Para impedir uma nova crise alimentar

Mudanças climáticas e especulação financeira ameaçam causar nova onda mundial de fome. É possível evitá-la, com conjunto de medidas corajosas

 

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Por Jim Harkness do IATP1 | Tradução: Antonio Martins

Quando os preços globais dos alimentos atingiram um pico, entre 2007 e 2008, 100 milhões de pessoas entraram no contingente dos famintos, que ultrapassou pela primeira vez na História a marca de 1 bilhão de seres humanos. Agora, apenas dois anos depois, vivemos outra alta, e é provável que mais fome esteja à espreita.

A FAO, agência da ONU para Alimentos e Agricultura, acaba de publicar seu índice de preços de alimentos, relativo a janeiro de 2011. No caso de alguns produtos (veja gráfico abaixo), ele chegou ao patamar mais alto (tanto em termos nominais quanto deflacionados) desde que a agência passou a acompanhar a variação das cotações, em 1990. Levantes populares relacionados a alimentos já começaram a ocorrer na Argélia. Enquanto a História se repete, e desenha-se a segunda grande crise de fome em dois anos, é decisivo aprendermos a lição da primeira onda, e enfrentarmos suas causas principais.

A segurança alimentar depende de tempo e mercados estáveis e previsíveis e de acesso a recursos. Tudo isso foi abalado perigosamente nas duas últimas décadas. Desde 1970, o aquecimento global causado pelo ser humano provocou o aumento dos eventos climáticos extremos em todo o mundo. Agricultores que costumavam enfrentar duas perdas de colheitas a cada década agora sofrem inundações, secas ou grandes pragas a cada dois ou três anos. Em 2010 e no início deste ano, alguns dos grandes produtores mundiais de alimentos – Argentina, Austrália, China, Paquistão e Rússia –  viveram, todos, eventos climáticos que afetaram fortemente as colheitas.

A segunda fonte de instabilidade é um mercado cada vez mais caótico. Em nome do “livre” comércio, o governo dos Estados Unidos e o Banco Mundial passaram as últimas três décadas forçando a abertura dos mercados dos países pobres a importações baratas, que desorganizaram a produção. Em cruel ironia, os países pobres também foram pressionados a cortar o apoio a seus próprios agricultores e até a vender seus estoques de emergência, sob a lógica de que seria mais eficaz simplesmente adquirir comida no mercado internacional.

Em 2006, mais de dois terços das nações mais pobres dependiam de importações de alimentos. Então, veio a onda de desregulação financeira da década passada, que atraiu os especuladores para os mercados de commodities e criou fundos de índices que atrelaram, como nunca antes, os mercados de alimentos aos de petróleo e metais. Mas a “agregação”, “alavancagem” e demais os “instrumentos inovadores” que deveriam reduzir os riscos nestes mercados provocaram o efeito oposto. A consequência foi um mercado global de alimentos altamente volátil, em que fatores não relacionados com a produção e consumo reais de alimentos frequentemente determinam os preços.

Este duplo golpe global, de instabilidade climática e financeira, não atingiu a todos. A volatilidade é útil aos que atuam com muita força nos mercados. Muitas empresas de agrobusiness estão registrando lucros recordes agora – depois de já terem alcançado idêntico resultado durante a última crise. Houve um pico de concentração de propriedade. Vastas extensões de terras aráveis, nos países do Sul, têm sido compradas por investidores estrangeiros e convertidas em plantações não-alimentares – inclusive matérias-primas industriais e biocombustíveis.

Vale notar, também, que alguns países africanos não serão tão atingidos desta vez. Eles optaram por estimular a produção local, ao invés de confiar nos mercados globais. A maior parte dos agricultores pobres, contudo, luta contra situações hostis. Não é de admirar que a fome tenha se convertido numa nova norma.

Se de fato consideramos a desnutrição global algo inaceitável – e não uma oportunidade de negócios – é preciso fazer grandes mudanças. Quase todos no Banco Mundial, na ONU ou no G-20 reconhecem a necessidade de apoiar os pequenos agricultores, especialmente mulheres, nos países que enfrentam fome. Em termos globais, 70% da comida é produzida em imóveis de menos de dois hectares, conduzidos em grande parte por mulheres.

