Os curdos e xadrez geopolítico do Oriente Médio

Em meio a um intrincado jogo de potências globais (EUA e Rússia) e regionais (Turquia e Síria), eles buscam autonomia, enquanto combatem vigorosamente o Estado Islâmico, agora praticamente derrotado

.

Por Ercan Ayboga, em openDemocracy | Tradução: Heval

Após a derrota do chamado “Estado Islâmico” (EI) em solo na Síria, a geopolítica dos curdos sírios passou a ser discutida mais do que nunca. Mais precisamente, devemos falar das Forças Democráticas da Síria (SDF) e da estrutura política “Federação Democrática do Norte da Síria” (DFNS), da qual Rojava (Curdistão Sírio/Curdistão do Oeste) faz parte. O que interessa a este artigo é a crítica de alguns (muitos) círculos de esquerda de diversos países sobre a cooperação militar com os EUA. Contudo, isso é restringir a discussão apenas aos EUA, enquanto o conflito também envolve a Rússia e outras potências regionais como a Turquia e o Irã.

A geopolítica dos curdos sírios só pode ser entendida quando conectada com o Movimento de Libertação Curda (KFM), com orientação de esquerda democrática. Começando com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) no Curdistão do Norte (Bakur; parte turca) nos 1970, o movimento também se espalhou fortemente para Rojava e para o Curdistão do Leste (Rojhilat; parte iraniana) nos anos 1990. Quando, em 2003, o Partido da União Democrática (PYD) foi fundado, aceitou como base o conceito político de Confederalismo Democrático, fundado por Öcalan. Devido à intensa repressão por parte do regime Baath (na Síria), seu espaço de atuação permaneceu pequeno, mas a organização da população nunca deixou de existir.

Quando o levante contra o regime sírio se iniciou na primavera de 2011, o PYD estava interessado em beneficiar-se da fraqueza do regime e organizar de forma democrática e ampla a população em Rojava e nas grandes cidades sírias. Nos primeiros meses, o objetivo também era ampliar a capacidade de autodefesa, pois era difícil prever o desdobramento do conflito contra o regime Baath, assim como o conflito contra a oposição  reacionária armada (“islamista”/jihadista, racista). Nos meses seguintes, o movimento revolucionário foi organizado como TEV-DEM que, além do PYD, inclui dezenas de organizações sociais e pessoas dos crescentes conselhos populares em toda Rojava. O ENKS, bloco partidário conservador curdo em Rojava, ligado a Barzani, permaneceu fraco enquanto o TEV-DEM tornou-se o principal grupo político em na região. Na primavera de 2012, quando ficou claro que a guerra se intensificaria cada vez mais pela oposição reacionária, começaram os preparativos para a libertação de Rojava. O movimento precisava estar pronto para quando chegasse o momento certo.

Diante do momento crucial, o TEV-DEM viu-se frente a duas decisões fundamentais. Ou Rojava seria defendida por forças próprias ou teria que ser abandonada. A segunda opção significaria que o controle de Rojava passaria para outras forças como o ENKS e/ou à oposição síria. É preciso compreender que as condições para defender Rojava são muito mais desafiadoras do que em outras partes do Curdistão. O primeiro motivo é territorial, pois Rojava é majoritariamente plana e não é compacta territorialmente falando. O segundo é que muitas potências internacionais e regionais abasteceram todos os lados da guerra na Síria com muito armamento. Somente o TEV-DEM e alguns pequenos grupos democráticos não armados na Síria não receberam apoio do exterior. No entanto, o TEV-DEM afirmou que é seu dever defender Rojava, do contrário haveria um grande revés do Movimento de Libertação Curda (KFM) em todas as partes do Curdistão. A decisão foi defender a atual revolução e extrair lições das revoluções anteriores que ocorreram no mundo.

Os ataques a Rojava se tornaram sucessivamente mais fortes após o início da libertação bem sucedida de cidades da região, em julho de 2012. Primeiro, foram alguns grupos da FSA e Al-Nusra, que foram derrotados pelas próprias forças de defesa dos curdos, YPG (Unidades de Proteção Popular) e YPJ (Unidades de Proteção da Mulher). Então, o Estado Islâmico chegou à Síria, que também poderia ter sido derrotado logo no início de sua ocupação (verão de 2013 até maio de 2014), mas, após terem ocupado Mossul, ganharam enorme poder expulsando até mesmo os exércitos de Estado. Não podemos esquecer do regime Baath, que atacava seletivamente a região de tempos em tempos – o qual também era motivado pelo regime iraniano.

