Para romper a masmorra do individualismo

Há dimensão filosófica na construção de comunidades pós-familiares. Vidas estimulantes só são possíveis se nos descobrimos no olhar do outro

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Há uma dimensão filosófico-psicológica na construção de comunidades pós-familiares. Vidas estimulantes só são possíveis se nos descobrimos no olhar do outro

Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Ilustração de Kevin McDowell

O mundo está em constante transformação. O novo força o seu nascimento. O velho resiste e tenta de todas as formas voltar ao que não será mais. Nesse cabo de guerra, alguns passos são dados para trás. Os defensores da tradição, família, propriedade e autoritarismo inventam marchas. Mas, apesar deles, a cada dia que descubro uma iniciativa de outro viver volto a acreditar que estamos no caminho da realização da nova mulher e do novo homem.

Aliás, esta foi justamente a missão definida pelos 40 moradores da Comunidade Osho Rachana (www.oshorachana.com.br), onde moro desde 2008, durante todo um final de semana de conversa sobre o que somos e o que queremos enquanto um coletivo de pessoas que decidiram viver juntas. “Ser uma comunidade rebelde que busca a realização da nova mulher e do novo homem, inspirados na visão do Osho”. Utopia? Pode ser, mas penso que quem abriu mão do seu horizonte utópico, se adaptou à fatalidade individualista do capitalismo.

Um dos meus escritores favoritos, o uruguaio Eduardo Galeano, fala sobre isso no excelente livro “De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso”. Segundo ele, “a ditadura da sociedade de consumo exerce um totalitarismo simétrico ao de sua irmã gêmea, a ditadura da organização desigual do mundo. A maquinaria da igualação compulsiva atua contra a mais bela energia do gênero humano, que se reconhece em suas diferenças e através delas se vincula.”

Ainda, segundo Galeano, “o melhor que o mundo tem está nos muitos mundos que o mundo contém, as diferentes músicas da vida, suas dores e cores: as mil e uma maneiras de viver e de falar, crer e criar, comer, trabalhar, dançar, brincar, amar, sofrer e festejar, que temos descoberto ao longo de milhares e milhares de anos. A igualação, que nos uniformiza e nos apalerma, não pode ser medida. Não há computador capaz de registrar os crimes cotidianos que a indústria da cultura de massas comete contra o arco-íris humano e o humano direito à identidade. Quem não tem, não é: quem não tem carro, não usa sapato de marca ou perfume importado, está fingindo existir. Economia de importação, cultura de impostação: no reino da tolice, estamos todos obrigados a embarcar no cruzeiro do consumo, que sulca as agitadas águas do mercado.”

A vida em comunidade, seja o modelo que for, é um respiro nessas águas agitadas. Recentemente, vi uma notícia que estão chegando ao Brasil as cohousings, que surgiram na Dinamarca nos anos 70 e hoje são comuns principalmente na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. São condomínios com casas privativas, mas com espaços comunitários. Ainda se mantêm o modelo nuclear familiar, mas já avança para compartilhar a biblioteca, a horta, a oficina, a lavandaria, a brinquedoteca, o refeitório, a sala de TV e, em alguns casos, até os carros.

Na comunidade em que moro, além dos espaços em comum, as casas são divididas por amigos e não famílias. Os casais moram em casas separadas e se encontram quando querem ficar juntos realmente. Além do material, dividimos nossas emoções. Temos dois encontros semanais para limparmos e aprofundarmos as relações. Fazemos terapia e meditação coletivamente na nossa busca de autoconhecimento.

Mas o conceito de comunidade ainda hoje é controverso e suscita fantasias, como por exemplo a falta de privacidade e “liberdade”, palavra tão cara para o mercado. Nas periferias, a noção de cooperação e solidariedade é muito comum. Cresci numa vila de chão de terra e casas de madeira, onde vizinhos se ajudavam e se preocupavam uns com os outros. As crianças brincavam na rua e eram cuidadas e alimentadas pelas mães de todos. Quando preciso, mutirões aconteciam e ainda acontecem para construir o quarto pro novo filho ou neto. Ou seja, a visão de comunidade é bem mais ampla e tem uma significação transformadora.