A ajuda ao desenvolvimento, assim como as políticas governamentais dos países do Sul, deveriam estar focadas em apoiar as conquistas de produtividade destes agricultores, e sua capacidade de enfrentar as crises. Ao invés de deixá-los impotentes diante das forças globais, deveriam incorporar a sabedoria dos sistemas de produção tradicionais, que, ao combinarem o melhor da ciência ecológica com o conhecimento tradicional dos agricultores, encorajam práticas que reduzem o uso de insumos caros, ampliam a produção e a renda dos trabalhadores. E a produção para atender as necessidades locais deve ter prioridade em relação às culturas de produtos exportáveis.

Há muito mais a fazer. Os países e regiões que enfrentam fome precisam de maior margem de manobra para proteger a produção local de alimentos, prevenir o dumping e estabilizar o abstgacimento. Parte desta margem para definir políticas é hoje minada pelas regras da Organização Mundial de Comércio.

Os estoques de alimentos precisam ser vistos de novo como ferramentas essenciais, tanto para enfrentar emergências quanto para estabilizar os preços e o abastecimento, para os agricultores e os consumidores. A concentração fundiária precisa ser interrompida. Tornou-se ainda mais importante apoiar a reforma agrária, que redistribuiu terra arável para os pequenos produtores que desejam produzir alimentos.

Os governos precisam implementar regras rigorosas para reduzir as operações financeiras  especulativas com alimentos. Nos Estados Unidos, a reforma financeira conhecida como Dodd-Frank foi um bom começo, mas os lobistas de Wall Street estão agindo agressivamente para enfraquecê-la, em sua tramitação pelo Congresso.

A desestabilização da oferta de alimentos ocorrida na última década pode ser revertida. Mas isso só ocorrerá se aprendermos com o passado e apoiarmos medidas inovadoras para ampliar a estabilidade e a segurança dos agricultores, mercados e sistemas alimentares.


1Jim Harkness, professor de Sociologia do Desenvolvimento, é presidente do Instituto para Política Agrícola e de Comércio, um centro de estudos sediado nos EUA, e voltado para o estudo de alternativas às políticas neoliberais.

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Um comentario para "Para impedir uma nova crise alimentar"

  1. Julio Spínola disse:

    DISTRIBUIÇÃO DE TERRAS AOS POBRES RESOLVE?
    O MST JÁ RECEBEU DO GOVERNOMAIS DE TRÊS ESTADOS DE SP, EM TERRAS.. No entanto,de acordo com o próprio Min. da Agricultura, a safra recorde de 156 MI de ton de grãos foi plantada em 43 milhões de Hectares ouem área equivalente à metade das terras doadas à reforma agrária somente no gov Lula.
    Se a simples doação de terras, tratores e adubos bastasse, somente o MST teria produzido mais 150 MI de ton de grãos com a metade da produtividade do agronegócio.
    Além disso, há de se levar em conta que 80% das plantações do agronegócio não são financiadas com recursos públicos e sim com fundos das bolsas de mercadorias e futuros.
    Por isto o corte de financiamento público nas fazendas eco -irresponsáveis no Meio Norte foi inócua.
    Eles não dependem de recursos de bancos públicos. Sua produção é financiada com a compra antecipada.
    Os movimentos sociaisque promoveram a reforma agrária , estes fizeram dos financiamentos públicos razão de seu sustento ficando assim, reféns da improdutividade compulsória já que a emancipação econômica de seus acampamentos levaria à supressão dos benefícios cujas comissões sobre custeios altamente subsidiados mantém a sustentação financeira da elite dirigente de seus movimentos.
    Assim, talvez, a única forma de conseguirmos a emancipação econômica destes agricultores seja atrelar-se o custeio de sua classe dirigente à produtividade de seus assentamentos.
    Enquanto a pobreza sistêmica, não o seu sucesso, financiar a reforma agrária no Brasil , teremos os eternos movimentos assistencialistas de bolsas-famílias e cestas básicas a se eternizarem no meio agrário do nosso país.

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