Os dois discursos de Robocop

Na superfície, debate raso sobre temas contemporâneos. Num plano mais profundo, apoteose da violência, como caminho único para resolver conflitos

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Na superfície, debate raso sobre temas contemporâneos. Num plano mais profundo, apoteose pura e simples da violência, como única forma de resolução de conflitos

Por José Geraldo Couto, no blog IMS

É hora de falar do Robocop recauchutado de José Padilha, que em duas semanas de exibição já foi visto por dois milhões de brasileiros. Refilmagem de um grande sucesso, produção cara, com astros de primeiro time (Michael Keaton, Gary Oldman, Samuel Jackson) e diretor… brasileiro.

O que José Padilha está fazendo ali? É evidente que ele foi convidado para o projeto (eu quase dizia “o produto”) devido ao êxito internacional de seus dois Tropa de elite (2007 e 2010). Muita gente já notou que alguns dos temas envolvidos no novo Robocop têm tudo a ver com os dois longas que serviram de cartão de visita do diretor: os dilemas do combate ao crime, a corrupção policial, o poder das corporações, a promiscuidade da mídia com interesses políticos e econômicos.

Mas há duas observações a fazer. A primeira é de que o roteiro onde estão contidas essas questões não é de Padilha, mas de Joshua Zetumer, que por sua vez partiu do roteiro de Edward Neumeier e Michael Miner para o primeiro Robocop (Paul Verhoeven, 1987). Ou seja, o diretor brasileiro pegou o bonde do robô andando.

Dois filmes sobrepostos

A segunda observação é mais complexa e sujeita a mal-entendidos. Vou tentar ser claro. Vejo no novo Robocop como que uma sobreposição de dois filmes. No plano dos diálogos, do discurso verbal, há a discussão de assuntos como a imbricação entre a “guerra ao crime” e a “guerra ao terror”, a ética da ciência, a responsabilidade da mídia, os limites entre o papel do Estado e os direitos humanos individuais etc.

Mas a par desse blá-blá-blá, que aliás nunca vai muito fundo, há uma espécie de discurso puro da violência, sequências inteiras em que se apela não à razão e nem mesmo à emoção do espectador, mas a suas pulsões mais primárias. Cito três casos óbvios: o teste em que o Robocop (Joel Kinnaman) enfrenta robôs “puros” num grande galpão; a sequência em que o herói vai buscar o chefão do crime em sua toca; e o confronto final, que não convém antecipar aqui.

Nos três casos, a “linguagem” adotada é a dos videogames de ação violenta, em que o que importa é atingir o maior número de “alvos” e driblar os perigos. Até a progressão em “níveis” de dificuldade e ameaça é evidente.

Violência como solução

É nesse ponto que talvez se explique a escolha de José Padilha para uma produção que, forçando um pouco a barra, poderia ser dirigida por um robô. Se bem observados, os Tropas de elite – o primeiro, quase pavlovianamente, o segundo de modo um pouco mais refinado – já traziam essa sobreposição de enunciados: de um lado (ou em cima), uma discussão supostamente séria dos problemas da segurança pública; de outro lado (ou por baixo), uma apoteose da violência pura e simples como meio de resolução de tensões. (Para quem se interessar, eis aqui o que escrevi sobre Tropa 2 à época do seu lançamento).

Os defensores do filme dirão que ele critica a ideologia imperialista norte-americana, sobretudo ao ironizar o discurso do âncora encarnado por Samuel Jackson. Mas essa caricatura um tanto pesada gira no vazio quando o filme valida e corrobora a ideia central de “guerra ao crime”, discutindo apenas as filigranas de como esse combate deve ser tratado (por homens, por máquinas, por homens-máquinas?). A perspectiva maniqueísta básica, de que há seres intrinsecamente maus a ser exterminados, segue firme e forte.

Há em Robocop, isto é, na ideia original trazida à tela por Paul Verhoeven, um núcleo dramático poderoso e fecundo, que poderia ser desenvolvido em várias frentes.

Uma delas é a frankensteiniana relação criador-criatura, que no filme de Padilha é apenas aflorada nas crises e hesitações do doutor Dennett Norton (Gary Oldman), figura que não existia no primeiro filme e que poderia ser o grande personagem trágico aqui. Outra vertente interessante a ser mais explorada em profundidade seria a própria simbiose homem-máquina representada – e sofrida – pelo protagonista. Podemos imaginar o que essa situação renderia nas mãos de um David Cronenberg. Mas evidentemente não era essa a intenção dos produtores que injetaram US$ 150 milhões nesse produto, digo, projeto. Para o que eles queriam, José Padilha está mais do que bom.

Pernambuco, de novo

Com alarde infinitamente menor, ou antes sem alarde nenhum, entrou em cartaz em 7 de março, em algumas capitais brasileiras, uma pequena joia, Eles voltam, longa-metragem de estreia de Marcelo Lordello.

O filme, que venceu o Festival de Brasília de 2012, é definido por seu diretor como “uma fábula do nosso tempo”. De fato, há algo de Alice no país das maravilhas na história de Cris (a excelente Maria Luiza Tavares, também premiada em Brasília), menina de 12 anos abandonada com um irmão à beira de uma estrada pelos pais,  por motivos que só saberemos muito depois. Só que em vez das maravilhas surreais de Alice, ela se depara com os perigos e surpresas do “mundo real” existente fora da sua pequena redoma de pré-adolescente de classe média.

Com coragem e delicadeza, Lordello constrói esse percurso mantendo sempre o equilíbrio entre o que Cris vê do mundo e o que vemos de Cris, sem sacrificar o fundo pela figura e nem o contrário. Mais um belo fruto do pujante e multifacetado cinema pernambucano. Veja antes que saia de cartaz.

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Um comentario para "Os dois discursos de Robocop"

  1. Vinícius disse:

    “Apoteose da violência pura e simples como meio de resolução de tensões” – José Geraldo, isso serve como descrição de todo o gênero de ação. Existe um filme de ação que não seja assim? Quando vc critiva uma comédia romântica põe o drama amoroso como defeito?
    Não estou de jeito nenhum defendendo a qualidade do filme, que também me decepcionou. Na cena em que o Robocop invade a toca do bandido, também me lembrei da jogabilidade de um jogo de tiro, até na dinâmica, essa coisa de corredor e bandidos atirando por trás de caixotes…
    Só acho que o filme, em vez fascista, é sacana mesmo. Deixa a pergunta principal no ar. Lamenta até o osso os sacrifícios dos policiais, argumento do âncora vivido pelo Jackson, ao mesmo tempo que denuncia, do começo ao fim do filme, a ganância da corporação e o perigo de possuir policiais sem mente. Isso provavelmente foi intencional da parte do Padilha. A violência em si estava seca. Não achei que estava glamourizada – tinha o apelo estético normal do gênero. Vá comparar com 300, por exemplo. No Robocop do Padilha, a violência é mais uma questão de eficiência que de heroísmo.
    Já esse lance da “alma” do Robocop sobrepujar a programação, acima da física e da química… achei brega, e olha que acredito mesmo em alma. Mas o roteiro (ou o diretor?) estavam até que mandando bem com um lance muito cyberpunk, de comparar a mente com uma máquina programável. Tem vários jeito do cérebro vencer uma programação (é pra isso q existe psicoterapia, seja freudiana ou cognitiva), não precisava ter metido um milagre no meio e desconstruído o esforço todo que o filme tinha tido pra fragilizar a humanidade do Alex Murphy (com as cenas do Alex “nu” e da lobotomia).

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