No livro “O espírito comum”, Raquel Paiva apresenta a concepção de comunidade como um instrumento cultural. No prefácio, o professor Muniz Sodré explica que para a autora “comunidade não é um simples conceito sociológico, descritivo de uma forma de estruturação social classicamente oposta a sociedade, mas significação (idéia, imagem) mobilizadora de mudança social. Isso implica dizer que sua abordagem culturalista da questão comunitária tem foros políticos, não na concepção partidarista do termo, e sim no sentido de criação política com vistas à instituição global da sociedade.”

Raquel também aprofunda a perspectiva psicológica que comporta relações sociais que vão desde a amizade à intimidade pessoal, à comunicação ou comunhão de idéias. “Para o indivíduo, a necessidade de pertencimento à comunidade significa também o seu enraizamento no quotidiano do outro, bem como o reconhecimento de sua própria existência. Ou seja, compartilhar o espaço, existir com o outro funda a essência do ser, sendo possível perceber-se na medida em que se descobre pelo olhar do outro.”

No capítulo “Inclinar-se para o outro”, dos que mais gosto, a professora recorda que está contida na proposta de clinámen, do pré-socrático Epicuro, a idéia de encontro, atualmente resgatada com frequência. “Segundo Epicuro, dois átomos estão em queda livre no espaço, e nesse percurso se encontram, chocando-se. O preciso instante do encontro, denominado clinámen por Epicuro, é por demais importante porque define a nova trajetória dos átomos, que passam a ter seus rumos alterados.”

O francês Jean-Luc Nancy, a propósito dessa imagem, argumenta que para fazer o mundo não bastam simplesmente os átomos. É necessário um clinámen. É necessário uma inclinação, uma pendência de um na direção do outro. A comunidade é o clinámen do indivíduo. “Isto porque ela é capaz de colocar os indivíduos, os sujeitos, que estariam encerrados em si mesmos, em relação. A comunidade representa a possibilidade, nesta compreensão, de resgate do que há de mais verdadeiro e natural no sujeito”, explica Raquel.

Che Guevara acreditava que a tarefa suprema e última da revolução era criar um homem/mulher novo, um homem/mulher comunista, negação dialética do indivíduo da sociedade capitalista, transformado em homem-mercadoria alienado, ou capaz de se tornar, um homem carniceiro. “O homem/mulher comunista deve ser, necessariamente, mais rico interiormente e mais responsável, ligado aos outros por um vínculo de solidariedade real, de fraternidade universal concreta, que se reconhece na sua obra e que, uma vez quebradas as correntes da alienação, atingirá a consciência plena do seu ser social, a sua total realização como criatura humana.”

Uma nova humanidade está em gestação. Apesar de muitos, amanhã vai ser outro dia.

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4 comentários para "Para romper a masmorra do individualismo"

  1. A busca do ser é a sua liberdade, mas não podemos achar que o ser é o que buscamos, mas sim o que queremos ser. (transformação)

  2. A liberdade é relativamente proporcional ao espaço, ao tempo e a própria idéia de liberdade, istó é, mesmo que você tenha assas pra voar, sua liberdade de ir vai até o seu querer, e disso ninguem pode negar.

  3. Muito interessante, articulado e coerente, mas não concordo com a autora em citar Che Guevara, que pouco aplicou em vida o que defendia em ideias. Não creio que qualquer totalitarismo, seja de direita ou esquerda, trará as respostas às aspirações e necessidades da vida em comum. Como bem pontuou George Orwell em sua fábula anti-totalitária “A revolução dos bichos” (“Animal farm” no original), quando os porcos estavam liderando os outros animais em busca da utopia, mudaram na calada da noite uma das máximas, que de “todos os animais são iguais”, passou a ter o acréscimo de “, mas alguns são mais iguais que os outros”… Mesmo quase centenária, continua atualíssima!

  4. Igor SH de Carvalho disse:

    : )

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