Atualmente a maior ameaça é o exército turco, que ataca Rojava desde outubro de 2015, quase que diariamente nas fronteiras e nas linhas de frente. Nenhum poder regional e internacional tem interesse que uma força independente e democrática na Síria se torne forte. Nem os Estados ocidentais, que simplesmente ignoraram o TEV-DEM, nem a Rússia que teve algumas reuniões com o TEV-DEM, mas sem planejar ações em comum. Mesmo a Turquia, a Síria e o Irã se encontraram com o  TEV-DEM (mais tarde, a Autoridade Democrática, DSA, fundada em janeiro de 2014 como um bloco democrático expandido), mas com o único objetivo de incorporá-lo ao seu próprio bloco.

Voltemos ao verão de 2014, quando o EI teve seu pico de poder. Quase todo o mundo estava chocado e o EI foi considerado a nova grande ameaça pela maioria das pessoas no Oriente Médio e no mundo. Neste momento foram as forças do KFM que resistiram contra o EI em Shingal, o principal assentamento dos yazidis curdos em Başur. No início de agosto de 2014 tanto o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) como as forças YPG/YPJ resgataram cerca de 80.000 yazidis e impediram que seu genocídio fosse maior. Não foi a “comunidade mundial” que fez isso, mas  os “curdos livres” que até então eram considerados “terroristas”, quando não ignorados. Desde então, a visão sobre os curdos em geral, particularmente em Rojava, e sobre o PKK, começou a mudar. Logo após essa resistência, formou-se uma coalizão global liderada pelos EUA contra o EI. Num primeiro momento esta coalizão estava focada apenas no Iraque.

Foi quando, em setembro de 2014, aconteceu o grande ataque do EI a Kobane. Os curdos resistiram com tudo o que tinham. Dezenas de milhares de pessoas em Bakur reuniram-se continuamente na fronteira com Kobane, a fim de mostrar solidariedade e protestar contra o apoio do Estado turco ao EI. Milhares de pessoas cruzaram a fronteira para lutar do lado curdo. Por causa da ameaça global e da resistência bem sucedida em Shingal, a imprensa internacional também estava presente na fronteira. Nunca antes na história os curdos estiveram tanto na agenda mundial, que reconhecia não só o sofrimento, mas também a resistência curda. A maioria do público mundial teve conhecimento e apoiou a resistência em Kobane!

Embora os curdos estivessem resistindo fortemente, foi muito difícil ter sucesso na resistência diante de milhares de soldados de elite do EI. Por causa do embargo da Turquia, as Unidades de Proteção Popular (YPG) e as Unidades de Proteção da Mulher (YPJ) da Cizîre, a maior região de Rojava, não puderam se juntar à resistência. Caso contrário, haveria um equilíbrio que dispensaria o apoio internacional que necessitaram. Este aspecto é muitas vezes ignorado nas discussões atuais.

Enquanto nos primeiros dias de outubro de 2014 os EUA diziam publicamente que não viam esperanças, embora já tivessem começado a bombardear o EI na Síria, poucos dias depois começaram a bombardear sistematicamente o EI na cidade de Kobane e seus arredores. A resistência em Kobane, uma grande revolta em Bakur/Turquia e o pedido público mundial por apoio a Kobane foram os principais motivos para isso. Não houve longas negociações entre os curdos sírios e os EUA para esse apoio aéreo, talvez alguns dias. Esta intervenção em Kobane começou sob condições políticas específicas e não ficou claro seu tempo de duração. Mais tarde, foram realizadas negociações mais sérias.

Motivações para os EUA e os curdos sírios

Os EUA podem ter visto na derrota do EI em Kobane uma oportunidade na estratégia contra o grupo na Síria e no Iraque. Na verdade, Kobane tornou-se o Stalingrado do EI. Para a revolução de Rojava, a defesa de Kobane era crucial, caso contrário poderia ser marginalizada na Síria. Dessa forma, entre o KFM e os EUA houve uma coincidência de interesses a curto prazo, onde as duas forças permanecem ideologicamente em posições contrárias. Bom lembrar que os EUA apoiaram ativamente a Turquia contra o KFM e, em 1999, sequestraram Öcalan, que está presente em todos os lugares em Rojava.

O bombardeio do EI levou os EUA a encontrar um parceiro forte na Síria. Por muito tempo os EUA apoiaram, em cooperação com a Turquia e os Estados do Golfo, a oposição armada contra o regime Baath. Mas essas forças armadas nunca conseguiram derrubar o regime e perderam força. Elas também sofreram uma transformação “islamista-reacionária” e tornaram-se menos comprometidas com os estados ocidentais (mas com a Turquia e os Estados do Golfo), o que os EUA viram com suspeita. Então, em cooperação com a YPG / YPJ, os EUA poderiam ter influência na Síria, onde querem ser uma parte atuante na reconstrução política do país.

