Os EUA e o atoleiro afegão

William Polk, um veterano analista do mundo islâmico, explica no “The Nation” por que a retirada é a única alternativa honrosa

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Nas celebrações midiáticas da “vitória” dos EUA sobre os Talibã no vale Helmand, pouca atenção deu-se à natureza da guerrilha: é tática típica deste tipo de luta desaparecer quando há presença de força muito superior, deixando à vista apenas alguns combatentes, para que o invasor seja forçado a ferir civis e causar dano a propriedades e instalações civis. Foi exatamente o que aconteceu em Marja. Ante proporção de cerca de 20 soldados superequipados para cada combatente da resistência, além de helicópteros, tanques e aviões bombardeiros, os guerrilheiros desapareceram de vista. Fizeram o que tinham de fazer. “Vitória” não é boa palavra para o que se viu lá.

A mesma situação irá se repetir em Candahar, que, diferente da região agrícola e de poucos moradores dispersos conhecida como Marja, é cidade grande e densamente povoada. Planejam-se outras operações, o que leva a crer que a “vitória” dos EUA em Marja definiu um padrão que consagra a ação militar. Essa não é estratégia que preveja futura retirada – e não leva os soldados dos EUA para fora, mas, sim, cada vez mais para dentro do território afegão. Isso, aliás, parece ser o plano já em excecução.

O Washington Post noticiou pouco depois do fim da batalha de Marja, que “os Marines estão construindo enorme base militar nos arredores da cidade [sic], com duas pistas de pouso, hospital de combate dotado dos recursos mais modernos, estação de correios, enorme loja de conveniência e longas filas de trailers de moradia que avançam a perder de vista”.

Dado que Helmand é ponto focal da estratégia militar, é importante entender que papel desempenha nos negócios afegãos. O projeto de irrigação do vale, iniciado no governo Eisenhower como eco distante da agência Tennesse Valley Authority (TVA)[1] deveria criar ali uma próspera ilha de democracia e progresso. Como membro do Conselho de Planejamento e Políticas do governo Kennedy, visitei o projeto em 1962.

O que vi foi assustador: não havia qualquer estudo sobre a região a ser “desenvolvida”. Havia uma lâmina de solo impermeável logo abaixo da superfície, de modo que, irrigado, o solo ali se tornava imediatamente salino. O solo não fora nivelado; a irrigação, portanto, não funcionava. Ninguém se preocupara em ensinar os nômades a fixar-se e plantar; os grupos eram pequenos demais e não havia “comunidade de base” a partir da qual alguma engenharia social pudesse pensar em estimular o surgimento de alguma classe média; e, dado que não havia financiamento de qualquer tipo, nem para comprar sementes, os agricultores estavam pagando juros de 100% a agiotas e especuladores. Em resumo: depois das altíssimas expectativas que haviam sido criadas ali, o desapontamento e a desconfiança eram palpáveis.

Criamos um monstro? Parece que sim. Seja como for, não há como não ver que precisamente onde tentamos implantar o primeiro programa de ação cívica dos EUA naquela região é onde os Talibã tornaram-se mais fortes.

E o que aprendemos com aquela experiência? Que nada sabemos sobre os afegãos e seu país, nem sobre os objetivos que os afegãos tenham para o país deles… Mas, outra vez, já temos uma política definida para implantar no Afeganistão! Temos muito a aprender.

Quero aqui apenas alinhavar três questões que me parecem cruciais, e que decidirão se construiremos novas relações com os afegãos, ou se faremos deteriorar de vez qualquer relação que algum dia os EUA tenham tido, lá.

Os russos venceram praticamente todas as batalhas

e chegaram a ocupar cada metro quadrado do território,

mas perderam cerca de 15 mil soldados – além da guerra…

1. A primeira questão crucialmente importante para que se avaliem as políticas dos EUA para o Afeganistão, é o modo como os afegãos governam-se. Quatro, de cada cinco afegãos, vivem numa das mais de 20 mil vilas que há no país. Numa viagem de 4 mil quilômetros em jipe, a cavalo, e por avião, há quase meio século, e em inúmeras viagens posteriores, convenci-me de que o Afeganistão é aqueles milhares de pequenas vilas, cada uma delas relacionada culturalmente às vilas próximas, sim, mas, apesar disso, cada uma delas mais ou menos independente em termos políticos, e economicamente autárquica.

