de Michel Foucault, organizam ainda melhor): todas as pessoas e instituições (como o Estado, por exemplo) acreditam verdadeiramente estarem no direito de controlarem, patrulharem, vigiarem e interferirem nos corpos das mulheres.

Esse processo começa na convivência infantil, e chega ao assédio que sofremos nas ruas todos os dias, passando pela briga constante sobre o aborto na esfera política, ou pelo abuso de cesáreas nos hospitais brasileiros.

Muitas vezes, cegas pela dor que a experiência individual nos causa, acabamos criando quase um clima de competição entre nós, mulheres: ser alta é pior do que ser baixa; ser gorda é pior do que ser magra; ter cabelos cacheados é pior do que ter cabelos lisos; etc. Nesse processo nos esquecemos de que mesmo que tivéssemos todas as características físicas consideradas desejáveis para mulheres, ainda nos sentiríamos totalmente inadequadas (como se sentem aquelas que temos o descaramento de chamarmos “modelos”). Nos tornamos paulatinamente parte desse ciclo, dessa roda sexista que gira a cada tentativa nossa de patrulhar o corpo de outra mulher, em vez de acolher sua experiência e sua dor com a inadequação que sentiu ao longo da vida.

Se desejamos destruir essa engrenagem, precisamos fazê-lo juntas. Compreendendo-nos, umas às outras, como mulheres. Sejamos altas, baixas, gordas, magras, dentro ou fora dos padrões de beleza, cisgênero ou trans*. Estamos todas no mesmo barco, erradas por definição nesse sistema que Freud e Lacan diriam falocêntrico.

Que partamos, então, para subverter essa roda inventada e sustentada há tantos séculos, que só sabe rodar em marcha ré.

Estou errada. Sou errada. E é nisso que reside a minha libertação.

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11 comentários para "Para uma Estética das Mulheres Erradas"

  1. Elisangela disse:

    Muito bem analisado, temos que estar atendo as mudalças.

  2. dudedias disse:

    Manu, acredito que a ditadura da beleza para os homens é uma coisa muito recente ainda. Não se falava dessas coisas que você citou 10 anos atrás. Coisa que a “indústria da beleza” demorou pra perceber que tinha um nicho que podia explorar – e tem dado certo pra eles. Se vai chegar o dia em que os homens sejam tão cobrados quanto as mulheres, espero que não, mas acredito que o caminho é tentar escapar dessa lógica por quem mais sofre com isso hoje, que são as mulheres e trans. Não que eu já não rejeite esse tipo de imposição para mim, só acho que quando queremos ir contra a ditadura da beleza como um todo, é importante focar em quem mais é oprimido e afetado por isso, que obviamente não são os homens.

  3. CARLA ABREU disse:

    Sinceramente, não gostei nada. O que tem demais uma pessoa ter uma deficiência, não a faz melhor ou pior do que alguém. É só uma pessoa como qualquer outra que estar no mundo como todo mundo em um modo de ser e fazer único, como todo mundo, essas questões já que o texto se propõe libertar-se de padrões estéticos deveria começar essa desconstrução estereotipada das pessoas com deficiência.

  4. Manu disse:

    Eu não posso deixar de saber na pele que existem algumas questões que são estritamente questões de gênero – a questão do estupro no caso dos adultos, situações desagradáveis que as mulheres acreditam que tenham que viver e aceitar, ganhar menos em alguns trabalhos, etc. Algumas questões, entretanto, não me parecem mérito do sofrimento feminino. Antigamente poderiam ser, hoje não são. O texto não leva em conta que as questões citadas – sapatos que não servem, cabelos que não são bonitos, alturas indesejadas, balança desajustada, padrão de beleza obrigatório desde o nascimento – não são questões que envolvem somente o universo feminino. Eu não sou homem, mas convivo com muitos e observo bastante ao meu redor o tempo todo, e posso dizer que eles também sofrem com este padrão imposto, as academias também estão lotadas de homens, os homens também fazem cirurgia plástica, dieta, implante de cabelo, silicone e também entram na paranoia de ser perfeito, de atender aos padrões mais desejados. Hoje em dia não há quem escape da ditadura da perfeição, seja com tamanho de peito, seja com tamanho de pinto. Acredito eu que a diferença está no fato de que nós mulheres – com o feminismo e todas as lutas que vêm sendo encampadas há um longo tempo – temos nos preocupado mais e lutamos mais explicitamente contra esses padrões, o que no caso dos homens infelizmente nós ainda não vemos acontecer. Basta pensar: se você fosse homem sofreria com isso? Em alguns casos é óbvio que a resposta é negativa, em outros eu tenho a certeza absoluta que não. Neste caso acho que não dá para ficar pegando temas que hoje dizem respeito a pessoas em geral e colocando como se fosse uma questão de gênero – este tipo de postura alimenta um sentimento de que só nós mulheres sofremos com isso, e que a ‘culpa’ dos nossos problemas é a opressão contra as mulheres e não a estrutura da nossa sociedade como um todo.

  5. glauco eggers disse:

    Cada vez mais homens fazem os mesmos questionamentos e se depilam, não bebem cerveja para não criar barriga, embora se depilem acham que devem deixar a barba por fazer, etc. Cada vez mais seres humanos são escravos de padrões cuja régua sabe se lá quem tem.

  6. Ludmila QUeiroz disse:

    Eu sempre fico um pouco incomodada quando leio esses textos sobre padrão de beleza quando olhamos apenas sob a otica da opressão machista, mas sem ver que que esse padrão é racista também. Acho dificil fazer essa analise sem olhar por ese lado.

  7. Katia Santus disse:

    Belíssimo texto. Viva a diferença!

  8. Raquel Silva disse:

    Amei!

  9. Bravo!! Muito bom!!! Mulheres, univAs!!

  10. Maria Sampaio disse:

    Transformações íntimas e profundas
    m união Marília…

  11. Áurea de Andrade disse:

    Marília,
    Parabéns pela análise. Mudaremos isso, certamente, com sua ajuda e de outra(o)s.
    Áurea de Andrade

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