No início da cooperação militar, os EUA planejavam subordinar militarmente Rojava ao governo de Başur. As notas das conversas realizadas em 14 de março de 2015 entre vários deputados do Partido Popular Democrático (HDP) e o líder do PKK preso, Abdullah Öcalan, afirmam que os EUA pressionaram o YPG / YPJ para aceitar fazer parte da estrutura de comando PDK-Peshmerga e que Öcalan se opôs a isso. O acordo não aconteceu, mas a cooperação continuou.

Sem dúvida existem outras motivações a longo prazo para que os EUA iniciem a cooperação militar com YPG/YPJ/SDF. Um deles é retornar à cena política do Oriente Médio como o principal poder a ser considerado após as ocupações no Iraque e no Afeganistão. As críticas aos EUA aumentaram significativamente entre a população no Oriente Médio após essas ocupações, tanto que se tornaram uma força indesejada em quase todos os principais estados muçulmanos.

Esse engajamento militar também ocorreu com o interesse de limitar a influência do Irã no Iraque, que cresceu principalmente nos anos anteriores a 2014. O novo primeiro-ministro do Iraque, Haider al-Abadi, designado em julho de 2014, é mais próximo aos EUA do que seu antecessor, Al-Maliki. O interesse estadunidense em limitar o Irã no Iraque, assim como na Síria, ganhou destaque após a eleição de Trump para presidente dos EUA. Irã voltou a ser um dos principais alvos de sua política externa, o que reforça a motivação dos EUA para continuarem a cooperação militar com a SDF depois de derrotar o EI na Síria.

Outra razão para essa atuação dos EUA na região é exercer uma pressão sobre o governo turco, que nos últimos anos tem se posicionado cada vez mais distante dos estados ocidentais. A Turquia tenta se beneficiar das contradições entre os poderes internacionais, particularmente entre EUA e Rússia, para aumentar sua influência no Oriente Médio. O apoio à Al Nusra e ao EI foi parte desta estratégia. Por outro lado, a Turquia contornou o embargo ao Irã promovido pelos EUA. Por anos, a OTAN vem suspeitando dessa política de seus aliados. A maior preocupação da Turquia em política internacional são os curdos.

Outra motivação, relacionada diretamente aos curdos como um todo, é o apoio ativo dos EUA aos grandes partidos PDK e YNK (PUK) em Başur desde 1991, o que conduziu a sua autonomia. Entre muitas expectativas havia a que os dois partidos se tornassem dominantes nas outras três partes do Curdistão e enfraqueceria o KFM. Mas eles falharam e ainda se corromperam e levaram Başur a uma grande crise econômica e política. Além disso, o PDK tem sido muito influenciado pelas políticas turcas, como por exemplo na venda de petróleo através dos oleodutos turcos.

Por outro lado, os princípios visionários de Öcalan são inspirações para uma nova abordagem democrática e inclusiva. O Confederalismo Democrático é o conceito democrático mais poderoso no Oriente Médio com chance de implementação por milhões de pessoas em Bakur e Rojava. Exitosas coalizões pela democracia  são formuladas com turcos, árabes, assírios, entre outros. Nem os Estados Ocidentais nem o bloco russo-chinês conseguem propor algo para a crise multidimensional no Oriente Médio – faltam-lhes ideias. A discussão é praticamente apenas sobre “derrotar terroristas, estabilidade e construção de muros contra refugiados”. Em relação aos Estados regionais, todos querem a restauração como foi o Congresso de Viena de 1815 para a Europa. Governos fundados no Islã, que alegam ser um “alternativa”, continuam antidemocráticos, anti-mulher e acabam por ser entidades políticas extremamente repressivas.

Se os EUA, a curto ou médio prazo, acharem que compreenderam o KFM e podem torná-lo dependente, eles o instrumentalizarão tendo em vista seus próprios interesses. O que isso poderia representar ainda é difícil de se descrever em detalhes, mas é possível que os EUA queiram  tanto colocar todo KFM “na linha”, quanto desconectar Rojava das demais partes do KFM. Essa última possibilidade se daria por meio da oferta de mais apoio, tanto militar quanto na política internacional, com a promessa de fortalecer seu status político dentro da Síria. Em troca a DFNS precisaria recusar Öcalan como seu líder ideológico,  rejeitando qualquer solidariedade e relações com o KFM em Bakur (que poderia também significar um distanciamento do PKK). Isso daria também espaço em Rojava para o PDK de Barzani e o YNK. Contudo, desde o começo da cooperação militar, em outubro de 2014, não se desenvolveu essa relação de dependência e a balança dessa relação não unilateral não se alterou significativamente.