Essa falta de coesão nacional confundia os russos, durante a ocupação. Eles tiveram inúmeras vitórias militares, e, mediante programas de ação cívica, realmente passaram a controlar muitas vilas, mas jamais conseguiram encontrar ou criar qualquer tipo de organização que pacificasse todas as vilas ou que, em termos gerais, promovesse a paz. Em termos claros, nenhum soviético jamais conseguiu render quantidade significativa de vilas. Assim, ao longo da década em que lá estiveram, os russos venceram praticamente todas as batalhas e ocuparam, em determinado momento, praticamente cada palmo quadrado do território, mas perderam cerca de 15 mil soldados – além de terem perdido a guerra. Quando afinal desistiram e se retiraram, os afegãos voltaram ao seu modo tradicional de vida.

Aquele modo tradicional de vida está tecido num código social (chamado, nas áreas pashtuns, de Pashtunwali), que modela a forma específica de islã que lá se pratica há séculos e que, de fato, já existia antes de o Islã chegar lá. Por mais que haja, claro, diferenças notáveis entre as áreas pashtun, hazara, uzbeque e tadjique, tradições partilhadas determinam o modo como os afegãos governam-se e como reagem a estrangeiros.

Dentre essas formas culturais e políticas partilhadas estão os conselhos “de vila” (chamados de jirgas, nas áreas pashtuns; e de ulus ou shuras, nas áreas hazara). Os membros não são eleitos, mas indicados, para diferentes postos, por consenso. Esses conselhos “de vila” não são instituições, no sentido que damos às palavras; podem ser definidos como o que conhecemos como “ocasiões”. Reúnem-se cada vez que haja uma questão que não possa ser resolvida por um chefe local ou líder religioso respeitado.

Esses “conselhos de vila” são a versão afegã de democracia participativa. O que decidem é visto como corporificação do “modo de fazer as coisas” das comunidades.

Pela regra do Pashtunwali os visitantes têm de ser protegidos (o direito à melmastia). Não abrigar e proteger um hóspede é pecado tão grave, e demonstração tão série de fraqueza ou de fracasso, que o homem prefere morrer a falhar na proteção ao hóspede de sua casa. Por isso, claro, os afegãos não entregaram Osama bin Laden. A incapacidade de conciliar as exigências dos EUA e os costumes afegãos sempre esteve na raiz da guerra que os EUA lutam lá, já há oito anos.

Dois governos, Bush e Obama, já declararam que o objetivo dos EUA é impedir que a Al-Qaeda use o Afeganistão como base para atacar os EUA. Depois, esse objetivo foi afinado: bastaria capturar ou matar Bin Laden. Pode ser bom slogan eleitoral, mas ainda que os EUA fossem capazes de forçar os afegãos a entregar Bin Laden, só teríamos conseguido afastar-nos ainda mais, e talvez definitivamente, da comunidade pashtun dominante. E o perigo aumentaria, para os EUA; e nada estaria resolvido.

Muitos afegãos veem a “ação cívica” dos EUA exatamente

como o general Petraeus a descreveu: arma de controle e conquista.

Por isso, apoiam as ações da Talebã

Na verdade, a solução é outra, pode ser favorável aos EUA e está à vista há anos.

As regras do Pashtunwali não permitem que um hóspede protegido seja entregue ao inimigo; mas as mesmas regras permitem que o dono da casa, com honra, impeça o hóspede de praticar qualquer ação que ponha em risco a família e a casa que o abrigam. No passado, os Talibã já prenderam Bin Laden. E têm repetido inúmeras vezes que acederão à exigência dos EUA (de não fazer do Afeganistão uma base segura para a Al-Qaeda). Basta, para esse acordo, que EUA e OTAN retirem todos os seus soldados do Afeganistão. A dificuldade está em que os EUA, até agora, fixaram uma data para a retirada. Mas ainda não aceitaram formalmente o acordo com os afegãos.

2. A segunda questão crucial na avaliação da política dos EUA para o Afeganistão é o modo como os afegãos reagem aos programas de ação cívica que os EUA querem implantar lá.

O Afeganistão é país fechado, de poucos recursos, com povo que sofre a desgraça de guerra praticamente contínua há trinta anos. Há muitos doentes e feridos. A fome é ameaça constante e próxima. As estatísticas são aterrorizantes: mais de um, de cada três afegãos, vive com menos de 45 centavos de dólar por dia; praticamente um, de cada dois afegãos, vive abaixo da linha da pobreza; e mais de uma, de cada duas crianças em idade pré-escolar, sofre de subnutrição. São as que têm sorte. Uma de cada cinco crianças morre antes de chegar aos cinco anos. Claro que os afegãos precisam de ajuda. Então, os EUA concluem, eles receberão com gratidão os esforços norte-americanos para ajudá-los. Observadores independentes, contudo, já sabem que não, que os afegãos não são gratos aos EUA. Baseados em 400 entrevistas, pesquisadores da Tufts University constataram que “os afegãos têm percepção altamente negativa dos projetos de ajuda e dos atores daqueles projetos.” É indispensável saber por que.

