Outro Israel é possível

Juventude desafia políticas de desigualdade, acampa em Telavive e promove manifestação gigante. “Outras Palavas” lança coluna sobre judaísmo progressista

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Despejada de sua casa, em meados de julho, pelo aumento do aluguel, inflacionado pela perspectiva de uma nova lei imobiliária, a jovem israelense Daphne Liff decidiu que não valia a pena permanecer calada. Armou uma barraca no Bulevar Rotschild (uma das avenidas mais famosas e elegantes do centro de Telavive) e um barraco nas redes sociais. Em poucas horas, centenas de jovens juntaram-se a ela. Três semanas depois, o movimento é um dos fatos promissores de um ano já cheio de surpresas, esperanças e riscos. O Bulevar Rotschild transformou-se, curiosamente, numa versão israelense da Praça Tahrir. Está tomado por jovens que acampam, ultrapassam a vida medíocre que o sistema lhes oferece, planejam ações. Neste sábado (6/8), ao menos 250 mil pessoas participaram de uma marcha gigante pelas ruas da capital. Exigiram construção de moradias alugadas a preços acessíveis, aumento do salário mínimo, educação gratuita. Em Jerusalém, houve protestos diante da residência do primeiro-ministro Benyamin Netanyahu.

A grande novidade revela algo que pode parecer surpreendente. Israel é muito mais que a opressão sistemática contra a Palestina, praticada há décadas por seus overnos. Em sua origem, o país foi marcado com experiências sociais inovadoras e avançadas, como os kibutzespécies de comunidades agrícolas coletivistas (a ponto de instituírem o cuidado comum das crianças e de inguém possuir conta bancária própria), de democracia participativa avançada e intensa vida cultural.

Karl Marx argumentou certa vez que as nações opressoras estão condenadas a viver sem liberdade. Aos poucos, a lógica da ocupação permanente sobre a Palestina dominou a própria sociedade de Israel. Os militares e os partidos religiosos de ultra-direita passaram a exercer poder sufocante. O Parlamento (Knesset) vota atualmente leis abertamente autoritárias, que estimulam a delação e chegam a proíbir o uso de palavras – Nakba, a expressão árabe que designa a expulsão de centenas de milhares de famílias palestinas, no processo de criação de Israel.

Nestas circunstâncias difíceis, é muito animador observar a retomada de lutas sociais por igualdade e democracia em Israel. Outras Palavras tem acompanhado de perto o surgimento, na Palestina ocupada, de um novo movimento de resistência pacífica. Impulsionado principalmente pela juventude, ele está promovendo acordos entre facções políticas antes em disputa fratricida. Poderá resultar, em setembro, numa enorme pressão pela independência, que deverá ser aprovada pela Assembleia Geral da ONU.

É com enorme satisfação que o site passa a acompanhar mais atentamente também os movimentos democráticos em Israel e entre a cultura judaica. Eles serão relatados e analisados por um novo colaborador: Sérgio Storch. Consultor em Planejamento, ativista de diversas causas ligadas à transformação social, Sérgio está convencido de que o Brasil pode – por sua cultura de diversidade e acolhimento – estimular a pacificação do Oriente Médio. Tem agido para articular brasileiros, judeus e árabes em favor desta ideia. Sua primeira contribuição está abaixo (A.M.).

Israel: contradições de um sistema político

Por Sérgio Storch

As impressões do Estado de Israel de décadas atrás trazem a imagem de um país igualitário e democrático. Com exceção da população árabe nos territórios ocupados por Israel há já 44 anos, que não gozam de direitos de cidadania, a democracia israelense é inclusiva. Para muitos leitores talvez seja novidade que a minoria árabe de 20% da população que está dentro das fronteiras de Israel não só vota e é votada, em vários partidos políticos e nos seus próprios, como também tem juízes na Justiça israelense, e até mesmo professores que pesquisam nas melhores universidades temas que desafiam frontalmente a própria natureza judaica do Estado de Israel (ver texto do professor As´ad Ghanem, da Universidade de Haifa, que é ativista por um estado único binacional, não mais judaico).

Entretanto, três décadas de prevalência de governos de direita mudaram drasticamente o cenário. As manifestações dos acampamentos urbanos nas últimas semanas, cujo significado é brilhantemente expressado por artigo de Amos Oz (considerado o maior escritor israelense), que Outras Palavras reproduz, mostram o cansaço da sociedade com um sistema político que vem não apenas aumentando a desigualdade social, como também perdendo a legitimidade. É eloqüente nesse sentido o que aconteceu há alguns dias na votação do projeto de lei para instituir o casamento civil (sim, em Israel, entre outros arcaísmos, só há casamento religioso). Embora a liberdade de opção para se casar seja apoiada pela enorme maioria da população, a proposta perdeu por 17 votos contra 40, tendo se ausentado os restantes dos 120 parlamentares.

Esse fato, que mostra o peso da minoria de religiosos ultraortodoxos no arco de forças da política israelense, é acompanhado por diversos outros acontecimentos que, no seu conjunto, revelam uma clara direitização do Estado: a lei que, ferindo a liberdade de expressão, proíbe o uso do termo Nakba, que em árabe significa catástrofe (Nakba é a celebração dos palestinos concomitante ao Dia da Independência israelense); a lei que proíbe, com sanções significativas, os boicotes contra produtos dos territórios ocupados; o projeto de lei que pretende criar uma Comissão de Investigação das fontes de recursos das ONGs pacifistas, caracterizando um macartismo israelense (vale dizer que esse projeto foi vetado até pelo primeiro ministro Netanyahu, de direita); as ações de intimidação de professores e pesquisadores, pela ONG de direita Im Tirtzu, que faz patrulhamento do que é ensinado e pressiona as fontes para que sequem os seus recursos para pesquisa (uma réplica do “Brasil Ame-o ou Deixe-o” da ditadura brasileira).

Ao mesmo tempo em que acontece essa direitização, os setores que apóiam o reconhecimento do Estado Palestino (majoritários na sociedade, embora não no Parlamento) mostram criatividade em ações de desobediência civil tais como o que foi noticiado nesta semana no New York Times: mulheres israelenses vão buscar mulheres palestinas na Cisjordânia para passearem juntas e tomarem banho de mar. Fato pitoresco, mas longe de ser único. Apesar do governo, há inúmeras ações de grupos israelenses que buscam apoiar os direitos e a autoestima dos palestinos. Mas isso é assunto para o próximo artigo.

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