É claro que seria muito mais difícil para as SDF defenderem sua própria terra se os EUA cessassem toda a cooperação militar imediatamente. A DFNS seria mais vulnerável aos ataques do Estado turco e das forças do regime sírio. O EI não representa mais uma ameaça para a existência de Rojava, mas aqui precisamos considerar que a YPG e a YPJ têm defendido seus territórios antes mesmo da cooperação com os EUA. Agora as SDF possuem muito mais combatentes, capacidades técnicas, motivações e, por isso, maior capacidade de defesa. Talvez os exércitos turco e sírio possam ocupar algumas áreas dentro de um curto espaço de tempo, mas isso implicaria em uma grande resistência e uma guerra com resultados imprevisíveis.

Soldados curdos, das Forças Democráticas da Síria (SDF)

Cooperação Russa com as SDF

Como dito na introdução, as  Forças Democráticas da Síria (SDF) também possuem importantes relações com a Rússia desde 2012.

O objetivo da Rússia na relação com as SDF/DFNS possui muitas faces que certamente são relacionadas umas às outras. Para assegurar esses objetivos é importante que, no atual estágio das SDF, essa cooperação militar com os EUA não se aprofundem e terminem em breve.

Um dos objetivos da Rússia é usar essa cooperação limitada com as SDF contra a Turquia, assim como fazem os EUA. Durante os primeiros anos do conflito na Síria a Turquia queria derrubar o regime de Ba’ath, porém desde 2016 seu foco se voltou quase exclusivamente em limitar o surgimento e fortalecimento de um novo projeto democrático em Rojava/Norte da Síria. Essa abordagem do governo turco dá à Rússia a oportunidade de explorar os medos da Turquia. Como as relações política, econômica e militar com a Turquia foram sólidas por anos, a Rússia permitiu que o exército turco invadisse a região do triângulo entre Jarablus, Al-Bab e Azaz, no Norte da Síria em troca da retirada de seu apoio turco a grupos armados em Aleppo. Essa invasão impediu que as SDF libertassem os territórios de Kobane e Afrin pudesse ser conectada. Ao mesmo tempo, com o exército turco se aproximando da Síria, a Rússia pode pressionar as SDF. Esse é o caso principalmente nos arredores de Afrin, onde há constante ameaça turca. A Rússia continua em pontos de observação de Afrin, que usa para interesses próprios contra a Turquia e as SDF.

A Rússia também demonstra contínuos esforços para que a DFNS encontre um caminho para um acordo com o regime de Ba’ath e, então, seja possível um tipo de restauração do Estado-Nação Sírio. A DFNS declarou várias vezes que buscam estrategicamente um acordo com o regime sírio que poderia construir uma Síria democrática e federal. Se tornou público que os dois lados se encontraram várias vezes e por muito tempo nesses encontros o regime sírio esteve pronto para aceitar apenas direitos culturais dos curdos e o fortalecimento das municipalidades. O DFNS insistiu que seria aceito uma democracia ampliada no nordeste da Síria e uma democratização básica de toda a Síria. No final de outubro de 2017, o Ministro do Exterior sírio, Muallim Walid, declarou que as negociações sobre autonomia para as principais regiões curdas poderiam ser discutidas, o que representa um grande avanço. Porém é uma proposta perigosa e inaceitável pois iria dividir as principais terras curdas das principais regiões árabes. Aqui a DFNS está em uma situação vantajosa e continua insistindo em ser aceita pelo regime de Ba’ath como uma região federal.

A DFNS considera suas relações com a Rússia positivas em vários aspectos. Um deles é limitar os ataques do Estado turco contra os territórios libertados pelas SDF. Outro é usar a influência russa para pressionar o regime sírio a negociar uma solução democrática na Síria e incluir a DFNS nas negociações internacionais para acabar com o conflito armado. Ao que parece, um dos interesses da Rússia é o de não ampliar seu envolvimento militar na Síria. Um terceiro aspecto é não aprofundar muito as relações com os EUA e se beneficiar das contradições dos dois poderes internacionais e regionais. Apesar disso, ambos os estados têm em suas políticas internacionais o interesse de permanecer em contato ou até mesmo desenvolver laços com os curdos, o que hoje inclui também o KFM – mesmo que taticamente – e não apenas o governo do Curdistão do Sul.

O EI ser totalmente derrotado no território do Estado sírio nos próximos meses não significa que o exército sírio começará um ataque militar contra as SDF. Uma das razões para isso é obviamente a cooperação SDF-EUA em curso, outra é que as SDF são bastante fortes e uma terceira é o foco nas organizações afiliadas da Al Qaida em Idlib, Dara e outras regiões.

As características da cooperação

A cooperação militar caracterizou-se muitas vezes por tensões. Uma grande e controversa discussão foi sobre a área de Minbic (Manbij), que as SDF queriam que fosse libertada enquanto os EUA se concentravam em Raqqa. As SDF iniciaram as ações em Minbic sem o apoio dos EUA. Quando já alcançavam os subúrbios da cidade de Minbic, os EUA iniciaram o apoio, o que resultou no sucesso final  da operação em 12 de agosto de 2016. Este caso evidencia que a cooperação entre as SDF e os EUA não é unilateral.