A causa, parece-me, é que os Talibã entendem, dos discursos “ocidentais” sobre ações e projetos de ação cívica, que essa “ação cívica” é uma espécie de arma de guerra e força de ocupação. Os afegãos aprenderam sobre “ação cívica” com os russos, há muito tempo. E o general David Petraeus declarou, sem meias palavras, nos seus tempos de Iraque, que “Minha principal munição nessa guerra é o dinheiro”. Muitos afegãos comuns veem os programas de ação cívica dos EUA exatamente como Petraeus os descreveu – como arma de controle e conquista. E, se não colaboram com as ações dos Talibã contra esta “ajuda”, certamente as apoiam ou, no mínimo, as toleram.

Para entender esse processo, é útil lembrar o que houve no Vietnã. Também lá, os EUA descobriram que as pessoas ressentiam-se com o que viam e não poucas vezes aliaram-se aos inimigos dos EUA, equivalentes locais dos Talibã: os vietminh, ou, como foram chamados, os vietcong. Os vietminh mataram funcionários, professores e médicos, destruíram também obras que beneficiavam o país. Para os estrangeiros, a violência deles acabaria por torná-los odiados pela população. Não aconteceu assim. Como o governo de Cabul, o regime do Vietnã do Sul era tão corrupto e predatório que poucos o apoiavam, mesmo que os beneficiasse.

Quando os EUA herdaram a guerra do Vietnã, pensaram que o melhor seria manterem-se separados do regime corrupto; e usaram os próprios funcionários dos EUA para os serviços de prestação de ajuda humanitária nas vilas. Os serviços foram prestados, mas a forma de executá-los acabou por enfraquecer ainda mais a relação entre o governo do Vietnã do Sul e a população.

E que interesse tem isso, no caso do Afeganistão? Basta pensar no que disse o general Stanley McChrystal, quando suas tropas chegaram a Helmand: afirmou que levava para lá, “um governo encaixotado; basta tirar da embalagem e usar.” Esse governo é uma mistura de norte-americanos e afegãos selecionados pelos norte-americanos, de cuja constituição não participaram nem o atual governo em Cabul nem as autoridades locais em Helmand.

Como os afegãos reagirão ao governo de McChrystal? O presidente Karzai opôs-se de início, vendo no movimento uma tentativa de diminuir a autoridade de seu governo. Não se sabe ainda o que a população pensou. Mas os EUA sabem que quando tentaram semelhantes táticas de contraguerrilha no Vietnã, aquelas táticas – como se lê nos Pentagon Papers, que são documentos oficiais dos EUA – “falharam inapelavelmente”.

Se os EUA visam criar e deixar implantada uma sociedade razoavelmente segura no Afeganistão, a primeira providência é abandonarem essa política já fracassada; a segunda é marcarem data razoável para completa retirada. Só assim os afegãos poderão dissociar o que é de fato ajuda humanitária e o que é guerra de contraguerrilha.

O primeiro passo, indispensável e inadiável é a retirada.

Mais guerra só fará crescer os custos e os prejuízos

para os EUA e precipitará o fracasso

Isso porque, depois de um cronograma de retirada ser claramente anunciado, poderá começar uma transformação na psicologia política da relação entre EUA e os afegãos. Não haverá motivo (ou haverá progressivamente cada vez menos motivos), depois de a retirada das tropas ser anunciada, para os afegãos confundirem o que é guerra de contraguerrilha e o que é ajuda humanitária. Nesses termos, as jirgas locais poderão aceitar os projetos que beneficiem de fato cada região – porque os membros das jirgas, tradicionalmente, são sensíveis ao que interessa diretamente à prosperidade e à saúde, em suas regiões e nas dos seus vizinhos. Rapidamente entenderão que lhes interessa proteger o que consigam por contribuição dos estrangeiros, mais do que lhes interessa admitir e facilitar que os Talibã destruam tudo. (…) Sem a proteção dos conselhos, os Talibã perdem eficácia. Sem essa cooperação, como Mao Tse Tung ensinou há tantos anos, serão como peixes fora d’água. Nesse sentido, portanto, é urgentemente necessário que os EUA fixem uma data e estabeleçam o cronograma da retirada de seus soldados do Afeganistão.

3. O que nos leva à terceira questão: o governo central. (…) Para os EUA, a resposta parecia simples: todos os governos devem autolegitimar-se como os norte-americanos legitimam seus governos: em eleições razoavelmente limpas. Sim, mas… os afegãos não legitimam seus governos exatamente como os norte-americanos.