No final de agosto de 2016, o exército turco começou a ocupar Jarablus e durante vários dias as SDF tentaram libertar região sul do EI e reagir ao exército turco. Embora o exército turco tenha sofrido perdas, poderia assumir a cidade de Jarablus, já que o EI não lutou resistiu e recuou após um dia do início da operação. No entanto, depois de vários dias os EUA negociaram um cessar-fogo entre as SDF e o exército turco, mas a coordenação entre as SDF e os EUA entrou em uma crise que durou várias semanas, pois os EUA autorizaram a invasão turca.

Quando as SDF também se deslocaram de Minbic para Al-Bab, libertando a região do EI, também lutaram sem o apoio dos EUA que não queriam ir muito para o oeste. As SDF conseguiram resistir com bastante sucesso contra as tropas turcas que se moviam paralelamente. Depois que o exército turco tomou Al-Bab, atacou Arimah, uma cidade no oeste da região de Minbic por duas duas semanas, conseguindo conquistar apenas uma aldeia que, na verdade, havia sido abandonada por razões militares, embora equipada com muitos tanques e armas pesadas. Os confrontos terminaram quando, depois de algumas semanas, a Rússia e os EUA enviaram soldados para o fronte em torno de Minbic.

O número de soldados dos EUA no norte da Síria não deve ser exagerado, pois eles não se juntam às lutas em solo (exceto a cidade de Raqqa) e realizam mais treinamentos ou coordenação da chegada de equipamento e armas. Em âmbito internacional, o número de soldados dos EUA é mais discutido do que os combatentes das SDF, que passaram de 50.000. Às vezes, analistas falam sobre “EUA e parceiros locais” quando tratam da Síria. Esta abordagem é uma degradação das SDF.

Um mês antes da libertação de Raqqa, as SDF iniciaram a operação “Cizîre Storm” para libertar toda a região a leste do rio Eufrates na província de Deir Ez-Zor. Os comandantes das SDF declararam que o fizeram, embora os EUA não o quisessem. As SDF pressionaram os EUA devido à urgência: o exército sírio estava avançando rapidamente em direção à cidade de Deir Ez-Zor. Na verdade, a operação continua muito bem sucedida. Nas primeiras semanas houve algumas tensões e confrontos com o exército sírio, mas agora há uma pequena cooperação militar no rio Eufrates, perto da fronteira iraquiana.

Embora a cooperação militar entre as SDF e os EUA tenha liderado a Coalizão Global Anti-ISIS realizada particularmente com a operação de Raqqa, não é possível falar sobre uma cooperação política. Os Estados Unidos diferem muito claramente entre a dimensão política e militar e não insistiram para que a DFNS fizesse parte das negociações de Genebra. Embora o governo dos EUA tenha recusado publicamente as acusações da Turquia de que o YPG seja terrorista e que o apoio de armas dos EUA para as SDF seja entregue ao PKK, nunca foi dito nada positivo em público sobre o processo político em Rojava / Norte da Síria. Apenas algumas altas autoridades militares emitiram declarações positivas sobre as SDF. Até hoje os EUA nunca permitiram que uma liderança da DFNS ou das SDF pudesse visitar os EUA.

Embora a relação militar da SDF com a Rússia seja muito menos desenvolvida do que com os EUA, politicamente a Rússia faz declarações mais diretas e positivas sobre os curdos sírios e a DFNS. Por exemplo, no início de 2017, a Rússia preparou um rascunho para uma nova constituição e disse com mais freqüência do que os EUA que os curdos deveriam estar envolvidos nas negociações internacionais. Recentemente, a Rússia anunciou um “congresso popular da Síria” para o qual o PYD/Curdos seria convidado.

Entendendo os antecedentes da guerra

O KFM diz que nos encontramos atualmente na 3ª Guerra Mundial, com foco no Oriente Médio e a Síria no centro. Existem três linhas principais. A primeira é o imperialismo internacional representado principalmente pelos EUA e pela Rússia. A segunda linha inclui os poderes do status quo regional, tendo como principais atores a Turquia, o Irã e a Arábia Saudita, que também possuem características imperialistas. A terceira linha é a das forças revolucionárias e democráticas, liderada pela Revolução Rojava e pelo PKK. Todas as três linhas lutam entre si, as forças da 1ª e da 2ª linha lutam entre si. O resultado é uma complexa e contínua coalizão e conflitos armados. Todas as forças desenvolvem relações com as que parecem estar em contradição com o inimigo, a fim de alcançar seus interesses estratégicos.

Isso está relacionado com a profunda crise estrutural da modernidade capitalista existente no Oriente Médio. Não é suficiente ter uma abordagem ideológica e política como fazem muitas organizações de esquerda e socialistas, mas uma abordagem organizacional e militar é crucial. Sem ser dogmático, é necessário lutar contra ameaças, mas também ser capaz de reestruturar a própria organização de acordo com as condições, e compreender a dinâmica e as contradições de outros atores para poder se beneficiar deles. O objetivo deve ser defender as conquistas e construir uma sociedade forte auto-organizada e a base para fortalecer o próprio poder. A criação de áreas de liberdade não é possível apenas com forças amigáveis. Uma posição dogmática levará à derrota, então cada passo precisa ser bem calculado, particularmente para os curdos que foram colonizados por quatro estados-nações. Como o KFM atua nesta abordagem desde sua fundação, ele pôde alcançar o nível atual de força. Na verdade, o KFM contribuiu para o caos existente através de sua luta pela liberdade que levou à quebra do papel das potências imperialistas que pareciam fortes. O potencial da crise é: Ou a modernidade capitalista será restaurada no Oriente Médio e governará mais 100 anos ou serão criadas violações da liberdade para toda a humanidade. É por isso que as potências internacionais e regionais intervêm com tanta força. Não é apenas petróleo e gás.

Como a população de Rojava / Norte da Síria vê a cooperação com os EUA

Independente de todos os acontecimentos e discussões, é muito importante ver como a cooperação militar com os EUA afeta a sociedade de Rojava. Há duas questões principais. Primeiro, como os ativistas políticos e a população consideram essa cooperação militar. Em segundo lugar, como e se as estruturas econômico-político-culturais são afetadas por essa cooperação.

Entre fevereiro e março de 2017, o autor realizou cerca de 50 entrevistas com ativistas políticos e pessoas de diferentes órgãos administrativos sobre seus trabalhos políticos e a situação político-social. Exceto por uma pessoa, as demais entrevistadas consideraram a cooperação militar  com alguma preocupação. Os entrevistados disseram principalmente que: essa cooperação surgiu devido a condições difíceis, (particularmente em Kobane, e inúmeros inimigos), isso não inclui uma dimensão politica, a cooperação é feita pelos EUA por interesses próprios e é uma cooperação tática.

Havia a consciência clara de que a revolução não deveria contar com essa cooperação militar que poderia ter fim a qualquer momento, mas deveria tentar se beneficiar dela. O mesmo é válido para a Rússia. Estas foram importantes respostas baseadas em uma percepção crítica e visão lúcida sobre o que acontece. Elas mostram que os ativistas continuam a desenvolver e aprofundar seus trabalhos políticos e em na busca por uma sociedade fortemente auto-organizada. O autor observou que, em Rojava, uma sociedade auto-organizada e autossuficiente inclui comunas cada vez mais fortes, conselho popular e outras estruturas políticas, uma economia comunal, um sistema de educação e saúde independente e propagação de autodefesa em todos os bairros, comunas e aldeias. Esta abordagem está ligada aos 40 anos de experiência do KFM, que nunca se tornou dependente de qualquer outro poder político. Sempre houve um compromisso forte e convicto com os objetivos políticos.

A cooperação militar com os EUA raramente é tema nas discussões políticas gerais

Como as outras estruturas políticas e sociais, a imprensa de Rojava não coloca a cooperação militar no centro das notícias. Em vez disso, dá espaço a informações sobre o projeto político do federalismo democrático/autonomia, defesa, libertação, criação de novas estruturas na sociedade e manifestações públicas.

Entre a população, o autor encontrou poucas pessoas que expressaram uma grande expectativa com os EUA. Rojava não pode absolutamente ser considerada com Başur. O silêncio dos Estados Unidos e da OTAN quando o exército iraquiano atacou Kirkuk após o referendo em Başur em 25 de setembro de 2017 confirmou que é necessária uma abordagem crítica sobre essa relação.

Os esforços para construir comunas em todo o território nunca cessaram após o início da cooperação militar com os EUA; Em vez disso, o número de comunas dobrou. Também continuou a criação de cooperativas; hoje existem poucas centenas de cooperativas. A economia democrático-comunal continua a ser desenvolvida e progride através do convencimento. A crítica à modernidade capitalista e à mentalidade capitalista em 2017 foi ainda mais forte do que em maio de 2014, quando o autor viajou pela primeira vez para Rojava.

Nas discussões com os membros do YPG e do YPJ, não houve supervalorização das relações com os EUA. Na verdade isso quase não era objeto de discussão, caso o autor não perguntasse. Foi afirmado várias vezes no Norte da Síria que a cooperação tem uma série de vantagens, como o acesso a maior número e tipos de equipamentos e armas militares, mas que é preciso enfatizar que o ser humano é sempre a arma mais forte em uma guerra.