A maneira afegã de legitimar governos é um processo de alcançar consenso que implica aprovação pelo conselho supremo do Estado, a loya jirga. Ponto mais alto de uma pirâmide de assembléias de vila, tribais e provinciais, a loya jirga, segundo a constituição afegã é “a mais alta manifestação do desejo do povo do Afeganistão”.

Como os norte-americanos hoje, os russos também se opuseram aos movimentos que, em termos afegãos, construiriam um consenso nacional.

Em 2002, quase dois terços dos delegados de uma loya jirga assinaram petição para que o rei exilado Zahir Shah, fosse feito presidente de um governo de transição que daria tempo, aos afegãos, para planejar seu futuro. Mas os EUA decidiram que Hamid Karzai seria “nosso homem em Cabul”. Então, como escreveu ano passado o pesquisador e professor Thomas Johnson, ex-funcionário do serviço diplomático no Afeganistão: “a interferência massiva dos EUA nos bastidores, sob a forma de subornos, acordos secretos e chaves de braço, instalou no poder Hamid Karzai, o candidato de Washington. (…) Foi o equivalente afegão do Golpe de Diem em 1964 no Vietnã: dali em diante, nunca mais seria possível constituir qualquer governo secular estável.”

Um governo afegão de transição, aprovado pela loya jirga, teria permitido que operassem os modos tradicionais de construir consenso; mas, como noticiou Selig Harrison: Zalmay Khalilzad, então embaixador dos EUA no Afeganistão, “encenou uma reunião de 40 minutos com o rei, o qual, logo depois, retirou a candidatura.” Desde então, padecemos as consequências dessa reunião.

Será ainda possível reverter as consequências do que se tem feito no Afeganistão há tanto tempo? Se os EUA deixarem de se opor ao que decida uma loya jirga, o governo de Cabul reagirá favoravelmente? Provavelmente não, enquanto os EUA só se preocuparem com proteger seus próprios soldados e funcionários. Mas se os EUA fixarem um cronograma claro e viável de retirada, os membros do governo afegão terão interesse direto e considerável em defender uma causa que poderão apresentar como nacional – e poderiam convocar uma loya jirga. De fato, o presidente Karzai já fez isso[2]. (…)

Em meu livro Violent Politics, em que estudo duzentos anos de guerrilhas, expus muitos fatos que indicam que, sim, é possível, mas não provável, que os EUA derrotem a guerrilha. Vez ou outra acontece de os guerrilheiros nativos expulsarem os estrangeiros ocupantes. Como leu-se no Washington Post no outono passado, o governo Obama admite que “os Talibã não podem ser eliminados como movimento político ou militar, por maior número e força de grupos de combate que sejam mandados para enfrentá-los.”

A loya jirga é a esperança que resta para criar um governo nacional afegão razoavelmente equilibrado. Na loya jirga, por sua própria dinâmica, os grupos locais saberão dar destaque às questões locais, de modo a promovê-los e defendê-los. Essa ação terá peso significativo na luta para conter os Talibã, que serão forçados a compor-se. Hoje, os Talibã beneficiam-se da aura de defensores dos afegãos contra os EUA invasores e ocupantes. Se não mais houver nem invasão nem ocupação, essa aura desaparecerá.

Se os EUA forem sensíveis o suficiente para admitir que os afegãos são capazes de resolver seus problemas à maneira deles, em vez de insistir em impor-lhes fórmulas made in USA, poderão dar a partida para um movimento rumo à paz e à segurança sustentáveis.

Para tanto, o primeiro passo indispensável e inadiável é a retirada. Mais guerra só fará crescer os custos e os prejuízos para os EUA e precipitará o fracasso.

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William R. Polk (williampolk.com) é diretor da W.P. Carey Foundation.  É autor do recém lançado Understanding Iraq, e trabalha em novo livro sobre Afeganistão, Paquistão e Caxemira, “The Cockpit of Asia” (título provisório).

[1] Sobre essa agência, que foi um dos projetos do “New Deal”, cuja criação foi aprovada pelo Congresso em 18/5/1933, ver http://www.policyalmanac.org/economic/archive/tva_history.shtml.

[2] O texto da “Declaration of Pushtoon Qami Amn Jirga [Conselho Nacional de Paz dos Pashtuns], resultante da Jirga de 27/3/2010, pode ser lido em http://www.nowpublic.com/world/declaration-pushtoon-qami-amn-jirga-national-peace-council. Há matéria sobre a mesma Jirga em Al-Jazeera, 21/3/2010, em http://english.aljazeera.net/news/asia/2010/03/201032154710826235.html

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