Um membro do YPG com relações diretas com comandantes em todas as áreas, informou que os militares dos EUA nunca tentaram impor algo diretamente ou intervir na vida ou no modelo político-social-econômico. Ele acrescentou que as SDF e a DFNS nunca aceitariam qualquer tipo de intervenção nas próprias políticas internas o que os EUA estão bem cientes disso. Em seguida informou que em cada reunião com os EUA os membros das SDF estavam sempre preparados e faziam propostas para novas estratégias e operações de libertação. Muito antes de qualquer cidade com a área circundante ter sido libertada, a DFNS preparou um conselho civil composto por pessoas da região local. Segundo ele, a delegação dos EUA não poderia dizer nada mais do que concordar. No final de 2016, os militares dos EUA queriam encontrar a coordenação do Conselho Civil de Minbic e ver com seus próprios olhos como isso funciona. Dito isso, devemos nos lembrar que em cada país ocupado pelos EUA, uma espécie de governo nacional /civil foi instalado, mas quase todos falharam, particularmente no Iraque e no Afeganistão.

No final da conversa, o membro do YPG enfatizou que eles se organizam de modo que estejam preparados para o fim da cooperação militar com o exército dos EUA a qualquer momento. Segundo ele, a cooperação tem algumas vantagens importantes, mas também traz riscos. Particularmente o risco de se acostumarem com o apoio dos EUA ao longo do tempo, e isso precisa ser discutido permanentemente, e ao qual o YPG precisa tomar medidas. Outro desafio é que, devido à presença dos EUA na Síria, as disputas com o regime sírio não devem acabar em uma grande guerra porque a DFNS quer chegar a um acordo mútuo e respeitoso com o regime Ba’ath. A resposta à pergunta se a coordenação das SDF não teme que a cooperação possa mudar o interesse a médio prazo e a visão política dos combatentes das SDF foi muito interessante: “Acreditamos que temos um forte projeto político com o Confederalismo Democrático, que é uma ferramenta inspiradora para nós. Que tipo de ideias nos oferecem os Estados Unidos ou outros estados? Temos uma democracia mais forte, direta e inclusiva e uma liberdade de gênero em rápido desenvolvimento. O mais importante, temos a visão para uma nova vida das pessoas da região maior. O que os estados capitalistas têm é dinheiro, armas e democracia em crise estrutural. Nada mais”.

Outro aspecto da discussão é que o número de internacionalistas (pessoas de diferentes partes do mundo que se juntam à revolução) se manteve alto em 2016 e 2017. Particularmente os jovens sentem o espírito revolucionário e querem fazer parte da fase de construção ou defesa e querem entender o processo. O autor pôde falar com dezenas dessas pessoas, principalmente da Europa ou da América do Norte. Todas elas tiveram uma visão positiva sobre o desenvolvimento no Norte da Síria e queriam ficar mais tempo. Houve algumas exceções: o autor conheceu um pequeno número de homens com idade entre 45 e 55 anos que estavam saindo de Rojava porque não conseguiam lutar muito no campo de batalha. Eles disseram que vieram apenas para lutar contra o EI e nada mais.

Os internacionalistas em Rojava foram atraídos pela maneira  como as pessoas se organizam, como discutem e como elas compartilham entre si o que têm. Mais adiante, eles querem entender quais são as principais discussões e os principais valores revolucionários. O objetivo é entender o que esse movimento revolucionário conseguiu reviver ou desenvolver que outros movimentos revolucionários não conseguiram. Ou, em outras palavras: o que eles podem aprender com esta revolução, a mais inspiradora do século 21?

Os internacionalistas não consideram a cooperação militar entre SDF e EUA como um obstáculo para estarem comprometidos no Norte da Síria. Devemos levar em conta que existem várias centenas de internacionalistas, não incluindo os árabes, turcos e outras pessoas do Oriente Médio. Esse fato deve levar à reflexão quem consideram a cooperação militar entre as SDF e a liderança global liderada pelos Estados Unidos como traição e não veem todos os outros desenvolvimentos revolucionários e sociais profundos no Norte da Síria.

Resumo e Discussão

Em 2014 a cooperação militar entre as SDF e os EUA liderou a coalizão global anti-ISIS contra o EI que teve início porque praticamente não havia outra alternativa para ambos os lados. Considerando seus antecedentes, é uma cooperação paradoxal. Muito provavelmente não terminará imediatamente após a derrota total do EI na Síria, como as declarações dos EUA e das SDF implicam; mas devido a uma série de fatores, é difícil prever quanto tempo e de que forma pode continuar. A cooperação militar não é política e é muito frágil. Enquanto cooperam com sucesso contra o EI, há tensões entre os dois lados. No entanto as condições os obrigaram a continuar. Como na Síria o fim da guerra está se aproximando e diferentes níveis de negociações se iniciaram, provavelmente a cooperação continuará durante esse processo que pode levar anos. A DFNS / SDF têm grande interesse em conseguir um acordo com o regime de Ba’ath com base na ampla democratização da Síria e na aceitação da DFNS, o que tornaria a cooperação militar com os EUA completamente desnecessária.

No entanto, existem dois riscos na cooperação militar em curso com os EUA. Em primeiro lugar, se os EUA acabarem com a cooperação militar sem qualquer acordo de paz para a Síria, deixaria o território controlado pelas SDF mais vulnerável para grandes ataques militares do exército turco e do regime sírio; mas isso não deve acontecer. Isso significaria uma intensificação de todo o conflito sírio com resultado incerto. Uma outra possibilidade seria a cooperação contínua de longo prazo resultar em uma dependência da DFNS/SDF aos EUA devido à deterioração das condições para o Norte da Síria sem tempo hábil para a DFNS tomar as medidas certas para evitar essa condição. O resultado seria aceitar a agenda política dos EUA. Mas até agora não há sinal de que os EUA tenham desenvolvido qualquer predominância nessa cooperação.

Uma abordagem usada para evitar a dependência dos EUA é, a partir da experiência em solo no Norte da Síria, deixar claro para toda a sociedade sobre os riscos da cooperação militar com os EUA. Ambos os revolucionários civis e militares são conscientes disso e fazem com que grande parte da população entenda os lados positivos e negativos, confie na própria força para continuar seu trabalho político na mesma intensidade e não fique “desapontada” quando a cooperação terminar.

Outro mecanismo contra uma dependência dos EUA é se beneficiar das contradições de todos os poderes envolvidos na guerra síria. Aqui, um foco é manter relações com a Rússia, que está interessada em ter relações com os curdos nos estados da Síria e do Iraque a fim de criar espaço para seus próprios interesses a longo prazo. Há ainda as relações com o Estado Sírio, mas elas não são estáveis e, de tempo em tempo, tem momentos críticos.

Graças à “diplomacia revolucionária”, que faz concessões ao próprio núcleo revolucionário, foi possível que a KFM sobrevivesse dentro da guerra síria e desenvolvesse aos poucos um novo modelo político, primeiro em Rojava e depois em outras partes do Norte da Síria, reverberando para pessoas progressistas em todo o mundo. A diplomacia revolucionária inclui também uma avaliação permanente sobre os riscos futuros, bem como iniciativas para atuar nessas cooperações políticas e militares.

Outro mecanismo importante – e claro, também um princípio – é desenvolver a solidariedade internacional com a revolução de Rojava e, de forma mais ampla, com a KFM, a maior força revolucionária no Oriente Médio. Uma das frentes estão os vários internacionalistas em Rojava que têm o papel histórico de transferir a revolução para seus países, outra frente é o trabalho político contínuo a nível internacional. A resistência em Kobane estimulou uma grande solidariedade em todo o mundo, mas não é suficientemente forte para dar grande visibilidade a nível internacional. A solidariedade internacional não deve ser subestimada à medida que as forças antirrevolucionárias fazem lobby contra a revolução em todas as etapas. Apenas uma forte solidariedade internacional – também no Oriente Médio – tornará os revolucionários menos dependentes de cooperações militares como com os EUA.

Cada dia que passa aumenta a adesão de mais pessoas na Síria à DFNS e ao conceito político de uma nação com Confederalismo Democrático. Quanto mais a revolução viver, mais sírios farão parte da mudança revolucionária e da sua possibilidade de sobreviver no inferno entre os estados-nações e as forças fascistas do Oriente Médio.

Se a revolução de Rojava falhar, provavelmente representaria um revés para as forças democráticas e revolucionárias no Curdistão, na Síria e também no Oriente Médio ao longo de décadas, afetando negativamente a política em todo o mundo. A sobrevivência e o desenvolvimento do processo revolucionário, ou seja, de uma nova perspectiva democrática, tem o grande potencial para mudar as mentalidades de dezenas de milhões de pessoas no Oriente Médio.

Leia Também:

Um comentario para "Os curdos e xadrez geopolítico do Oriente Médio"

  1. Carlos Delgado disse:

    Tanta lenga-lenga para tentar justificar que um movimento que antes posava de esquerda está hoje na coleira geopolítica do oportunismo norte-americano, para quem os curdos só importam enquanto cabeça-de-ponte para desmembrar a Síria.
    Sabe de uma coisa? Eu estou até torcendo para que essa gente seja esmagada pelos safados dos turcos, para que aprendam a deixar de ser ingênuos.
    E depois, ainda aparecem outros sujeitos defendendo o direito dos curdos à sua integridade nacional, à custa da integridade nacional síria. Então tá. Se é só isso, então é só guerra. E que os curdos sejam mais uma vez esmagados!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *